No último conselho da turma A, lançavam-se as notas e chegou a vez do Paulo. Tinha três negativas, o que no seu nível (8º Ano), é considerado suficiente para transitar de ano. Um dos professores da turma comentou imediatamente: -Este passou? Incrível! Logo de seguida, outro fez-se ouvir: -Nunca pensei que tal fosse possível! Admirado com os comentários argumentei: - Era uma injustiça se este aluno ficasse retido. Foi então que outra colega se virou para mim e argumentou: - Estou admirada normalmente as tuas notas são aquelas que melhor reflectem aquilo que o aluno realmente é, mas neste caso, enganaste-te redondamente. De início procurei não dizer nada, não obstante ter ficado um tanto ou quanto irritado perante o comentário da minha colega. Além de que este foi logo de seguida apoiado por mais dois ou três professores. O Paulo, não pode, de maneira nenhuma, ser considerado aquilo que nós professores consideramos habitualmente como um aluno brilhante. Estudar não é muito com ele, raramente, só por si está atento nas aulas, isto entre outros aspectos... A agravar, já é repetente e os seus objectivos de vida, que já os tem, não passam por estudar. Quer terminar a escolaridade obrigatória e emigrar para junto de um irmão. Na aula, este aluno dá a impressão de estar completamente desligado da realidade. Alto para a idade, muito magro, pescoço muito comprido e sempre em movimento (o que causa inclusive uma grande irritação no professor), uns olhos grandes, claros, sempre muito abertos mas sonhadores, pois à primeira vista parece que estão desligados da realidade, ou então observam algo que se passa bastante longe. Como aluno, de início, os resultados chegaram a ser lastimosos, o que reflectiam bem o seu trabalho. Nunca fazia trabalhos de casa e estudar não era com ele. O próprio referia com frequência que não gostava de estudar e "(...) o professor escusa de insistir(. . .)". Havia no entanto algo de interessante neste aluno, de certeza que aquilo que via não correspondia ao todo que constituía o Paulo, quer como pessoa quer como estudante. Sempre que deparado numa situação em que a aprendizagem dependesse da resolução de problemas científicos, a sua participação era das mais válidas. Não só fazia observações e registos de dados com precisão como os relacionava de forma pertinente, considerando todas as condicionantes, atingindo com facilidade as conclusões. Progressivamente, fui lançando novos desafios ao Paulo. A sua aversão pelo estudo continuava a prejudicar os resultados da sua avaliação escrita, embora estes fossem progressivamente melhores. Tanto que no terceiro período os resultados dos seus testes foram todos superiores a setenta por cento. Paulo que se apresenta normalmente aos professores não passa de uma revelação feita a partir de um negativo, com potencialidade ainda por explorar. Para nós professores, é muito mais cómodo trabalhar sobre a fotografia já revelada. Se esta for boa, toda a sua pujança se manifestará ao longo do processo de exposição que é o processo educativo, no entanto, em muitos casos, a excelência do aluno será impossível de visualizar numa só revelação, havendo então a necessidade de trabalhar a partir do negativo e arranjar forma da mesma se manifestar. A revelação de fotografias é um fenómeno que, embora não constitua, hoje em dia, pelo menos para os entendidos, nenhum mistério, para os leigos como eu ainda o é. É sempre emocionante o momento em que a junção de todos aqueles fenómenos químicos e físicos se conjuga e num papel que era branco surge uma imagem que além de estar ampliada e ganhar cor, está, diga-se de passagem "direita", já que no negativo a posição dos objectos era inversa. Como professor não me considero desconhecedor de tais técnicas, urge muitas vezes, é ter a paciência, a vontade e, talvez o mais importante, a motivação necessária e fundamental para as utilizar. No caso do Paulo, a revelação resultou bastante bem. A "fotografia" final era bastante distinta da que vi no início do ano. Não fiquei surpreendido, nem totalmente satisfeito. Afinal de contas, a imagem que conta não é a que eu tenho, mas o conjunto das imagens de todos os professores, e essas são cópias fiéis da que o aluno apresentou no início do ano. Talvez eu tenha falhado, ao não partilhar mais cedo a revelação que se estava a processar na minha disciplina. Urge, da nossa parte, professores do ensino básico, fazer a exploração dos negativos de forma conjunta, de forma a que no final de cada ciclo surja uma só fotografia, e não um conjunto de imagens desconexas que muitas vezes não perfazem a realidade que cada aluno poderia constituir.
Arlindo Antunes de Sousa
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