Naquele tempo... a ingenuidade dos verdes anos da profissão e a generosidade de alguns professores aliaram-se e despontaram projectos (ainda que lhes não dessem esse nome).
Foi então que passei uma tarde naquela escola. De sala em sala, partilhei o trabalho de cada professora, procurei ajudar a transformar desejos em possibilidades, auscultei dificuldades. À primeira ouvi: 'Isso de projectos é muito bonito, mas... e as outras? Como é?' A segunda professora despediu-se de mim com o seguinte recado: 'Não te iludas, Zé! Há sempre quem não faça, nem deixe os outros fazer.' A terceira: 'Sabes, Zé, por mim, até nem há problema. Mas há outras que...' À saída da última sala, idêntico comentário: 'Querer, eu até quero! Mas tu percebes, concerteza, que há quem no queira!' Esperei pelo fim das aulas. Tinha sido convidado para participar na reunião do concelho escolar. Sentei-me com as quatro colegas à volta da mesa, na exígua sala dos professores. Dado o silêncio e a atitude de escuta, supus que aguardavam que eu começasse. E eu comecei: 'Já estamos todos? São só quatro as professoras na vossa asocial? Não falta mesmo ninguém?' Onde está 'a outra'?
Este episódio ajudou-me a entender a inutilidade de uma formação na qual não embarca o 'quinto passageiro'. Julgo ser inútil uma formação de que nada resulta, senão a confirmação de estereótipos e o refúgio nos preconceitos. Ao cabo de muitos anos de encontros (e desencontros) de formação, apenas gasto o meu tempo junto de quem não inventa uma 'outra' personagem que desculpabiliza. Considero útil a partilha das práticas quando me apercebo que daí advêm vantagens para os alunos. Se dispendo parte do meu tempo em encontros com outros professores é porque estou convencido de que os interlocutores estarão dispostos a aceitar que as práticas dos outros também podem fazer sentido. Nunca o faço na pretensão de divulgar teorias, ou de fazer a apologia de um qualquer modelo de trabalho. Descrevo, de modo imcompleto, uma realidade e fico atento às realidades que me são descritas. Gosto do debate fundamentado e sereno de diferentes pontos de vista. Aprende-se sempre algo nas comunidades de amizade crítica em que participo. E, quase sempre, nem nos apercebemos disso. Recolho e permuto testemunhos de práticas anonimamente elaboradas e cujo intercâmbio entre escolas urge viabilizar. Só não me agradam os 'projectos de professor', embora entenda que, em muitas escolas, o instinto de sobrevivência profissional se alie ao voluntarismo, numa mistura perigosa que engendra projectos isolados. Não me agrada ver professores a reboque de projectos que são de outros e que se extinguem quando o acaso, o cansaço, ou o sistema de colocações, desvia o entusiasta acidental para outras paragens. Os professores são pessoas inteligentes. Por isso, não os embalo no discurso do 'impossível'. Faço juz à minha fama de provocador, quando afirmo que há imensos modos de tornar possíveis aparentes impossibilidades. Sei que tudo é possível, porque, a seu modo, grupos de professores já o fizeram. Professores iguais aos outros, em escolas como as mesmas condições que outras, os mesmos programas e normativos... mas sem medos. E, se fazer o melhor pelas crianças implica transgressão, eu lanço o desafio: transgrida-se! Talvez o fim deste século abra caminho para escolas onde não exista uma única solução correcta para cada caso, onde a coerência praxeológica não seja redutível à aplicação linear de teorias, onde os professores não permaneçam 'orgulhosamente sós', onde os planos de formação (que se avizinham para substituir os malfadados créditos) não venham a ser reforços de um individualismo que não permite que um 'outro' professor participe de um mesmo projecto. É possível ir além dos meros projectos de ensinar a ler, escrever e contar, prescindir dos inúteis projectos educativos de papel, para encantar inspectores. Mas é, igualmente, preciso perceber que a re-elaboração da nossa cultura profissional atravessará muitas gerações de professores e que estes poderão permanecer ancorados numa tradição, sabendo que outras tradições existem, que também merecem escuta.
José Pacheco
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