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A Paixão Enquanto Escrita

Uma retrato de Francisco Duarte Mangas

A escrita literária é uma paixão que necessita de tempo para ser cultivada e de dinheiro para se exercer em exclusividade. A afirmação pode soar um pouco crua, mas é mesmo assim. Os subsídios atribuídos pelo Estado são escassos e destinam-se, muitas vezes, a escritores que contam já com um certo nível de reconhecimento público e quota parte de mercado. Escrever um livro é, assim, um exercício de persistência e dedicação. E mérito. Um prémio pode mudar uma carreira.

Aconteceu com Francisco Duarte Mangas, em 1993, quando ganhou o prémio Carlos de Oliveira, em ficção, com "Diário de Link". Uma história - ou uma viagem, se preferirmos - "por montes e pela memória da guerra civil espanhola". Anteriormente, tinha publicado dois livros de poesia - "Cavalo dentro da cabeça" (1985) e "Espécies Cinegéticas" (1987) -, tendo ainda organizado e prefaciado a Antologia Poética de João Penha, e colaborado em obras colectivas.

Licenciado em História pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto, começou a sua vida profissional como professor de Geografia e Português, para mais tarde iniciar uma carreira jornalística, que ainda prossegue. Este percurso começa em "O Primeiro de Janeiro", com passagem pelo "Notícias Magazine" e "Época", e, por fim, "Diário de Notícias", onde trabalha desde 1992.

"Poderá ser um lugar comum afirmar que a escrita é a necessidade de dizer algo mais, de ajudar um pouco à transformação do mundo", explica, mas esta é provavelmente a melhor forma que encontra para a definir, dando "voz àqueles que a História silencia". Apesar de não se considerar como um representante desta corrente literária, Francisco Mangas atribui a sua motivação aos autores neo-realistas (como Cesare Pavese e Vasco Pratolini) próximos de ideais marxistas, um facto que, talvez ainda hoje, "incomoda muitas pessoas, principalmente aqueles que pretendem regressar ao conceito de "arte pela arte".

A expressão política é, talvez por esta razão, uma das características mais marcantes nos seus livros. Uma faceta presente em "Diário de Link" ou, mais recentemente, em "Ladrão de Violetas", com a guerra civil, na Espanha dos anos trinta, entre republicanos e franquistas, sentida como o culminar de um , de uma luta entre o bem e o mal. Desta vez, o bem sai derrotado, mas "a realização da utopia que personificava esteve prestes a concretizar-se. Naquele tempo estivemos perto de uma Ibéria livre e solidária".

A sair...

A par com a ficção e poesia, a literatura infantil suscita-lhe um especial interesse. Chegou a escrever uma história para crianças, mas o resultado final acabou por constituir um livro sem idades. Não era exactamente o que pretendia, mas tratou-se de uma experiência, "difícil", no seu entender, que gostaria de repetir.

Para este ano, tem previsto o lançamento de um livro, ainda sem título definido, versando um dia de caça, no qual volta a referenciar a guerra civil espanhola. A última vez que o fará, promete, por achar um tema já bastantes vezes explorado nos seus textos.

A narrativa desenrola-se em dois tempos distintos, mas unidos pela fatalidade de um mesmo dia: umas quaisquer 24 horas, ocorridas em 1912, na região de Cabeceiras de Basto e, algumas décadas mais tarde, no cenário da guerra colonial. É a história, ou histórias, de dois caçadores divididos pelo objectivo da caça - animais furtivos, o primeiro, homens, o outro -, cujos enredos se entrecruzam ao longo das páginas.

O ambiente do tempo mais recuado, retratado através das incursões monárquicas pós-instauração republicana, das ajudas e traições ocorridas quando os opositores ao regime franquista procuravam o outro lado da fronteira em busca de exílio, é um prenúncio do que se adivinha no outro: a revolução do 25 de Abril. "Uma história que tenta procurar perceber o que são os portugueses e como encaram essas pequenas traições", acontecidas na realidade, apesar de aqui não passarem de ficção.

Uma outro projecto, igualmente no prelo, versa a aproximação do final de século,com todos os receios e visões apocalípticas que a chegada de uma nova era pode comportar nas pessoas. O sinal dessa chegada é expresso através de um gigantesco engarrafamento de trânsito, em que todos os automóveis ficam retidos ao longo de um dia. Durante esse tempo, alguns abandonam os veículos e seguem a pé, enquanto outros persistem na espera.

Um fenómeno bizarro, que acaba por dar o mote para o encontro entre narrador e restantes personagens: um enxertador e um grupo de operários. Cada um, à sua maneira, encara o acontecimento com medo e perspectiva uma certa sensação de fim do mundo, exceptuando o narrador.

Pelo meio, cruza-se a história paralela de uma profetisa, baseada em factos verídicos ocorridos em meados do século passado, que pretende transmitir uma ideia oposta: a chegada do "sol do mundo novo", anunciada pela mulher. A dinâmica da obra é movida por este confronto, que resume, afinal de contas, uma tensão e um confronto permanente entre dois mundos.

E a inspiração?

Francisco Mangas diz que, apesar de existir uma ideia inicial, mantida como arquétipo ao longo do enredo, surgem sempre variações a esse ponto de referência. A evolução da escrita é que sugere e determina esses caminhos diferentes que, ao longo da história, se harmonizam com outros pontos de referência. liberdade de transfigurar a realidade

As experiências e o conhecimento adquiridos com o jornalismo suportam, em parte, esta torrente criativa, "proporcionando vivências que utilizo frequentemente nas minhas narrativas. É o caso da profetisa do 'sol do novo mundo', que conheci numa deslocação ao interior norte. O mundo ensina a ver o mundo...".

Factos reais, históricos e/ou místicos, mas igualmente o eterno apelo do elemento natureza nas histórias. Não fosse ele um filho de Rossas, Vieira do Minho, ligado desde sempre ao ambiente rural e natural. "A um mundo que começa a despedir-se e do qual importa fixar a memória", afirma.

Quanto aos motivos, não podia ser mais claro: "ninguém me pede para escrever livros e muito menos estou à espera de ganhar dinheiro como isso. Pelo menos, o suficiente para me poder dedicar à literatura enquanto actividade principal. As tiragens são pequenas, os preços baixos e, por muito que se consiga fazer uma boa promoção e vender, não se consegue sobreviver sem a ajuda de uma outra actividade remunerada", explica. "Talvez se lhe possa chamar uma paixão".

Geralmente, as edições de autor constituem a principal forma de divulgação da obra de um jovem escritor. Aliás, Mangas considera mesmo que "Diário de Link" dificilmente teria sido publicado se, para além do valor monetário, o prémio não incluisse também a sua edição e lançamento no mercado.

"Existe agora um sinal de que a situação poderá vir a conhecer algumas alterações, através da atribuição de um subsídio de apoio à criação literária. Essa poderá ser uma das estratégias, mas penso que não irá resolver a essência dos problemas. Mas já é um sinal. De boa vontade".

Tal como de boa vontade - uma boa dose - é a atitude de quem assim escreve, pelo puro prazer de verter palavras através de sentimentos, nas horas destinadas ao descanso. Ou simplesmente ao "fazer nada". Porque, como certa vez escreveu Pavese, "trabalhar cansa".

"E porque também temos esse direito", diz o escritor.

Ricardo Jorge Costa


  
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Autoria:

Ricardo Jorge Costa
Jornalista do Jornal A Página da Educação
Ricardo Jorge Costa
Jornalista do Jornal A Página da Educação

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