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O Terceiro Sexo

No dicionário de língua portuguesa, homossexualidade vem descrita como "prática de actos homosexuais; inversão sexual". Na mesma linha, lesbianismo descreve-se como "aberração do instinto sexual na mulher que pratica actos sexuais com outra mulher". Consultando o dicionário uma vez mais, poderá constatar-se que a palavra aberração significa "anormalidade anatómica, fisiológica ou psicológica", e inversão "uso contrário a uma função normal". Dois substantivos que definem, em síntese, o pensamento da maior parte das pessoas em relação ao amor entre pessoas do mesmo sexo. Um olhar sobre um dos tabus mais bem guardados dos últimos séculos.

Durante muitos anos M.H. sentiu-se confuso quanto à sua sexualidade. As linhas esguias e a sensibilidade da mulher atraíam-no em igual proporção ao corpo e aromas do homem. Um período de que durou o tempo da sua adolescência e se extinguiu no ano em que se apaixonou, pela primeira vez, por um colega de faculdade. "Não foi uma coisa que tivesse acontecido de um momento para o outro. Foi acontecendo. É engraçado como ao princípio uma pessoa não se sente à vontade consigo mesma e tenta convencer-se que aquilo é apenas uma vaga paixão, um sentimento de amizade mais forte...". Ainda hoje recorda a indecisão por que passou quando sentiu vontade de segredar "gosto de ti" ao seu actual companheiro e o medo quanto à sua possível reacção.

Dois anos volvidos assume a sua condição de forma despreocupada e confiante. "Sem receio de ferir susceptibilidades de terceiros", diz em tom irónico. Empregado de caixa num banco da baixa portuense, M.H. não transparece a imagem habitual que se possa ter de um homossexual. Se é que tal existe. A roupa que veste assentaria perfeitamente num qualquer "yuppie", fato e gravata aprumados, um aspecto irrepreensível. O emprego e o meio em que se movimenta também não permitiriam "muitas extravagâncias", refere. "A imagem das pessoas é uma autêntica fachada, uma máscara de sombra que se carrega para todo lado. No meu local de trabalho, por exemplo, conheço de vista clientes que costumam frequentar bares e festas de homossexuais. No entanto, em dados momentos são capazes de assumir uma postura completamente diferente em relação à sua homossexualidade e à dos outros. E o mais incrível, apesar de detestável, é eu compreender essa atitude", conta, à medida que desliza os dedos pelo cabelo e tenta parecer que olha distraído pela janela.

Mais categórico, afirma que não gosta da atitude dos homossexuais "maricas". Sabe que ao utilizar esta expressão poderá "estar a magoar algumas pessoas", como refere, mas é a palavra que prefere usar. "Exteriorizar gestos e atitudes histéricas e de feminilidade exagerada não me parece que reflicta a postura da grande maioria dos homossexuais. Com o devido respeito pelas mulheres, e acho que talvez não seria preciso dizer isto, mas é evidente que gostar de uma pessoa do meu sexo não me obriga a fazer o papel de mulher e a ter os seus trejeitos". O ar exaltado com que se exprime contrasta, por momentos, com a sua aparente tranquilidade.

Apesar de já lhe ter passado pela cabeça, nunca pensou em casar com o seu actual companheiro, "como se passa nos países nórdicos". Apesar de considerar uma atitude extremamente corajosa, quer por parte dos casais que se unem como parte dos governos, não é o reconhecimento legal que procura. É uma identificação. Actualmente, "apesar da reacção de desdém das pessoas continuar a ser praticamente a mesma de há alguns anos atrás", já é possível encontrar alguns bares onde se conversa e se "curte" sem receio de ouvir "bocas foleiras". "Fora destes locais é impossível conversar-se à vontade. Ou se tem cuidado com o que se diz ou com a maneira como se ri, ou olham para nós logo de outra maneira". Uma impressão tanto ou quanto exagerada, mas que se poderá considerar natural e compreensível por parte de quem está habituado a situações "menos agradáveis".

Sítios, pessoas, emoções

A noite é um dos espaços de encontro preferidos. Vários bares e discotecas são ponto de referência, mas uns continuam a ser mais preferidos que outros. Busto's, Moinho de Vento, Swing ou Aniki-Bóbó são apenas alguns, mas sem dúvida os mais concorridos. Cada um deles tem uma espécie de "fauna local própria" que, por motivos vários, não se cruzam noutros locais.

"Quais são os motivos? Muitos e variados. Pode depender do dinheiro que se tem, do género de engate que se queira fazer, do tipo de pessoa com quem se queira estar. Ou da pressa que se tenha.... O Busto's, por exemplo, é um bar que considero decadente", explica M.H. "Já houve uma altura em que era um sítio bastante agradável, onde se podia manter encontros ou fazer novas amizades, mas decaíu e hoje em dia tem um ambiente péssimo: desde homens casados, bêbedos e gordos, passando por travestis toxicodependentes e "pseudo-gays". Há de tudo para todos os gostos".

Para quem não sabe, o Busto´s fica localizado muito perto da estação de comboios da Trindade, local bastante frequentado pelas tribos da noite e onde se pode aceder a vários tipos de oferta sexual. Um primeiro andar de um prédio como qualquer outro, guardado por um porteiro com cara de poucos amigos. "Diferente e muito melhor", na opinião de M.H., é qualquer um dos outros três bares. De entre eles, o seu preferido é o Aniki-Bóbó. "Não é só pelo ambiente e pela música. Ali respira-se tolerância, apesar de haver pessoas que nada têm a ver e se identificam com outra forma de estar".

É também no Swing, "muitas vezes por semana", como a própria refere, que se pode encontrar a Carla. Sem inibição de qualquer espécie, tanto em se dar a conhecer como na abordagem que faz às pessoas, vai provocando quem passa com gestos subtis. Homens e mulheres. Em seu redor agitam-se corpos. Roupas futuristas, plásticas, peles suadas. Trocam-se copos, experimentam-se beijos.

Reservada à partida, não demoraria muito tempo em aceder a conversar. Sempre em tom defensivo, é certo, mas conversador. Dos escassos cinco minutos de intercâmbio foi possível ficar a saber que só há uns anos descobriu "o outro lado do sexo". O lado "que nos permite experimentar sensações normalmente proibídas, mas extremamente libidinosas. Excitantes", adianta. "E se realmente queres saber, não tenho nenhum complexo em admitir, a mim própria, como sou. Considero isso o mais importante. Gosto tanto de "uns" como de "outros". Cada sexo pode ser bom à sua maneira e aproveitado de maneiras igualmente aprazíveis". Nada que pudesse ser mais esclarecedor. Aliás, Carla não é mulher de muitas palavras. A roupa extremamente produzida e a pose falam por si. Tempo ainda para uma pergunta (23 anos foi a a resposta) e retirada estratégica.

Um outro olhar

Num outro lugar e num outro contexto, a história de P.D., 34 anos, professora de história da arte numa escola do distrito do Porto, é bastante diferente da anterior. Descobriu a sua verdadeira identidade sexual foi revelada cedo, era ainda adolescente. "Quando era miúda gostava muito de ver revistas de moda e todo aquele "glamour" à volta das passagens de modelos e das mulheres lindíssimas que desfilavam. Talvez por causa disso, a partir de certa altura comecei a olhar essas mulheres já não apenas de um ponto de vista meramente estético, mas também do ponto de vista físico, do "heros".... Desde essa altura, até alguns anos após o fim da adolescência, P.D. guardou esses sentimentos para si e nunca os procurou dar a entender a ninguém. "Era uma espécie de enorme regozijo saber que aquele segredo era só meu e que mais ninguém o compartilhava. Uma forma de encarar a sexualidade que permitia, ao masturbar-me, atingir um prazer mais intenso. Talvez por ser um segredo e por ser feito às escondidas, não sei..."

Antes de ter vindo viver definitivamente para o Porto, P.D. esteve colocada em algumas escolas do interior do país, nomeadamente na região de Trás-os-Montes. "Um ambiente frio que, apesar disso, ou por causa disso, aproxima as pessoas. Não tanto os naturais da localidade com os forasteiros, mas principalmente entre pessoas que para ali se têm de deslocar por motivos profissionais e são alheias à terra". Foi num desses anos e num desses locais que conheceu a companheira da sua vida. Um relacionamento que, à medida do tempo, ganhou contorno de "desconfianças e más línguas" e as obrigou a procurar outras paragens. P.D. continua sem perceber como tudo aconteceu, já que nem ela própria confessou, à primeira, o misto sentimento amoroso que nutria pela amiga.

Enquanto puxa pelo terceiro cigarro em dez minutos de conversa, explica como a homossexualidade feminina é sentida de maneira diferente da homossexualidade masculina. "O sentimento de amor de uma mulher por outra mulher é uma experiência fascinante. É descobrir, de uma certo modo, um outro "eu". É uma relação de entrega mais forte, baseada principalmente num sentimento de amizade e de paixão. Não tanto de sexo. Quando uma pessoa fica mais madura veêm ao cimo sentimentos que suplantam, em larga medida, o simples desejo de prazer. Digamos que é um estado de alma superior".

Ricardo Jorge Costa


  
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Autoria:

Ricardo Jorge Costa
Jornalista do Jornal A Página da Educação
Ricardo Jorge Costa
Jornalista do Jornal A Página da Educação

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