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Elogio Dos Maus Professores

Permitam-me a provocação. A opinião pública alarma-se facilmente perante a possibilidade de existirem maus professores. Todas as discussões sobre as escolas e a qualidade do ensino redundam na eterna questão dos maus professores. Estes profissionais querem-se limpos, isentos de mácula, perfeitos. Aceita-se de bom grado a existência de maus políticos, vota-se neles e comemora-se-lhes a vitória. Um mau padre, uma freira sem vocação, um mau canalizador, um péssimo advogado tudo bem. Maus professores é que não.

Eu defendo que os maus professores são tão uteis e necessários ao sistema como os bons professores. Reparem que não digo apenas que são inevitáveis, digo que são necessários. Precisamos de alguns maus professores.

Esta convicção decorre da minha experiência prática. No meu sexto ano de liceu, o meu professor de filosofia, Carneiro Leão, tinha um olhar que fazia jus ao primeiro apelido e um temperamento que justificava o segundo. Olhar de carneiro mal morto e ferocidade de leão. Era o que se pode chamar um mau professor e um professor mau. Com ele aprendi imenso.

No meu primeiro ano como professor eu estava apostado em não fazer muita asneira. Num dia de muita meditação resolvi fazer uma lista de coisas que não devia fazer, de comportamentos que não devia ter como docente. O Carneiro Leão, o Padre Alves e o sacana do Lourenço, meu professor da escola primária, foram-me então de grande utilidade. Se eu não tivesse tido a sorte de ter tido estes três péssimos professores eu tinha sido pior professor do que sou.

O Carneiro Leão bebia imenso. Provavelmente era um desses homens com muitas mágoas que precisam de ser afogadas. Como as mágoas flutuam muito bem ele tinha de as tentar afogar todos os dias. Não me recordo dele sóbrio. O patife gostava das chamadas orais. O nosso nome dito por ele provocava-nos suores frios. Alguns alunos chegavam a desmaiar. O Carneiro Leão não perguntava, rosnava. Movimentava-se á nossa volta lentamente, olhava-nos com tal desprezo que nós próprios nos detestava-mos e nos considerava-mos a pior coisa que veio a este mundo. Perante a mínima exitação na resposta recomendava-nos (imaginem o tom) que abandonássemos a ideia estúpida de querer ser estudantes de filosofia e nos dedicássemos á agricultura. Normalmente as chamadas orais terminavam com a recomendação: "olha lá, grande camelo, deixa a filosofia para os filósofos, vai ao Armando Alves comprar uma charrua e dedica-te á agricultura como o meu irmão, tu ainda és mais burro que ele."

Em Abril desse ano houve umas corridas de automóvel e o Carneiro Leão resolveu atravessar a rua indiferente aos entusiastas do automóvel. Foi parar ao hospital e nós passamos a ter o Padre Alves como professor de Filosofia.

O Padre Alves era um caso. Era um desses professores que na sala de aula gosta de se ouvir. Desses que tendo tanta coisa inteligente para dizer e ensinar, falam, falam, falam. O homem falava o tempo todo indiferente aos coitados dos alunos que faziam o frete de o ouvir. A sua cadência no falar era enorme. Lembro-me vagamente que misturava as coisas da filosofia com histórias da sua vida e experiência pessoal. Confesso que após a primeira aula deixámos de ligar ao homem. Ele falava e nós íamos fazendo circular papelinhos, gracejos, etc.

Sobre o sacana do Lourenço, meu professor da escola primária, não falo aqui. Sobre ele já escrevi mais do que o patife merecia. Não fiquem no entanto a pensar que só tive estes maus professores. Felizmente tive outros e outras. Todos foram uteis á minha pessoa e á minha condição de professor.

Os maus professores, sejam eles maus pela sua imperícia pedagógica ou pela sua natureza de pessoas, são indispensáveis á nossa formação. Enquanto jovens precisamos do contraste, de descobrir o certo e o errado. De ter a quem nos opormos. De ter quem criticar. De discutir entre nós valores tendo á nossa frente modelos reais. A vida não é feita só de santos e de santas, de gente abnegada e dedicada. Mau seria se a escola só tivesse bons professores ou maus professores. Se assim fosse a escola nada teria a ver com a vida. Não seria local de aprendizagem.

Por tudo isto e pelo que se pode subentender, a minha recomendação á opinião pública, para que deixe essa excessiva preocupação sobre a existência dos maus professores. E aos bons professores o meu pedido para que deixem de se martirizar por terem colegas menos eficazes. Aos maus professores o meu elogio pela função, sempre incompreendida mas necessária, a um bom funcionamento do sistema educativo. A diversidade e a tolerância são das melhores coisas que pode haver numa escola.

José Paulo Serralheiro


  
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Autoria:

José Paulo Serralheiro
Professor e Jornalista. Director do Jornal a Página da Educação.
José Paulo Serralheiro
Professor e Jornalista. Director do Jornal a Página da Educação.

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