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Entrevista com Júlio Cardoso

A Página - Gostaria de começar esta entrevista colocando uma questão que resulta de uma certa aproximação aos palcos, de conversas, etc.: qual a relação que existe entre o Teatro e as escolas? Às vezes ouve-se certos grupos de teatro dizer "vamos montar uma peça para as escolas". Ora, conhecendo eu os dois meios queria que abordasses a questão neste sentido: Teatro para as escolas ou nas escolas?

Júlio Cardoso - A pergunta que me fazes é muito pertinente, muito pertinente mesmo, aparentemente de fácil resposta, mas talvez de uma certa complexidade, na medida em que teríamos uma longa conversa sobre isso. Ainda ontem, aqui, neste mesmo teatro estiveram 87 alunos de Torres Vedras do 12º Ano que vieram numa viagem ao Norte e acharam que deviam ver o espectáculo da Seiva Trupe. Ora bem, este espectáculo não é para as escolas, é para um público abrangente. Quando se fala em teatro para as escolas, eu fico sempre um bocadinho de pé atrás, porque infelizmente tem havido uma certa negligência na origem do próprio espectáculo. Do que as escolas andam sequiosas é de uma animação sócio-cultural. Isto tem a ver com as estruturas, digamos assim, tem a ver com a reestruturação do ensino, se quisermos. Ora, o teatro é uma Arte que congrega em si várias outras artes, e é por consequência uma Arte destinada para a animação sócio-cultural. Mais: junta-se depois aqui o útil ao agradável que é quando se vai buscar um ou outro dramaturgo da literatura portuguesa ou da literatura mundial que faz parte dos programas de estudo do ensino secundário. Eu penso que "teatro para as escolas" é um erro. As companhias de teatro devem abrir as portas para o público em geral, e naturalmente as escolas devem ir ver esse tipo de teatro. Devia haver em todas as escolas do ensino secundário, em todas sem excepção, grupos de teatro, embora se reconheça que há falta de orientadores. Analisando o actual momento histórico que atravessamos - e refiro-me a uma década atrás e à próxima década - que é um momento de cultura inculta, eu sou contra o tal teatro para as escolas que tenha mais de trinta alunos...

P. - Os alunos não descodificam...

J. C. - Não descodificam, a não ser em casos excepcionais, caso de alunos do 12º ano com um enquadramento de professores. Caso contrário, o público destinatário não recebe nada. Tenho experiência disso até como espectador e tenho até a experiência de conversas com colegas que me falam da crueldade que é, por vezes, representar...

P. - Não funciona...

J. C. - Não funciona. Funciona sim, por turmas, integrando espectáculos normais. Parecendo que não, no meio desta selva ainda vão aparecendo professores, e alguns até, novos, - nós sabemos onde eles estão, sabemos perfeitamente localizá-los - que telefonam e dizem: cá está o professor de Espinho, cá está o professor de Famalicão, etc. e nós fazemos um preço especialíssimo para aquele professor. Depois funcionam coisas extraordinariamente cativantes: uma delas é o próprio convívio humano, ou o próprio professor que aproveita de uma forma serena para falar aos alunos. Já aconteceu o público ir embora e os alunos virem para o bar falar connosco e sairmos daqui à uma da manhã quando o espectáculo nem tinha a ver com os programas de ensino. Mas a conversa levou as pessoas a questionarem, levou à ginástica mental. Isto é uma forma muito salutar de se trazer público ao teatro. Eu penso que um dos problemas gravíssimos deste país é o problema da formação. Estou a falar de um certo desencanto. Vejo o problema do ensino em Portugal tão grave que não sendo um homem velho, penso que a solução já não será para os meus dias. É que, quando se começa a frequentar o Teatro nós começamos logo a sentir a necessidade de participar mais, de interrogarmos mais, e penso que isso é que é fundamental, quer dizer, termos um espírito de abertura, chegando a um certo ponto e termos um espírito ecuménico, uma perspectiva cósmica da vida. É isso que falta realmente no nosso ensino.

P. - Podemos dizer que Teatro é um local privilegiado de formação...

J. C. - Sempre foi: desde que o homem é homem, perdemos na bruma da história a necessidade do teatro e das formas para-teatrais. É por isso que eu tenho uma fé enorme no futuro do teatro. Hoje é extraordinário o que as tecnologias de ponta podem fazer, nem precisamos de sair da cama, mas há uma coisa que é insubstituível e que é a necessidade de comunicar, a comunicação viva. O que estamos aqui a fazer? No fundo, é teatro, eu estou a falar e tu estás a ouvir-me. O teatro é a forma de comunicação mais pura, porque o emissor e o receptor têm o mesmo sangue a correr nas veias, quer dizer, não há cibernéticas possíveis capazes de substituir a comunicação viva.

P. - Mas o teatro não pode servir-se dos novos meios de comunicação?

J. C. - Pode e deve. É evidente que a comunicação humana deve ser sublinhada, se for realmente para melhorar essa comunicação, por toda a tecnologia. Por exemplo, se compararmos o teatro e a música vemos que a música é uma arte mais abstracta e o teatro uma arte mais concreta. Se na música houver que utilizar uma amplificação, uma boa aparelhagem, por que não, mesmo numa peça polifónica? E mesmo o teatro e a música têm uma certa complementaridade...

P. - Por falar em música, hoje os actores não cantam muito?

J. C. - No teatro sempre se cantou, por exemplo, na opereta, que era muito popular em Portugal e que se perdeu. Depois houve uma fase mais de teatro dramático em que se cantou menos. Depende das épocas, são formas de comunicação.

P. - Gostaria de colocar ainda uma questão: há ou não um fio condutor na estética da Seiva Trupe?

J. C. - Não. Nós aqui, desde o princípio que achamos que o futuro do teatro estava exactamente nos públicos que não iam ao teatro. E então o nosso projecto é um projecto abrangente. Eu pergunto-me a mim mesmo se nós tivessemos uma linha estética e temática se o público já não estaria cansado disto, ao fim de um quarto de século que é a nossa existência. Quando montamos uma peça estamos sempre a pensar em públicos destinatários específicos, é para atingir um determinado público, embora naturalmente seja também para o público em geral. Para isso preocupamo-nos sempre em ir buscar o texto para atingir esse público, e o director para dirigir esse espectáculo. E não estamos nada arrependidos disso. De modo que há espectadores da Seiva Trupe que sempre que vêm ao teatro encontram o seu interesse renovado. Por exemplo neste momento estamos a montar um espectáculo para as mais amplas camadas da população, mas temos ao mesmo tempo em cena um outro espectáculo que é para outros públicos. Montamos uma peça para a Academia do Porto que está em cena. Há gente a acabar as licenciaturas e que nunca tinham vindo ao teatro e têm vindo e já vieram duas e três vezes. Mas, lá está, isto é propositado, faz parte do nosso projecto, são duas estéticas completamente diferentes, duas temáticas totalmente diferentes.

P. - Uma última mensagem aos professores?

J.C. - Há uns anos havia um conjunto de professores que tinha uma grande paixão pelo ensino do Português e traziam permanentemente os seus alunos ao teatro. Esse número diminuiu e a razão é que muitos deles hoje estão reformados. Hoje há vários actores neste país que são oriundos desse público. Ainda hoje vejo aí muitos licenciados que recordam com saudade esses professores. Quando a tutela proporcionar aos professores a paixão de ensinar haverá novas quantidades substanciais de novos públicos para o teatro. Hoje concluem-se coisas verdadeiramente dramáticas: há professores de Português que nunca viram uma peça de teatro. Nós chegamos a ter turmas que durante um ano vinham três e quatros vezes ao teatro. Muitos ainda hoje vêm ter comigo e lembram-se de quem pela primeira vez os trouxe cá. Nota-se até na sua formação, no seu modo de falar, são outros cidadãos... E mesmo hoje se pudermos falar que há uma boa geração de políticos, quase todos eles passaram pelo teatro: TEUC, CITAC de Coimbra, TUP do Porto que foram autênticos alfobres. São políticos mais abertos, com outras perspectivas...

Entrevista conduzida por Guilhermino Monteiro


  
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Autoria:

Júlio Cardoso
Escritor
Júlio Cardoso
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