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A Difícil Relação Entre 'nós' e 'eles'

Multiculturalidade & Educação

Luís Souta, PROFEDIÇÕES/ a Página,

1997, 198 páginas.

O livro de Luís Souta é simultaneamente um invocar e constatar da heterocultura como a normalidade da sociedade onde vivemos e o apontar das lições e contradições que têm atravessado os diversos sistemas políticos entre os quais o nosso. É como se os Estados soubessem que para uma sociedade multicultural há que construir práticas políticas e pedagógicas não monoculturais a fim de evitar a exclusão social, o racismo e a xenofobia - visível do ponto de vista do ideário -,e o pervertessem ao ignorar ou esquecer a regulamentação, o esclarecimento, a sensibilização e a educação que há que construir para passar de facto a uma política também ela multicultural. Ou, de outra forma, para passar do ideário democrático e humanista à acção multicultural.

Trata-se duma obra ela mesmo também multicultural, no sentido em que concilia a apresentação dos factos através de inúmeras estatísticas e quadros bem elaborados para possibilitar uma leitura comparativa, com a compreensão e interpretação dos processos sociais e dinâmicas culturais que habitam dentro da Europa, Portugal, Reforma Educativa, Insucesso Escolar, Colaboração Escola-Famílias, Racismo, Adágio Popular, para só citar os que de momento elejo como mais importantes. Luís Souta, antropólogo, mestre em Social Education pela Universidade de Boston e doutorando em Antropologia da Educação no ISCTE, apresenta-nos uma problemática cada vez mais na ordem do dia - a multiculturalidade -, duma forma escolar mas não escolástica, duma forma académica mas de possível acesso para todos, com uma escrita e uma estruturação que tanto permite a leitura passo a passo, capítulo a capítulo, como a leitura que duma rasgo só atinge a última página para mais cedo ou mais tarde se voltar às ideias e bibliografia especializada e actualizada que capítulo a capítulo nos vai recomendando.

Portanto, uma obra que abordando a diversidade cultural, é ela também bem rica do ponto de vista da multiculturalidade - da diversidade de olhares e aproveitamento que ela permite. Isto para já não falar da legislação pesquisada e invocada. E da escrita - a cultura escrita a que ela também se refere - e da oralidade que a ciência positivista quartou e que Luís Souta aqui reabilita a propósito da imensa filosofia e hermenêutica que se pode retirar dos provérbios, adágios, aforismos, anexins, apotegmas, ditados, parémias, etc. (ler p. 167 - 176).

Trata-se duma obra dada à estampa em Julho de 1997, publicada pela Profedições com o apoio do CIOE - Centro para a Igualdade de Oportunidades em Educação -, ele mesmo objecto de análise do livro em apreço, na parte dedicada aos projectos multiculturais, e que constitui 'uma unidade de carácter científico contemplada nos Estatutos da ESE de Setúbal' (p. 155).

O prefácio, da autoria do antropólogo Raúl Iturra, coloca logo de início a difícil relação - justamente por ser cultural e epistemológica - entre 'nós' e 'eles'. Um nós, que de repente se torna ainda mais plural e multicultural porque passa a integrar muitos daqueles que em séculos passados eram 'eles'. Efectivamente, a descolonização e a imigração são um dos muitos processos históricos que Luís Souta lembra como construtores da complexidade das relações humanas e sociais no nosso país e não só, justamente porque incrementam a multiculturalidade. É assim que se vive para 'um futuro incerto' (p. 19) e num presente de difícil conciliação entre a homogeneização e globalização, e as identidades nacionais e culturais (p. 24).

É na escola que o autor desemboca sucessivas vezes, idealizando-a e reivindicando-a como capaz de incluir as diferenças culturais para as pôr em diálogo: 'A população estudantil, numa escolaridade obrigatória de 9 anos, é cada vez menos homogénea e mais plural, não só sob o ponto de vista sexual e de origem social, mas também sob o ponto de vista étnico, linguístico e de nacionalidade' (p.37); 'A sociedade global exige a cooperação, não a exclusão ou o conflito' (p.49). Enfim, trata-se de, segundo o autor, habilitar os cidadãos com novas literacias. A literacia multicultural é a que a todo o momento emerge aqui como uma utensilagem mental de grande importância e necessária no mundo contemporâneo.

Torna-se assim incompreensível como é que a Reforma Educativa não conseguiu evitar a 'cegueira' multicultural. A excepção é apontada para o lançamento do Projecto de Educação Intercultural lançado em 1993/94. Mas a educação multicultural não pode ser destinada 'em exclusivo a um certo tipo de alunos - as minorias étnicas - e relegado para celebrações pontuais, tipo 'semana cabo-verdiana' (p. 56). Por isso Luís Souta pretende legitimar o papel da Antropologia, entre outras, na formação inicial e contínua de professores. Por isso aponta como paradoxal o facto de a própria Reforma ter retirado a disciplina de Antropologia Cultural dos planos de estudos do ensino secundário, e também o facto de se terem afastado da docência os licenciados em Antropologia, uma vez que é a própria multiculturalidade e recursos necessários para com ela lidar que implica uma prática e um saber antropológicos.

Luís Souta refere os TEIP (Territórios Educativos de Intervenção Prioritária) e a Relação Escola-Família como exemplos de práticas escolares onde a antropologia deveria ser uma 'mais-Valia'. 'Infelizmente, muitas das acções desencadeadas pelas escolas assentam nas teorias de défice cultural das famílias, que se traduzem ou em programas de educação compensatória ('mais do mesmo') ou em práticas de assimilação; ambas, no entanto, desvalorizadoras do papel das famílias na educação das crianças' (p. 85).

Apesar do trabalho da UNESCO.html">UNESCO.html">UNESCO, da desconstrução científica dos conceitos de 'raças superiores' e 'raças inferiores' e mesmo da 'raça' aplicada ao Homem, o racismo teima em persistir. 'O Ano Internacional da Tolerância deixou-nos o slogan Todos diferentes, Todos Iguais, da campanha europeia de juventude'. Mas o racismo continua e também em Portugal.

A obra avança com o grande tema final Projectos Multiculturais, onde para além do CIOE já referenciado, se apresenta o projecto 'várias culturas, uma escola', que decorreu durante cinco anos na Escola Primária nº 5 da Amora. Trata-se duma escola que em 1999/91 tinha 209 alunos sendo que 67% eram pertencentes a minorias étnicas. O projecto foi não só considerado importante para 'a educação de todas as crianças', por parte dos pais, mas foi também 'um dispositivo de desenvolvimento profissional' para os próprios professores.

Para finalizar, trata-se duma abordagem da multiculturalidade, bem marcada pela escola americana, habituada a pensar e a construir o país a partir de mosaicos culturais, tantas vezes em anti-diálogo, mas de que se infere incluir simultaneamente a questão da interculturalidade como filosofia, pedagogia e prática, conceito este mais de 'marca' europeia que ao primeiro aqui fica submetido.

Trata-se, enfim, dum livro útil para educadores, professores, cientistas sociais e da educação, assistentes sociais, mas também para políticos, governantes, autarcas, e cidadãos que sendo-o do seu 'lugar', querem sê-lo também da aldeia global que habitamos.

Ricardo Veira


  
Ficha do Artigo
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Autoria:

Ricardo Vieira
Escola Superior de Educação de Leiria, ESE-IPLeiria. Investigador do CIID - Centro de Investigação Identidades e Diversidades
Ricardo Vieira
Escola Superior de Educação de Leiria, ESE-IPLeiria. Investigador do CIID - Centro de Investigação Identidades e Diversidades

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