No gesto natural de reler toda a poesia de Luís Veiga Leitão, agora que acaba de aparecer a sua Obra Completa, em edição organizada por Luís Adriano Carlos e Paula Monteiro, onde além dos poemas se reunem também as suas crónicas há muito esquecidas nas páginas de O Comércio do Porto e muitos textos dispersos e esquecidos, acompanhados pelos desenhos que saíam dos seus dedos como carícias para afagar as palavras, ainda chegam de muito longe murmúrios suaves de palavras e sons de tantos encontros que tivemos pelas ruas e cafés da nossa cidade antiga e vestida de pedra. Mas, nesta hora de justa consagração, não sei como evocar o que é há anos uma profunda saudade e solidão na quietude final da morte. Não fomos viajantes indiferentes da mesma galáxia, comungámos muitas vezes dos sonhos e ideias que ajudaram a encher e a preencher o tempo de estarmos vivos. Porém, no instante em que para sempre o Poeta partira, na lembrança breve de ter sido 'prisioneiro como navio preso ao cais',recordo como levou consigo o sonho de ser um impenitente viajante de outras paragens e como delas soube falar e cantar pelas crónicas ou poemas dos livros que nos deixou, nesses passos de poeta e andarilho que viu e contou o que noutros lugares e noutro tempo os homens lhe fizeram sonhar e cantar. Mas não havia encontro com Luís Veiga Leitão, pelo Porto ou depois por Lisboa, mesmo na distância de serem outros os nossos passos, que se não fizesse cheio de cordialidade e camaradagem, na troca de impressões sobre um livro ou exposição, na leitura calma e empolgante dos seus últimos poemas ou de breves madrigais para encher as horas e ocupar a vida ainda pela sua indesmentível condição de Poeta. Desde Latitude e Noite de Pedra, ou seja, quase há cinquenta anos, que a sua palavra poética ganhou esse estatuto de se afirmar como uma das vozes mais expressivas do neo-realismo literário de meados deste século, preocupado em ser um poeta realista, sim, por horizontes que transpusessem a simples realidade e lhe conferissem a firmeza e verdade de saber comunicar profundamente com os outros, porque foi sempre um Poeta que modelou a palavra com a mesma arte e sabedoria de quem na força do escopro e do cinzel sabia trabalhar a pedra ou lavrar o seu campo cheio de poemas. E por isso Luís Veiga Leitão soube, pela clareza do seu verbo, pela simplicidade formal e sentida reabilitação do real, avançar pelos caminhos do sonho, no canto e descante de uma poética que, amassada nas mais fundas raízes do que a vida lhe fez conhecer e viver, nos conduziu pelas veredas do sonho nesse inalterável desejo de mudar a vida e o próprio destino dentro dela: o inútil é o útil que pacientemente se espera. Ou quem escolhe o caminho das pedras nada quer para tudo ser. Mas, ainda na evocação da nossa 'cidade equestre' por onde tantas e tantas vezes sempre deambulámos em conversas de circunstância no pretexto de ser a literatura (ou a política) e, sobretudo, a poesia que acima de tudo justificava esse nosso convívio, ouvi-lo uma vez mais dizer que sempre são 'íngremes os passos dos poetas', na lembrança comovida de Pablo Neruda, ou poder a cidade simbolizar-se no amor e desamor por longos anos de permanência: torre de tudo e de quanto o sonho a palavra o canto pode e quer. Porém, confirmada a notícia da sua morte ocorrida exactamente em Outubro de 1987(no mesmo dia e mês em que vinte anos antes em condições trágicas e traiçoeiras morrera Che Guevara ), na força e verdade desse ciclo em que a vida sempre se joga e prolonga na morte, pude reler, na distância dos anos que já passaram e diante deste admirável 'objecto' editorial que é a Obra Completa agora publicada, muitos dos seus poemas, não para fazer qualquer responso que o Poeta não me exige nem pede, mas para o saber ainda vivo e como está a nosso lado, na evocação dos últimos versos dessa antologia tão pessoal - Longo Caminho Breve - que, em cordial dedicatória, me pôde oferecer numa tarde de Agosto de 1985 à mesa do Majestic de outras histórias: Tudo principia no princípio o nascimento e a morte o dentro e o fora de mim tudo principia no princípio - o poema principia no fim. E, na certeza da sua ausência física, sepultado que ficou no Porto da nossa inapagável amizade, posso dizer-lhe como prova de viva memória e saudade, que os seus versos de poeta e andarilho se inscrevem como senha de uma coerente atitude e assim o profundo sentido da sua poética o fez ser uma das vozes mais expressivas nos tempos de fascismo, proclamando que sempre 'a Poesia deve ser feita por todos': Que nos cubram de ameaças e de espanto que nos cortem as asas mas o canto voa mais alto do que as penas. E, folheando comovidamente esta belíssima edição da Obra Completa do Poeta de Ciclo de Pedras, ter a certeza de que em largas dezenas de páginas se encerra todo o trajecto poético do que foi a sua passagem nesta vida e assim se reafirmar, como Luís Adriano Carlos declara na introdução, que 'na esteira dos grandes modernos, Luís Veiga Leitão, poeta realista e onirista que se considera da'espécie dos seres utópicos', procura em cada palavra esse 'pequeno diamante' onde se reflecte a essência das coisas e dos seres, a consciência crítica do mundo, o seu sentido originário e a sua constante reinvenção'.
Serafim Ferreira.
Luís Veiga Leitão OBRA COMPLETA Organização de Luís Adriano Carlos e Paula Monteiro. Ed. Campo das Letras / Porto, 1997.
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