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Carvalho da Silva em entrevista a 'a Página'

Carvalho da Silva, secretário-geral da Confederação Geral dos Trabalhadores Portugueses (CGTP), abre neste número uma série de entrevistas que abordarão as várias facetas da exclusão e das questões levantadas em torno dela. Neste número, o líder da central sindical fala da Europa, do desemprego e dos fenómenos de exclusão a si associados, num depoimento onde, entre outros assuntos, analisa as consequências da globalização da economia e da submissão do poder político face ao poder económico.

Enquanto líder de uma organização com um carácter marcadamente social, e partindo dos contactos que mantém regularmente com a população e com os agentes económicos e institucionais, como vê e como sente o país?

Numa visão muito imediata, até podemos constatar que tudo vai bem ou, pelo menos, que o essencial vai bem. Mas analisando numa perspectiva mais estratégica, verificamos que não há um encetar de grandes mudanças e a abordagem aos grandes desafios que se exige, como são os casos da educação e do ensino, da saúde e da segurança social, e recua-se mesmo em aspectos vitais como a área da fiscalidade, que é actualmente uma das componentes de maior produção de manutenção e desenvolvimento de injustiça neste país. A situação actual, face a factores internos e externos e à própria evolução da situação económica da União Europeia, nos últimos tempos, cria situações paradoxais: do ponto de vista económico há uma fase de crescimento e do ponto de vista dos problemas existe um adormecimento.

Basta ligarmos a televisão e vermos os sorrisos dos ministros - alguns deles até são simpáticos - numa aparência de que tudo vai bem. Mas se analisarmos os problemas numa visão estratégica, a sociedade portuguesa continua com grandes défices e sem uma assumpção dos grandes desafios que se colocam à sociedade.

O relatório anual sobre o emprego na Europa diz que a criação de emprego na União Europeia (UE), assente apenas no crescimento económico, não será capaz de recuperar o número de postos de trabalho eliminados desde o princípio da década. Quais são as perspectivas de futuro da Europa nestas condições?

A cimeira do emprego do Luxemburgo resulta de um compromisso assumido em conferências anteriores e foi agendada como um marco muito importante para criar respostas sólidas para o problema do emprego.

Mas esse relatório que referiu, bem como muitas outras informações que nos vão chegando, confirmam que a cimeira vai ser apenas um cumprimento de calendário e que os problemas de fundo sobre o emprego se vão manter. Ou seja, o que continua a predominar na construção desta UE são as opções económicas e as visões economicistas, secundarizando a dimensão social.

Os decisores políticos da UE continuam perfeitamente subjugados aos objectivos económicos que têm dominado este projecto e parece-me que esses mesmos decisores dão como adquirido ser mais barato para os detentores do capital gerir estes níveis de desemprego do que responder aos anseios da sociedade, criando mais emprego e perspectivas de futuro. Esta visão economicista é redutora de uma evolução da sociedade numa dimensão mais ampla, tem condicionalismos que, a breve prazo, se hão-de apresentar como muito fortes, está a gerar desiguldades e injustiças, está a criar a milhões de cidadãos europeus limitações de ordem democrática. Mas do ponto de vista económico fica mais barato manter esta situação do que dispender dinheiro para a criação de emprego.

O problema do emprego passa inevitavelmente por políticas económicas que tenham outra dimensão, outra valorização do social e da dimensão humana, e essas mudanças implicam necessariamente mecanismos económicos de controlo sobre a formação e utilização da riqueza. Quem tem a riqueza não quer abdicar dela, quer continuar a usufruir desta acumulação de capital.

Todos os dias nascem e fecham empresas em toda a Europa. Na Alemanha, por exemplo, noventa por cento não chega a atingir os cinco anos de vida, o que não significa que as pessoas fiquem mais pobres. Até porque se sabe que grande parte das empresas criadas são altamente subsidiadas pelo orçamentos de estado dos países membros. Essas empresas aparecem e desaparecem mas não significa que haja uma crise. As empresas europeias, aliás, estão hoje a dar lucros a níveis que já não atingiam desde a década de 60.

A economia não está mal. O que está mal são os mecanismos de formação e de distribuição da riqueza. Existir esta possibilidade do dinheiro poder ser utilizado para tudo menos para uma dimensão e uma evolução qualitativa no plano social, que a sociedade actual, com a riqueza que produz, impõe.

O conceituado economista norte-americano Paul Krugman considera que o problema do desemprego na Europa tende a agravar-se, pensando mesmo ser inevitável o advento de uma Europa menos igualitária para que se possam criar postos de trabalho. Qual é o seu comentário?

Isso leva-nos mais fundo. O que vai ser a sociedade do futuro?

Eu sou daqueles que penso seriamente que a sociedade actual continua a ter o trabalho como referência central e que a sociedade do futuro continuará a ter a mesma referência. E não há sociedade organizada no trabalho que evolua qualitativamente, com estabilidade e segurança, sem dignificação do próprio trabalho.Este facto irá emergir, vai ser cada vez mais evidente nas sociedades que estamos a construir.

Todas estas teorias económicas e financeiras que anunciam o fim do trabalho e falam hoje do emprego, amanhã da empregabilidade, não têm lugar (inclusivamente, assistimos nos últimos dois meses ao nosso primeiro-ministro e ministra do emprego a transportarem esta linguagem para o contexto nacional). Tudo isto com o objectivo de fugir à questão de fundo: o trabalho.

Ao longo do seu último congresso, a CGTP acentuou a tónica na questão da sociedade do futuro e da dignificação do trabalho. Não há políticas de emprego sem valorização e dignificação do trabalho. É este o confronto dos próximos anos, mesmo quando alguns avançam com teorizações novas de que estamos a caminhar a passos largos para a 'sociedade do lazer'. Se formos discutir o lazer numa consideração de afirmação do homem enquanto elemento activo, o lazer não é estar parado. Uma concepção de lazer ampla, projectada para o futuro, implica haver criação de emprego e actividade dos indivíduos, enquadradas noutros moldes. Mas não é uma sociedade parada, é uma sociedade em movimento, em que o indivíduo participa mais.

Quando nós olhamos para o problema do ambiente nos países e nas sociedades em desenvolvimento, pensamos que há necessidade em pôr um travão nessa destruição. O tratamento do lixo e dos recursos hídricos, bem como a área de serviço social vai precisar de mão-de-obra. Se temos uma sociedade que produz mais riqueza, inevitavelmente surgirão novos serviços prestados à sociedade, alargando e criando novas áreas de ocupação para as pessoas. A própria área da tecnologia tem grandes potencialidades na criação de emprego. Não falo das tarefas inerentes à sua criação, mas à sua aplicação e desenvolvimento na indústria. Se a Europa que ter um papel de condução e de afirmação no contexto mundial, tem de apostar no trabalho em áreas de qualidade.

Nós não estamos no limiar do desaparecimento da sociedade do trabalho e o trabalho terá de ser mais dignificado. Esta sociedade tem algumas pechas e isso vê-se pelas sua referências. Aquilo que caracteriza o êxito das pessoas não é o trabalho, são as atitudes de esperteza e de manipulação. Esta situação tem de ser invertida. É uma questão de tempo.

Entretanto, colocam-se outras questões de fundo que o mundo do trabalho conhece muito bem. Do meu ponto de vista, estamos numa das fases mais vivas de apreciação da velha questão que o sindicalismo sempre teve de abordar: a determinação do tempo de trabalho, o controlo desse tempo de trabalho e a retribuição do tempo de trabalho. Face aos avanços científicos e tecnológicos e às recomposições da sociedade, seja do ponto de vista demográfico e de ocupação do espaço, há toda uma necessidade de reconsideração sobre a determinação do tempo de trabalho ajustado, de quem controla e de como se efectua esse controlo. Os capitalistas têm consciência disso, mas claro que para eles é melhor fazer discussões técnicas sobre as perspectivas de evolução. Se é verdade que a sociedade atravessa uma fase de grandes alterações, também é verdade que aquilo que hoje parece ser uma realidade absoluta, amanhã deixa de o ser.

Tive recentemente oportunidade de assistir num debate à intervenção do presidente da Associação Nacional de Jovens Empresários, que falava da globalização baseado num conjunto de realidades tomadas como imutáveis: dar como adquirida a entrada tardia dos jovens no mercado de trabalho, cuja vida é suportada pelas famílias, dar como adquirido do facto de se empurrar as pessoas para fora do mercado de tarbalho depois dos 45 ou 50 anos, dar como adquirido esta distribuição da riqueza, dar como adquirido esta tendência demográfica de desertificação do interior e concentração no litoral, dar como adquirido um conjunto de outros factores que é verdade existirem mas que têm de ser mudados.

Esses pensamentos económicos que querem apresentar um futuro da sociedade assente numa projecção, num estudo científico que dá como inevitável realidades perenes do ponto de vista social, demográfico, económico ou jurídico, são absurdos.

Reflectindo a tal ideia de que a actividade económica, por si só, não funciona como único motor do desenvolvimento...

A economia é uma área científica recente e ainda muito frágil. Se há aspectos que a sociedade actual prova com evidência é que os economistas se enganam frequentemente e se esquecem nas suas projecções de um conjunto de outros factores que influenciam o andamento da sociedade. Penso que isto, hoje em dia, é uma evidência. Não digo isto por ser anti-economicista, antes pelo contrário, tenho até apreço pela visão de certos aspectos sociais analisados pela perspectica económica.

A salvaguarda de uma claúsula dedicada exclusivamente ao emprego no tratado de Amsterdão é, de algum modo, uma resposta concreta aos conflitos sociais que se têm vindo a agudizar?

Essa inclusão resultou da luta dos trabalhadores.

Esta extraordinária movimentação é fruto de novos dados e de novas referências decorrentes actualmente na Europa e que renovam a esperança dos sindicalistas. Não estamos à espera que todos os problemas se resolvam com um 'clique'. É preciso ir evoluindo através de pequenos passos, evidenciados pelos movimentos sociais em vários países europeus.

O movimento sindical português, embora distanciado dos centros de influência, conseguiu introduzir um importante conjunto de reflexões, contribuindo para que a sociedade portuguesa despertasse, através da sua intervenção, para questões como o emprego e as 40 horas e outras, que até agora não eram equacionados. Há um dinamismo social inerente ao sindicalismo que exerce influência sobre a sociedade em geral e uma reivindicação baseada na confiança e na perspectiva de resolução dessas questões.

Como reage, então, a um estudo recente que dá conta da descida das taxas de sindicalização na maioria dos países a nível mundial?

Toda a gente sabe que isso é verdade. Mas tal situação tem justificações e é preciso analisar as condições que estão na sua origem. Primeiro: porque é que existe uma quebra dos números?

Três razões essenciais. Primeiro, são os efeitos desta desorganização laboral e do aumento da precaridade do emprego, directamente relacionada com a globalização - não digo que globalização seja sinónimo de precaridade -, mas há efeitos da globalização que exploram até à medula esta dinâmica de precarização.

Por outro lado existem efeitos que levaram, em toda a europa, ao encerramento de centenas de sectores de actividade e que impuseram aos sindicatos, no imediato, uma redução significativa do número de associados. Os níveis de sindicalização foram crescendo ao longo dos anos e isto foi muito repentino. De um momento para o outro há um desarmar de um grande número de indústrias, de actividades ligadas ao sector primário e secundário, em particular, mas até no sector terciário. Este são alguns dos efeitos directos.

Depois existem aqueles que poderão ser considerados indirectos, mas que também conduzem à desindicalização, como a mobilidade do trabalho. Um trabalhador que esteja hoje no sector das pescas, amanhã no sector têxtil, que não tem trabalho fixo dentro do mesmo sector ou mesmo sectores diversos, circulando neste mercado de trabalho desorganizado, não tem um vínculo minimamente estável e não estabelece uma relação contínua com o sindicato. Por outro lado, os sindicatos não promoveram a aceleração da sua estrutura organizativa para responderem a esta situação. Isto hoje é uma evidência.

O que não quer dizer que os trabalhadores não estejam com os sindicatos. É o caso recente daquela grande empresa de distribuição norte-americana, cujo trabalhadores - cerca de oitenta por cento em situação precária, a maior parte jovens - entraram em greve durante quinze dias e tiveram uma influência enorme num país como os EUA. Aquela grande massa não tem o vínculo formal mas, do ponto de vista da consciência e de percepção dos seus interesses, vê que a organização e afirmação colectiva dos trabalhadores continuam a encontrar nos sindicatos um espaço e uma arma.

Há um outro factor que não pode deixar de ser pensado nesse relatório - e ele refere-se ao período 85-95 -, que foram os efeitos da queda do muro de Berlim. Toda a gente sabe que os antigos países do bloco de Leste tinham um número oficial muito elevado de sindicalizados, construído numa base que hoje já não existe. E isso eliminou, do ponto de vista formal, a existência de largos milhões de sindicalizados.

Entretanto, também vemos nesse relatório que existem países onde a corrente é em sentido contrário. Na África do Sul, por exemplo. Porquê? Por causa das liberdades devolvidas e da possibilidade de sindicalização. E isto vai acontecer noutros países, tendendo a crescer na China, na Índia, onde o emprego está a aumentar. Estes são os aspectos relativos aos números.

O sindicalismo, por conquista dos próprios sindicatos e dos sindicalistas, tem hoje um estatuto e uma dimensão na sociedade diferente: uma dimensão institucional, uma dimensão adquirida pela luta. Os sindicatos nem sempre foram considerados parceiros sociais. Participam em muitos órgãos e instâncias do estado através da luta que travaram, não foi nada que lhes fosse oferecido. Em muitas intervenções apresentam-se os sindicatos às pessoas como um elemento obrigatório na organização desta sociedade, levando a que muitos não se vinculem formalmente ao sindicato.

É inquestionável existirem atrasos na evolução da organização dos sindicatos face às mudanças operadas e um certo amolecimento do sindicalismo, reconhecido por toda a gente. Mas a sociedade exige um sindicalismo mais activo.

De que forma se pode devolver essa dinâmica, nomeadamente nas camadas mais jovens?

Há questões de diversa ordem que é necessário analisar. Questões de ordem cultural e sociológica, ligadas às caraterísticas de uma determinada fase histórica. As últimas décadas têm sido férteis na afirmação do egoísmo e do individualismo, levados à exaustão. E isto tem reflexos na formação das pessoas, não há ninguém que se possa considerar imune. É a sociedade de consumo, em que a um indivíduo são vendidos vinte electrodomésticos antes de lhe ser vendida uma ideia de organização da sua vida. É a sociedade de mercado e as suas contradições, na qual vivemos, que fazem desta fase histórica.

No desenvolvimento destas questões poderemos analisar outras. O sindicalismo como representação universal dentro de um país e no conjunto destes, é uma aquisição muito recente dos trabalhadores. A vida activa dos sindicatos tem cerca de 150 anos, mas o seu grande impulso deu-se na segunda metade deste século. Quando direitos e valores entram em choque e começam a ser postos em causa, é uma questão de tempo e de forma até que as pessoas despertem, conforme vão constatando os problemas. Há, portanto, que ter em conta todos estes factores, para entender esse quadro.

Mas verificou-se ou não, na última década, uma efectiva perda de regalias sociais e regressão nos direitos laborais?

Apesar de tudo, existem regressões e existem progressos. Estamos a falar de um período de tempo muito curto, é preciso não esquecer isso. Verificamos hoje que a precaridade do trabalho tem uma enorme dimensão e que essa precaridade arrasta muitos direitos.

Mas também assistimos a outra situação: o capital a escudar-se no estado. O capital a ter cada vez mais poder político dependente de si...

A célebre teoria de 'menos estado, melhor estado'...

Isso é uma ficção. Menos estado independente e mais estado dependente dele. Diz-se que não devem ser as empresas a responsabilizar-se por determinadas áreas de intervenção social, deve ser o estado. Que as empresas não devem pagar tanto para a segurança social, deve ser o estado. Que a protecção face ao desemprego não deve ser suportada pelas empresas, deve ser pelo estado. Ou seja, uma transferência de responsabilidades. O poder económico põe e dispõe, domina e cilindra o social e vai dominando o poder político. É preciso reconsiderar o estado na sua dimensão, porque há uma subversão absoluta do seu papel.

Numa reunião que tive há uns dias, um destacado dirigente do PSD perguntou-me se eu estava ou não de acordo em libertar as empresas dos encargos com a segurança social e outras áreas para que tenham mais possibilidade de criação de emprego. Disse-lhe que até gostava de estar de acordo, mas andamos há vinte anos a ouvir esse discurso e o sector privado não tem criado emprego, tem diminuido. Veja-se os esforços feitos actualmente em França, na Alemanha e em Itália no sentido de encontrar mecanismos para o estado ser isento na criação de emprego e empurrar compromissos efectivos para a criação de emprego.

O estado português, à semelhança dos outros países europeus, subsidia hoje mais emprego do que fazia há vinte anos. Só que subsidia de forma indirecta e, às vezes, coloca os subsídios nos bolsos dos empresários que não chegam sequer a investi-los no emprego.

O orçamento da segurança social é usado a torto e a direito para incentivar o sector privado a criar emprego, que muitas vezes não chegam a ser aplicados no emprego. Esta é a questão de fundo que nos leva a uma outro problema, mais delicado, a que já anteriormente me referi: o problema da distribuição da riqueza.

É um escândalo aquilo que se está a passar. Então em Portugal é um escândalo monumental. Ou pomos um rápido termo a este percurso, ou Portugal transforma-se num paraíso para o capital no que concerne à fiscalidade. Nós temos capitalistas a não pagar impostos e tal não pode continuar. Se isto continua assim, claro que não poderá haver soluções para o emprego.

Esta lógica, em que o capital encontra um cenário político propício a transferir responsabilidades suas para o estado, desvia também os trabalhadores do efectivo confronto de classes - e esta é uma jogada política de grande alcance, uma estratégia do capital moderno - para, muitas vezes, aceitar as migalhas do estado, quando lhes são dadas.

Neste país, muitos jovens vivem por um circular constante na formação profissional ou subsidiados pelas famílias. Lembremos que grande parte dos alunos a frequentar o ensino superior retardam a entrada no mercado de trabalho à custa das famílias. O confronto não é tão visível para esses jovens e quando se anunciam medidas pontuais, as chamadas políticas sociais de emprego, elas desviam os jovens desse confronto.

No sector terciário temos centenas de milhar de jovens extremamente mal pagos - há quem lhes chame às vezes os novos proletários, e muitos deles são-no -, e que não adquiriram o seu estatuto na sociedade. Ganham o salário mínimo, umas vezes um pouco mais, outras um pouco menos, sendo-lhes vendida uma imagem de vida e de sociedade que não tem absolutamente nada a ver com o seu real estatuto. Mas no dia-a-dia eles vão-se confrontando com esse panorama e vão reagindo, como acontece já em muitos casos.

Mas estarão os estados e governos europeus preparados para absorver todas estas mudanças e dar-lhes uma resposta a problemas sociais, como o desemprego e a exclusão?

Até agora, podemos dizer que estes problemas não tiveram respostas sérias. Mas isso começa desde logo no emprego. As chamadas políticas de emprego da UE, praticadas nos últimos anos, não são mais do que fazer de conta e descobrir, de quando em vez, uma nova designação para o problema: agora é a empregabilidade. Anda-se nisto, desviando as atenções do essencial. É um problema de fundo, não se resolve sem ir à sua origem: à globalização da economia.

Nesse campo, há duas dimensões a ter em conta: o desemprego e a exclusão. Hoje assistimos ao desemprego generalizado em todas as sociedades, exceptuando um ou outro país nórdico com economias muito específicas. Mas no chamado mundo ocidental, com economias ditas desenvolvidas, a exclusão tem-se acentuado em todos os países. Nos países com maiores rendimentos, o fosso entre ricos e pobres tem crescido. Os Estados Unidos, nesse aspecto, são um dos piores exemplos do mundo, onde os problemas que se geraram estão longe de se imaginar como serão resolvidos. Mesmo em países como a Alemanha, a França ou o Reino Unido, que não têm grandes massas de excluídos.

Chega-se ao cúmulo de admitir que a sociedade do futuro seja já estruturada em função da assumpção à partida da existência de excluídos. Usando uma imagem simplificada, haveria indivíduos que já nem sequer teriam o direito de entrar na sociedade e nos seus mecanismos normais de funcionamento. É um absurdo pensar que possam nascer cidadãos com a marca da exclusão. Mas há quem pense assim. É verdade que a exclusão existe, mas daí a pensar-se que a sociedade irá estruturar-se e organizar-se desta maneira vai um grande passo.

Que medidas adoptar, então, para contrariar esta tendência?

Há uma quebra evidente na valorização e dignificação do trabalho, mas estes valores têm de ser retomados, não vejo que haja outro caminho. As soluções para a exclusão passam pela aplicação destas medidas. Não tenho dúvidas quanto a esse facto. E isso tem um nome concreto: direitos do trabalho. Não são nenhuma benesse concedida aos trabalhadores, são uma dimensão inevitável, indispensável para a dignificação do trabalho. Ter direito a um horário, a controlar esse tempo a sere cativadas pelo nível de retribuição, não como hoje acontece. O ser humano é inteligente, e sendo mal pago e maltratado no trabalho ele não trabalhará da mesma forma. É preciso mais realismo na sociedade.

Parafraseando Óscar Lopes, cada avanço do capitalismo é uma vitória para os trabalhadores?

É uma corrente de pensamento extraordinariamente interessante, com um fundo marxista, que projecta adeptos de sensibilidades múltlipas. Aquire uma certa dimensão, na medida em que é a pressão dos trabalhadores, a evolução da sua organização e afirmação da sua dignidade e dos valores de solidariedade e fraternidade, que põe em evidência a necessidade de mudança e de transformação.

Então, a exclusão é ou não inevitável?

Uma das armas mais eficazes para combater a exclusão é a criação de emprego. Algumas teorias sociais-cristãs da igreja têm componentes humanistas muito importantes, mas quando vejo o nosso primeiro-ministro falar penso que ele pretende afirmar um pensamento social-cristão de retrocesso, não de progresso. Este pensamento de solidariedade em dimensão de caridadezinha, apelos a que sejamos todos um pouco melhorzinhos, sem ir ao fundo das questões, é um pensamento que eu definiria como um pensamento social-cristão no retrocesso.

Por vezes, estas pessoas afirmam que o verdadeiro problema hoje em dia é a exclusão, já não é o desemprego. Que a legião de excluídos provém um pouco de todas as camadas sociais e que, por isso, não existe uma relação directa entre trabalho e marginalização. Isto é uma subversão. Não recuso a ideia de haver na sociedade, por um grande número de razões, situações concretas de exclusão em indivíduos de estratos sociais diferentes, mas se fizermos um estudo sobre a origem dos verdadeiros excluídos, a esmagadora maioria é oriunda das camadas trabalhadoras e a sua exclusão resulta de um conjunto de factores, em que o trabalho será, concerteza, um dos espaços de onde terão sido afastados.

Há que ver a exclusão em toda a sua dimensão e analisar-se o trabalho como referência central do indivíduo, repensando políticas de educação, formação e qualificação.

Mas como será possível inverter esta tendência sabendo que a economia mundial é dominada por uma dezena de países?

Não é por uma dezena de países, é por uma dezena de multinacionais. As multinacionais são hoje estados acima dos estados. Julgo que a maior multinacional do mundo tem hoje um capital equivalente a um 26º orçamento a nível planetário. Ou seja, existem apenas vinte e cinco países com um orçamento de estado superior a esse.

Alguns economistas apresentam o modelo americano por contraposição ao modelo europeu. Esquecem-se que um dos pontos centrais para ver o impacto da globalização é a ultrapassagem de fronteiras. A dinâmica da globalização tem como suporte central a sobrevalorização do económico, e do financeiro dentro do económico. Ou seja, aquilo que é o resultado da realidade vivida dentro das fronteiras dos EUA não pode ser lido apenas dentro dessas fronteiras. O dinheiro que circula, a estratégia das empresas, a produção das empresas, a riqueza que é atraída para dentro dos EUA é produzida a partir de relações multifacetadas com meio mundo. Como é que se pode fazer considerações sobre o nível de emprego e de estratégia social de um país desligando-o da realidade mundial?

Mas isso, claro, levar-nos-ia a analisar outras dimensões teóricas da globalização que os próprios teóricos do pensamento neo-liberal não querem abordar. Interessa-lhes dar como adquirido um conjunto de factores e fazer comparações simplistas. Isto salta à vista de toda a gente.

Há que ter também em conta um outro aspecto. Esta ideia de globalização parece ser uma ideia nova na sociedade, mas não é. É um sentido afirmado na organização das sociedades desde há séculos, agora concretizada em novos moldes, usando meios materiais e comunicacionais modernos. Por isso se deve analisar as realidades dos países para além das suas fronteiras internas.

Não há ninguém que tenha uma varinha de condão com o poder de mudar tudo. A sociedade está, mais do que nunca, complexizada e o caminho vai ser feito de contradições e de movimentações sociais, que irão produzir mudanças a uma velocidade maior do que aconteceu em qualquer outro momento da História.

Entrevista conduzida por Ricardo Jorge Costa


  
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Autoria:

Carvalho da Silva
Secretário-Geral da CGTP
Carvalho da Silva
Secretário-Geral da CGTP

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