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Refugiados

Vieram para o Porto em busca de algo que não tinham no seu país: segurança e oportunidade de começarem outra vida. Uma vida em que não sintam constantemente sobressaltados, seja pela guerra ou pela repressão das autoridades, e que lhes permita, um dia, voltar ao lugar onde sempre viveram. Um destes dias. Um é sérvio e o outro é timorense, ambos refugiados por motivos políticos. Um retrato de duas vidas numa cidade que já lhes foi completamente estranha.

N., pseudónimo, nasceu em Belgrado há vinte e dois anos. Uma das recordações que guarda da cidade é o facto de ela ser muito fria no Inverno e excessivamente quente no Verão, com temperaturas que podiam atingir os 40º. " Tão quente que o alcatrão derretia", conta. A Belgrado que recorda inclui também o Dunav e o Sava, os dois rios que banham a ex-capital jugoslava, e os passeios ao longo das suas margens. Fragmentos de memórias da adolescência de N., no período em que ainda frequentava o ensino secundário e as escolas funcionavam regularmente. Foi há cerca de cinco anos, poucos meses antes do conflito.

Nessa altura, N. decidiu ir para a França concluír os estudos e seguir pintura nas belas artes. A tensão nas repúblicas ia subindo de dia para dia e, "antes que algo de mais grave acontecesse", explica, pediu o visto de residência àquele país. O pedido de entrada foi-lhe recusado. Numa tentativa posterior, a embaixada belga acedeu ao pedido e acolheu-o sob o estatuto de estudante estrangeiro residente. Uma maneira de contornar a lei belga, já que este país, à semelhança da maior parte dos restantes membros da União Europeia, não concedia vistos de entrada com facilidade. De fora, apenas Portugal, a Espanha e a Itália. "Mas nunca pensei ir para nenhum dos dois. A maior parte das pessoas que fugiram da guerra foram viver Itália ou para a Áustria. Eu acho que preferia um país mais tranquilo e afastado daquela zona".

Por entre cartas escritas ao longo da guerra, os amigos relatavam-lhe algumas das privações causadas pela escalada do conflito e de como era a vida numa cidade quase sitiada. "Deixou de haver comida em quantidade suficiente, quase não havia gasolina e as condições de ensino nas universidades degradaram-se, porque muitos professores deixaram de dar aulas por não receberem quase nada", diz N. Numa guerra psicológica, como era a que atingia Belgrado, fora da zona de conflito, talvez a união entre as pessoas saia reforçada. E talvez tenha sido esse facto que levou muitos dos amigos de N. a casar, atitude que, apesar de o ter espantado, compreende. "As pessoas passaram a viver pior e numa situação como aquela, de stress psicológico, onde já não existia nada com que se pudessem identificar, o casamento surgiu para alguns como um escape".

Esteve na Bélgica durante quase dois anos e, em 93, veio para Portugal. O facto de os pais e a irmã já se encontrarem aqui a residir, bem como as autoridades portuguesas facilitarem a entrada, trouxeram-no até ao Porto. Mas não porque tenha escolhido. "Não sabia muita coisa de Portugal até chegar cá. Os meus pais escolheram viver aqui porque não queriam ir para Lisboa, uma cidade muito grande e onde a adaptação seria mais difícil. Além disso, o meu pai tinha amigos em Paris que, por sua vez, tinham amigos nesta cidade", conta. A primeira impressão que teve de Portugal foi o de lhe parecer um país soalheiro, já que vinha habituado ao tempo chuvoso do centro da Europa. Senti que o tempo aqui seria agradável, vi muito sol, e gostei do Porto como cidade".

Matriculou-se na escola secundária Soares dos Reis e aí completou o 11º e o 12º ano de escolaridade, com os olhos postos na Faculdade de Belas Artes. A princípio, o que mais lhe custou no período de adaptação foi a aprendizagem da língua portuguesa e o facto de ter de estudar em Inglês. Na sala de aula, o seu companheiro de carteira ia traduzindo as aulas naquela língua e alguns dos professores explicavam a matéria em francês. "Ainda tenho amigos com quem falo em inglês. É uma espécie de tentativa em manter o mesmo tipo de relação, porque em português não parece o mesmo. O meu pai e a minha irmã também já conseguem falar um pouco, mas a minha mãe sente um pouco de dificuldade".

Os amigos "são poucos, mas bons", afirma, e foi com eles que foi conhecendo o Porto. Uma cidade que, às vezes, lhe parece "um pouco morta". Especialmente à noite, nas ruas, onde "não se vê quase ninguém". Nas zonas de maior movimento, como o cais da ribeira, a vida nocturna agrada-lhe, mas sente uma grande diferença em relação a Belgrado. "Era uma cidade maior e as coisas não eram tão caras. Havia sítios onde se podia ouvir "jazz" e "blues", havia esplanadas ao longo do rio, mais ou menos como na ribeira, mas era mais movimentado", refere, no seu tom pausado e num português quase perfeito.

Mas se a integração social foi facilitada, o mesmo não se pode dizer da oferta de emprego. O trabalho não é algo que abunde e, sendo-se estrangeiro, a situação complica-se. O estatuto de refugiado político já foi pedido ao Serviço de Estrangeiros e Fronteiras por diversas vezes, mas até ao momento tem-lhe sido negado. A única alternativa é ir renovando a cada seis meses o visto de permanência, uma situação que do ponto de vista legal não lhe oferece quaisquer garantias de estabilidade ou de oportunidade de emprego. "Das poucas vezes que consegui arranjar um trabalho foi sempre um "part-time" ou um serviço temporário, que dão pouco dinheiro". Na sua família o único que conseguiu ter êxito foi o pai, arquitecto, que integrou um gabinete de projectos. A mãe, se bem que possuíndo as mesmas habilitações, não teve ainda a mesma sorte.

Quase três anos volvidos, N. pretende finalizar no Porto o curso de pintura da Faculdade de Belas Artes. "Depois disso não sei, não tenho planos muito definidos. Mas queria continuar a estudar e, provavelmente, ir viver para outro país. E um dia, talvez, voltar à Jugoslávia. Para já é impossível".

É PROIBIDO FALAR PORTUGUÊS

Impossível é também o regresso de Anacleto Ferreira, estudante timorense de 25 anos, e dos seus oito companheiros de exílio que, com ele, residem no Porto. Foi um dos sobreviventes do massacre de Sta. Cruz e participou na tomada à embaixada dos Estados Unidos, em Jacarta. Razões mais que suficientes para ser considerado "persona non grata" em território indonésio e fazer pensar que o regresso a Timor não será para breve.

Há dois anos atrás Anacleto Ferreira encontrava-se em Malarg, Java oriental, onde frequentava o terceiro ano do curso de Direito. A língua oficial indonésia, o Bahasa, era obrigatória em todas as escolas e, conta, "quando a polícia ouve falar em Português diz que as pessoas estão a falar de política e prendem-nas. Algumas nunca voltam a aparecer". É por esta razão que as cerimónias católicas se revestem, em Timor, de grande importância. Não só representam um desafio à autoridade religiosa indonésia, de origem muçulmana, mas também uma oportunidade para se falar e ouvir a língua proibida. Que já "só os mais velhos falam, porque as gerações mais novas nunca aprenderam", explica, enquanto olha cabisbaixo, enrolando distraídamente um pequeno pedaço de papel.

Foi o que aconteceu naquele dia 12 de Setembro em Sta. Cruz, um dia como outro qualquer, mas que ficaria manchado de sangue. "Naquela tarde vi amigos meus a morrerem no cemitério, ao meu lado, e eu ainda cheguei a ser baleado de raspão nas costas", recorda Anacleto, mostrando a cicatriz que o acompanha desde essa altura. Depois disso, quase todos os estudantes que presenciaram o massacre tiveram de fugir e espalharam-se por algumas das milhares de ilhas que compõem o território.

"Mas não era fácil. As autoridades sabiam quem nós éramos e controlovam-nos os movimentos. Foi assim na nossa chegada à estação ferroviária de Jacarta, onde tínhamos previsto um protesto contra a exploração de petróleo no mar de Timor e aproveitar a visita de Bill Clinton para chamar a atenção do mundo através dos meios de comunicação". Assim, mal desembarcaram do comboio, a polícia começou de imediato a prender muitos estudantes e confiscou algum do material de propaganda que ia ser utilizado na manifestação. Muitos deles conseguiram fugir e reagruparam-se à entrada da embaixada dos Estados Unidos, onde a polícia já os esperava. Saltar os portões da embaixada, conta, "não estava nos nossos planos, mas tivemos receio pelas nossas vidas. Foi um acto espontâneo". Do grupo inicial, quase setenta pessoas, apenas vinte e nove conseguiram transpôr a fronteira artificial do gradeamento da embaixada. Daí ao asilo político oferecido por Portugal foi uma questão de duas semanas. "Mas não com a ajuda dos americanos, que dificultaram o processo", refere.

O Porto foi quase um destino do acaso. Distribuídos pelo continente, alguns ficaram em Lisboa, outros em Coimbra e outros ainda em Braga. " Tinha ouvido dizer que é uma cidade calma, diferente de Lisboa, mas agrada-me. As pessoas são abertas e participam nas nossas iniciativas. As associações de estudantes e a federação académica apoiam-nos e sentimos que existe um elo de ligação ao problema de Timor. Mas é preciso continuar o trabalho, porque muita gente ainda faz de conta que nada se passa e diz que Timor fica muito longe para se preocuparem".

Depois de chegar, e à semelhança do que aconteceu com N., Anacleto Ferreira teve um pouco de dificuldade na sua adaptação linguística ao português. "Quando chegamos ao Porto, há dois anos, não sabíamos uma palavra. Ficámos alojados numa residência universitária e, juntamente com os restantes companheiros, comecei um curso intensivo de português para estrangeiros, na Faculdade de Letras", relata, com uma pronúncia que não esconde as suas origens orientais. Para já é a única coisa que está a aprender, mas pensa retomar os estudos de Direito no próximo ano lectivo. "É a condição imposta pelas autoridades portuguesas para a nossa permanência e para a atribuição de um subsídio monetário. Foi também por essa razão que fomos acolhidos pela Universidade do Porto: para podermos continuar os estudos na nossa área".

Actualmente, a sua vida pessoal desenrola-se praticamente à volta do curso e das reuniões que efectua com os restantes elementos da Resistência Nacional de Estudantes Timorenses. Além disso, participa também em sessões de esclarecimento em escolas, onde relata a sua experiência e responde a perguntas mais curiosas. "Uma experiência interessante", diz.

Para já, não crê num regresso fácil a Timor.

Ricardo Jorge Costa

 


  
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Autoria:

Ricardo Jorge Costa
Jornalista do Jornal A Página da Educação
Ricardo Jorge Costa
Jornalista do Jornal A Página da Educação

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