Tempos livres sugerem-me viagens, partida, descoberta. E, para mim, partir é uma necessidade. Uma obsessão. Quase um modo de vida. Via aérea é como eu mais gosto de viajar. Já visitei a Índia, já mergulhei nas praias de destinos exóticos, já fui aos Andes. Sem ostentações, posso dizê-lo, já dei várias vezes a volta ao mundo. África, América, Europa, Oceania, Ásia são, no meu caso, destinos frequentes. Passo a vida a voar. Sou um doente das viagens aéreas. Um incondicional do voo. Felizmente nasci com recursos para praticar esta paixão. Assumo: sou um privilegiado. Nem todos têm possibilidades para viajar assim. Nos tempos livres, perco-me em passeios aéreos. Habitualmente saio aqui do Porto. Fica-me mais à mão. Parto sem programa, só pelo gosto de partir. Dispenso bagagem, fatos, gravatas e essas coisas. Arranco sozinho, com a roupa que trago no corpo. Em casa, aos fins- de-semana, já se sabe: almoço e marcho. Sem obsessões, prefiro embarcar à tarde. Livro na mão, entro no quarto, trato dos ultimos preparativos e logo avanço. Embarco sem passaporte, na horizontal, deitado na cama e de barriga para o ar. E assim, imediatamente, parto aereamente às voltas por aí. Percorro roteiros extraordinários, faço peregrinações de sonho. Às vezes, esbanjador, janto em restaurantes caros em Paris, alojo-me em hotéis de luxo em Caracas, mergulho em águas mornas de piscinas milionárias. Confesso, há dias em que me fogem as asas para os prazeres da carne. Brasil, Carnaval, duas de samba, mulatas com o diabo no corpo. E frequento bordéis de luxo em Moscovo, espreito danças de ventre nas Arábias, mergulho em orgias de vinho nas atmosferas suadas da Tailândia. Viajo muito. E a vida, este mundo pá, não é só pobreza, e fome, e guerra. Rosários negros de sem?abrigo em São Paulo, a tropeçar aos pés dos arranha-céus. Também é sexo e caipirinha. Incontornável é a luz de New York. Passo sempre por lá. Contemplativo, visito museus, bibliotecas, monumentos, vou ao Central Park com José Saramago: 'A água do lago é opaca, espessa, custa a crer que seja o nadar natural que faz avançar os patos. Provavelmente navegam a motor... Chove. As gotas miúdas que vão caindo reúnem-se nas folhas e nos ramos das árvores, depois deixam-se tombar em pingos grossos sobre as cabeças dos contemplativos.' De cabeça molhada, arranco para Manhattan: o Woody Allen! De táxi!: 'Eh pá, logo à noite no ... !'. E, num aceno de mão, perco-lhe a voz no trânsito, ele abraçado ao clarinete, olhos míopes a esbracejarem por detrás dos óculos. Sempre o mesmo Woody... Cavaqueio sobre a vida com os negros do Harlém, grudados às paredes, em becos sebados de lixo, bourbon e droga. Ao longe, inquietos, acordes de gaita de beiços a marcar o ritmo de sussurrantes dolências. Blues arrastados, com letras pretas. Deprimentes. Levanto voo, parto para outra. E, em plongé, aproveito a luz de fim de tarde para fotografar a Estátua da Liberdade: Good by, lady! Aterro, os olhos em sobressalto esparramados no tecto e nas páginas do livro. Cansam- me, espapaçam-me estas viagens aéreas de fim de semana! Sinto-me sufocado, prisioneiro deste tempo e da nave caseira. Ar livre! É preciso fruir os tempos livres! Optimismo! E saio de casa, motivado. Como se não houvesse pobres aqui, nem fome, nem letras pretas. Do pescoço, ao dependuro contra o peito, o pretexto fotográfico. Guio-me pelo cheiro a mar nestas minhas passeatas sensitivas. Na Foz, embarco nas ondas e nas asas das gaivotas. Vou no rom-rom do carro eléctrico a olhar o Douro. Gozo o prazer de comer castanha assada, cascas transgressoras atiradas no passeio. A felicidade, enfim. Evoco Paul Eluard, os tempos da Resistência e da ocupação nazi: 'Paris a faim/ Paris a froid/Paris ne mange plus des marrons dans la rue'. Memórias negras que esconjuro a comer mais castanhas. Demoro-me na peregrinação do gosto. Almendrados e bolinhos de bacalhau, sem roteiro certo. E andando entre paladares pela Ribeira, Miragaia, Sé, Mouzinho da Silveira e por aí, passo a mão pelas paredes das casas e pelos muros. Sinto a textura, o talhe grosso e áspero da cidade. E desta gente. Recolho-me com os pássaros, na Praça. Bandos de asas anónimas e negras a desenharem volumes de chilreios redondos, no céu de fim de tarde. Posto-me na paragem do 52, a olhar D. Pedro e o cavalo. Tarda o autocarro! E enquanto espero, no cimo da árvore esquelética e negra que há ali, de repente, um passarinho. Vivo e feliz, irrequieto. Desde há anos, vem sempre assinalar este findar de roteiro, o passarinho. Somos velhos conhecidos, sei-lhe os volteios entre ramos, por cima da cabeça. E como sempre fez, como sempre faz, entra em epilepsia de asas e cumprimenta-me. Um aceno quente, material e líquido, desenhado em nódoa branca no casaco. Saudação de pássaro com roteiro aéreo. E com tempos livres. Como eu. Título: Incontornável é a luz de New York
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