Página  >  Edições  >  -  >  Educação, Praça Pública e Ciências da Educação

Educação, Praça Pública e Ciências da Educação

ou De Como a Educação Caiu, de uma Maneira Caótica, na Praça Pública

'Numa espécie de grito de alarme, ainda há pouco se chamava a atenção para a descida quase vertiginosa, de ano para ano, do "nível educativo" das massas escolares'. Não se trata de mais uma conclusão da investigadora-coordenadora do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, Filomena Mónica (FM), a propósito do estado lastimoso do nosso sistema de ensino, mas uma citação de M. de Lurdes Belchior Pontes, de 1969, no artigo 'A Crise do Ensino Superior: Relações com o Ensino Secundário' (A. Sedas Nunes, A Universidade na Vida Portuguesa ) datando o referido 'grito de alarme' de 1966, num texto de José G. Herculano de Carvalho, 'O Ensino em Crise' (separata da Revista Rumo, Agosto de 1966). Outras afirmações de igual teor poderíamos ter escolhido, mas preferimos esta, dadas as similitudes de tom e por datarem de tão glorificada década.

Porventura, os José M. Fernandes de há trinta anos atrás também teriam sentido um não menos 'verdadeiro murro no estômago', e os Torcato Sepúlveda de então teriam igualmente feito pele-de-galinha com as 'arrepiantes' histórias a propósito do tema contadas por eventuais amigos. Por outro lado, E. Prado Coelho (EPC) veio juntar a sua voz ao coro denunciador da vaga bárbara e niilista que avassala o sistema de ensino, como verberou J. Carlos Espada, dizendo este último que FM 'acertou em cheio'. Enfim, a investigadora-coordenadora teve a aplaudi-la e a secundá-la toda uma plêiade de especialistas em diversas áreas, mas nenhum, dos referidos pelo menos, na área em apreço. Mais: EPC, especialista em literatura e crítica literária vê-se obrigado a chamar 'indigentes' às observações de FM em matéria de literatura.

Assim, praticamente toda a gente é perita em educação. E, aparentemente, quem fala de educação ou escreve sobre ela, utilizando um vocabulário e uma construção de frase simples, não só exprime melhor a sua essência como garante a eficácia da sua relevância (de acordo com as palavras sábias do Ministro da Educação na sua crítica do 'eduquês').

Felizmente, estes dois lugares-comuns têm sido redonda e eficazmente postos em causa pelo desenvolvimento das Ciências da Educação. De facto, nem toda a gente pode falar com perícia, com a fundamentação necessária sobre a educação e não se pode desenvolver ciência com um vocabulário incapaz de exprimir a sua complexidade. Pelo contrário, falar de uma maneira informada sobre a educação é tão difícil como falar da construção de uma ponte ou da arte moderna de uma maneira informada. Claro que isto não significa que não tenhamos o direito, na nossa vida de todos os dias, de falar sobre a educação, sobre a educação dos nossos filhos, por exemplo. Claro que temos este direito, mas com o direito vem o dever - e certamente não devemos falar publicamente sobre a educação sem tomar em conta o que a investigação e a experiência pedagógica nos podem dizer sobre este domínio de saber, simultaneamente tão complexo e tão minado pelos obstáculos da 'familiaridade do social' (nas palavras de A. Sedas Nunes, no seu muito citado livro Questões Preliminares Sobre as Ciências Sociais, Lisboa, Presença, 1977). Neste sentido, há alguns anos atrás, escrevemos: 'o facto de os professores estarem envolvidos na construção da "normalidade" implica que toda a comunidade s(i)nta que tem não só o direito, mas mesmo o dever, de interferir na esfera de competência do professor'.

De facto, podia haver um pouco mais de pudor, e até de respeito, por parte daqueles recentemente têm sido sobretudo referidos na imprensa sociólogos e engenheiros, mas também, e, como já acima se disse, críticos literários, como EPC, e historiadores, como Vasco Pulido Valente - que escrevem sobre e/ou trabalham no campo da educação sem terem nem uma formação académica neste campo, nem um conhecimento aprofundado dos debates e da evolução das Ciências da Educação desde os finais do século XIX. Imagine-se, por exemplo, um sociólogo da educação a escrever um artigo, num jornal português, sobre as aplicações industriais de uma determinada investigação no âmbito da química. Tratar-se-ia de uma opinião, mas...

'Durante a década de 1980, multiplicaram-se os Cursos de Pedagogia, de Psicologia e de Ciências da Educação. O seu fim consistia em inculcar uma versão aggiornata de Rousseau. O resultado está à vista' (FM, 28.02.97, O Independente). Que resultado? O que é que está à vista? Tudo se passa como se FM tivesse tomado um comboio nos anos 60, tivesse, entretanto, adormecido e acordado nos anos 90 sem dar conta que o comboio não é o mesmo, os passageiros não são os mesmos e a própria companhia transportadora é outra. Isto de duas maneiras:

1. A primeira já foi por nós mencionada em anterior artigo (Público de 1 de Março), isto é, os alunos não são os mesmos, porque os filhos das classes populares tiveram acesso ao secundário de uma forma muito ampla. Por isso não nos alongaremos aqui sobre esse aspecto.

2. Do 'laissez-croîte' de Rousseau aos nossos dias não há só aggiornamento, há mudanças de forma e teor críticos, que só por delicadeza não dizemos ser grosseiro não mencionar. De facto, entre a pedagogia negativa de Rousseau, as denúncias da pedagogia e das instituições pedagógicas de Foucault e Bourdieu, até à aplicação dos processos da dinâmica de grupo ao campo pedagógico, passando pela pedagogia terapêutica e institucional, há toda uma massa crítica que é estranho ser simplisticamente rotulada como mero aggiornamento das perspectivas de Rousseau. Tal é tão grosseiro como, porventura, dizer que nas ciências sociais nada de novo se passou, a não ser versões aggiornatas de Durkheim, Weber ou Marx. E como é que se pretende não saber que as ciências da educação já há muito integraram criticamente a fase, essa sim rousseauiana, das escolas libertárias de Hamburgo ou das experiências de Summerhill?

Há, efectivamente, um diálogo em curso, já há algum tempo, entre a pedagogia emancipatória (de raiz rousseauiana) e a disciplina académica de Sociologia da Educação. FM, e numerosos outros comentadores dos artigos publicados por essa socióloga, têm-se demonstrado o que se percebe - ignorantes desse diálogo. O problema, então, é como divulgar, de uma forma porventura mais eficaz, a um público muito maior do que o das Ciências da Educação (mas também incluindo os docentes e investigadores desse campo) o desenrolar, e as lições, do citado diálogo. Assim, o que nos move não é o reclamar da propriedade sobre os discursos e práticas educativas, mas o inserir esses discursos e práticas, e sua avaliação, no contexto da própria evolução do campo. Se o problema da SIDA não pode ser discutido, seriamente, fora do contexto médico-científico e sociológico em que foi construído, o sistema de avaliação e os programas de ensino, da mesma forma, não podem ser discutidos e avaliados fora do contexto científico educativo e sociológico em que se desenvolveram.

A resolução dos problemas equacionados no âmbito da educação parece depender, portanto, em grande parte, do fortalecimento e expansão do próprio campo das Ciências da Educação em Portugal, processo esse gravemente prejudicado por um regime político basicamente anti-educativo que durou meio século! Felizmente, nos últimos anos este processo de fortalecimento e expansão ganhou novo ímpeto. Contudo, a sua consolidação levará ainda mais alguns anos para se realizar. A nossa esperança é que esse desenvolvimento das Ciências da Educação possa tornar mais difícil o comentário pouco reflectido, pouco fundamentado, obrigando assim todos os que fazem comentários no domínio da educação - começando pelos próprios políticos com responsabilidades educativas - a terem algum cuidado, pelo menos de não dizerem tantas asneiras e de pensarem duas vezes antes de assumirem tantas verdades 'meio-cozinhadas' (ou, como dizem os ingleses, half-baked truths ).

Stephen R. Stoer e António M. Magalhães, Docentes da Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade do Porto


  
Ficha do Artigo
Imprimir Abrir como PDF

Autoria:

António M. Magalhães
Univ. do Porto
Stephen R. Stoer
Fac. de Psicologia e Ciências da Educação, Univ. do Porto
António M. Magalhães
Univ. do Porto
Stephen R. Stoer
Fac. de Psicologia e Ciências da Educação, Univ. do Porto

Partilhar nas redes sociais:

|


Publicidade


Voltar ao Topo