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Helena Costa Araújo na primeira pessoa do colectivo e do feminino

Dizem que não resiste a intervir directamente na organização da 'casa nova', na Rua do Campo Alegre. Obra sua ou não, certo é que entrando na ex-Faculdade de Letras da Universidade do Porto facilmente nos apercebemos que aquelas instalações são, agora, de outro campeonato - e não será, apenas, pelo facto de ali terem sede as faculdades de Direito e de Psicologia e Ciências da Educação.

Máxima responsável por esta última, fez da Sociologia da Educação a sua área de excelência, com um interesse muito particular pelas questões da igualdade de oportunidades entre masculino e feminino. Uma opção que, confessa, não é muito cómoda e que admite ser consequência de ter estudado em Inglaterra, onde foi muito influenciada pelos estudos sobre o 'género'. Ou, mais prosaicamente, sobre as mulheres.

De tal maneira que, há alguns anos, quando regressou a Portugal, se sentiu muito desconfortável com a quase tentativa de que essas questões fossem consideradas marginais. Contudo, reagindo ao desconforto, avançou com a criação de uma cadeira opcional intitulada Educação, Género e Cidadania e que se centra na articulação entre a Sociologia e a construção do Masculino e Feminino.

Helena Costa Araújo - género feminino, primeira pessoa do singular:

"Há uns anos atrás, em 86/87, falar de 'género' neste país era qualquer coisa de muito lateral e, digamos, ilegítimo. Ganhar legitimidade para o conceito foi um percurso interessante, e hoje é gratificante verificar que, mesmo em outras instituições, já é relativamente comum a sua aceitação.

O conceito em si suscitou algumas dúvidas, resistências e polémicas, tendo havido quem considerasse que, no nosso país, não fazia muito sentido falar de 'género'. Mas não deixo de pensar que em relação a conceitos de outros campos científicos, e que também surgiram noutros contextos nacionais, não houve dificuldades de importação...

Actualmente, parece-me, a cadeira de Educação, Género e Cidadania está estabelecida e é aceite como contribuição para uma reflexão em torno das questões do multiculturalismo - o multiculturalismo não tem apenas, necessariamente, a ver com as questões de natureza étnica, mas também com as de classe social e de 'género', no sentido em que falamos de culturas e sistemas simbólicos que têm uma relação com determinado tipo de grupos e não necessariamente, apenas, com as questões étnicas.

É claro que, genericamente, quando falamos de multiculturalismo, estamos a acentuar mais as questões étnicas, mas na Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação os projectos envolvidos nas questões multiculturais não desperdiçam o pendor de classe social e de 'género'.

Estamos a falar da igualdade de oportunidades e da construção de uma escola para todos, e isto obriga a reflectir sobre a forma como a Escola se organiza e, de facto, discrimina; ou seja, como a Escola se organiza para eliminar determinadas crianças de determinados grupos sociais, étnicos ou de 'género'".

(...)

"A cadeira talvez se pudesse chamar Estudos das Mulheres, e aí estou certa de que os elementos masculinos sentiriam que não era uma cadeira para eles. Mas a designação que tem é uma tentativa, por um lado, de ganhar legitimidade e, por outro, de articular as questões de uma forma que tenha algo de inovador em relação ao contexto português. Ou seja, tentar articular as questões da construção do masculino e feminino - das nossas identidades - com as questões mais alargadas da cidadania e dos direitos, não apenas direccionados para o que é de âmbito público, mas para aquilo que podemos considerar a esfera do íntimo, pessoal, doméstico.

É este esforço de articulação que me parece interessante. Um enfoque com alguma inovação, que procura ganhar legitimidade para o campo - é verdade -, mas que também considera que as identidades femininas não se constroem se não em relação com as masculinas, ambas entendidas como representações sociais, porque hoje sabemos que há representações mais masculinas e mais femininas.

Portanto, trata-se de uma tentativa de reflectir o masculino e o feminino como alguma coisa inerente às nossas vidas e que não pode passar ao lado de um discurso educacional. Porque, suponho, muita da reflexão que foi trazida para o campo educativo (da Sociologia, da Antropologia e da História) esqueceu isto - as lentes de leitura da realidade social foram construídas através de uma pretensa neutralidade, como se ser masculino ou feminino não tivesse implicações na nossa realidade de todos os dias, na realidade educativa e nas próprias políticas educativas".

(...)

"A cidadania tem a ver com a realização dos direitos humanos, sociais e políticos. E, digamos, perante Estados mais ou menos autoritários, mais ou menos centralistas, a questão dos direitos é, de facto, uma forma de levar esses Estados a olharem para os cidadãos de uma forma diferente, confrontando-se com aquilo que é a realização dos direitos dos que são governados.

Mas o conceito de cidadania envolve, também, uma resistência, ou uma luta em torno do próprio signo linguístico, na medida em que a cidadania pode ser entendida como forma de controlo ou de exclusão: uns são incluídos porque são cidadãos; outros são excluídos porque não o são...

Mas a discussão actual aponta no sentido de se tentar entender a cidadania sob formas que não apenas esta questão da inclusão/exclusão - hoje, aliás, como é que se classifica o cidadão? Em função do sangue? Da cultura? De viver no próprio local?

Um ângulo trazido pelas questões de 'género' tem exactamente a ver com a cidadania das mulheres, sobre a qual temos um projecto na nossa faculdade - PRÓXIMAS -, que partiu do pressuposto muito claro de que a cidadania feminina não é total, no sentido em que os direitos para determinados grupos de homens estão mais valorizados do que para os grupos de mulheres".

(...)

"Este projecto teve a preocupação de perceber quais as representações que os futuros professores - particularmente os do Secundário, porque é aí que se fazem muitas das escolhas a nível do mercado de trabalho - têm acerca da cidadania das mulheres. Isto é, quais são as formas de realização dos direitos que eles consideram e que relação é que isso pode ter com alguma coisa que possamos centrar na educação para a cidadania.

Trabalhamos com as universidades de Cambridge, Salónica e Autónoma de Barcelona e, numa primeira fase, foi feito um grande inquérito aos professores do Ensino Secundário. Seguidamente, fizemos entrevistas a formadores, orientadores de estágio e professores das universidades relacionados com esta formação. Finalmente, fizemos grupos de discussão com os futuros professores e professoras, em grupos só de rapazes ou de raparigas.

Numa segunda fase, produzimos um vídeo [Maria José Magalhães, Fina d'Armada e Fernanda Henriques] sobre a cidadania das mulheres, que está pronto para ser divulgado em escolas, e um manual [Cristina Rocha e Manuela Ferreira] sobre as mulheres e o trabalho, que servirá para a formação de professores. Para além disso, temos uma bibliografia anotada sobre trabalhos que têm a ver com as questões de 'género'.

A terceira fase tem a ver com a avaliação destes materiais e com a sua disseminação nas escolas, mas, como envolve meios financeiros, está um bocado atrasada".

(...)

"De 6 a 8 de Julho, vamos promover um congresso onde estarão diversos especialistas nacionais e internacionais e durante o qual daremos a conhecer os resultados deste projecto e de outro anterior, que foi o NORA.

O nome suscita imediatamente relações familiares, mas não o escolhemos por isso. Foi muito em função da 'boneca' do Ibsen - NORA dá para 'Novos Olhares, Reivindicações Antigas' e tem como subtítulo 'As raparigas e a igualdade de oportunidades na educação e no trabalho'. É o resultado de quatro teses de mestrado e três de doutoramento sobre a educação das raparigas - porque se considera que a dos rapazes foi mais feita no passado, dentro da capa do universal e neutro - do ponto de vista histórico e da co-educação.

Em alguns países, particularmente anglo-saxónicos, a co-educação foi muito discutida, no sentido de que as raparigas acabavam por ficar prejudicadas. Também em Portugal temos tido alguma polémica a esse respeito, até porque se pode verificar que foi durante o período da co-educação que as raparigas mais expandiram as suas oportunidades.

Aliás, as estatísticas dizem que, hoje, as raparigas têm mais sucesso nos vários níveis de ensino e que estão em maior número nas universidades. Claro que isto justifica uma análise mais detalhada, mas suponho que está a acontecer que as raparigas da classe média tiveram um aumento de oportunidades e estão a aproveita-las e a demonstrar, claramente, a falsidade daquela questão de princípio do século, de que as raparigas eram doentes e era preciso poupá-las, que teriam cansaços mentais se se dedicassem aos estudos, que não eram feitas para esse tipo de coisas...

Entretanto, a situação inverteu-se. Na Europa, neste momento, há uma grande preocupação com a masculinidade - é preciso defender os rapazes e protege-los, porque estão a ficar sozinhos e infelizes. Os projectos sobre a masculinidade e a construção da masculinidade estão mesmo na moda, e a questão é que os rapazes estão a ficar mais violentos, a ser mais discriminados, e é preciso encontrar formas de os reenquadrar".

(...)

"Em relação a esta preocupação, lembro-me que, há dois anos, o 'Expresso' chegou a reflectir as ideias de alguns políticos que pensavam em formas de discriminação positiva para defender os rapazes.

Mas com o que esses políticos não estão preocupados é com o facto de as raparigas não serem igualmente aproveitadas no mercado de trabalho. De facto, há empregos que, tradicionalmente, são femininos (ensino primário, enfermagem, serviço social e outros), mas mesmo nesses existe um topo de hierarquia muito claramente masculino -este próprio Governo anunciou qualquer coisa de muito diferente na distribuição de ministérios, mas, afinal, temos apenas mais uma ministra...

Acho que deveria haver uma reflexão sobre isto, até porque pode, na verdade, fazer diferença estar uma mulher num lugar em vez de um homem, desde que haja outras mulheres que a ajudem a reflectir de forma mais específica. Elas foram mais construídas, do ponto de vista da socialização, segundo padrões relacionais e isto pode vir a ter implicações no sentido de que as políticas produzidas reflictam mais essas preocupações.

Obviamente, todos sabemos que existem determinantes estruturais fortíssimos sobre o desempenho dos cargos, mas creio que uma reflexão das mulheres sobre a sua própria condição, aproveitando aquilo que de melhor tiveram na sua socialização, pode ser uma mais-valia para a produção de políticas mais humanas".

(...)

"Na investigação ligada ao PRÓXIMAS, é interessante verificar como as raparigas têm uma noção de que são claramente discriminadas no espaço de trabalho. Elas sentem e têm consciência de que, em igualdade de circunstâncias, os rapazes vão ser mais escolhidos do que elas - embora dentro dos contextos actuais de dificuldade de emprego, eles estão com mais segurança.

As raparigas vivem sob duas grandes tensões: por um lado, como jovens, foram educadas genericamente como os rapazes e têm um pouco a consciência de que são igualmente tratadas; mas quando começam a focar as questões do seu futuro como trabalhadoras e quando avaliam a própria experiência em casa (enquanto raparigas face ao pai, aos irmãos e à mãe), têm a clara consciência de que há desigualdade - há várias que dizem 'eu faço as mesmas coisas que a minha mãe, e o meu pai e o meu irmão não fazem nada'.

Estamos em 1997, e isto é comum!

No fundo, continua a considerar-se que o papel central na casa pertence à mulher. De vez em quando, o pai cozinha e o filho levanta a mesa, mas, de facto, as tarefas dominantemente domésticas e parentais são próprias das mulheres. Elas é que sabem disso...

O discurso mudou para 'eles também ajudam', mas a partilha de tarefas é coisa que não existe. Falar de partilha, ninguém fala; mesmo entre os próprios docentes que foram entrevistados, é muito raro falar de partilha; fala-se de ajuda, e então já são todos muito bons"...

(...)

"No ano passado, um grupo das nossas estudantes fez um trabalho muito interessante: juntaram mulheres dos vários anos da licenciatura de Ciências da Educação e tiveram uma discussão em grupo sobre as facilidades e dificuldades que sentiam em articular a sua profissão com a frequência do curso e as vidas pessoais.

Devo dizer que foi um bocado angustiante. Várias contaram como os 'masculinos' que estão lá em casa, face a curso que se vai fazer - embora possam aplaudir, porque isso significa promoção no trabalho -, não estão dispostos a dar mais pela vida familiar. E as formas de bloqueamento e punição são as mais subtis, do género de não haver pão em casa, não se oferecerem para o ir buscar e atribuirem a culpa a elas.

Mas o dramático é que as mulheres assumam fazer o papel de super-mulheres e não aceitem que, se as condições mudaram, efectivamente deveria haver a tal partilha. O que elas sentem - como pessoas que se estão a formar e, ao mesmo tempo, são formadoras - é que este equilíbrio é extraordinariamente difícil e muito doloroso e que estão submetidas a pressões tremendas. Algumas disseram-me que não vinham para a cadeira de Género porque queriam paz em casa, não queriam mais consciência sobre as questões... Porque, no fundo, quando se tem consciência das questões, o que é que se faz em casa: luta-se ou acomoda-se, com a dor a doer lá dentro?"

(...)

"Acho que há, de facto, uma pressão muito grande sobre as mulheres, principalmente quando trabalham fora, para acumularem as duas coisas e não perderem o que consideram ser, no seu íntimo, aquilo porque foram assim construídas, que é a sua feminilidade - como mulheres que têm filhos e um companheiro, é a elas que compete a maioria das tarefas, embora possam conseguir alguma ajuda. Mas isto é muito diferente da partilha, em que ambos consideram que a responsabilidade é dos dois, e não há aquilo que me parece uma grande desigualdade, que é dizer-se que os sexos são complementares.

Nós fomos muito construídos a ouvir dizer que o feminino e o masculino são complementares, o que significa que o feminino se especializa em determinado tipo de tarefas e o masculino noutras. E que ela continuará, irrremediavelmente, com as tarefas domésticas, apesar de ter um trabalho cá fora - que muitas consideram como secundário. Quanto a ele, basicamente, representa o ganha-pão da família - e por isso é preciso pagar-lhe mais - e tem a responsabilidade de ser pai ao fim-de-semana".

(...)

"Eu percebo que, muitas vezes, tanto homens como mulheres digam 'que chatice, lá estamos nós outra vez a falar dito', mas acho que há novas formas de o fazer que têm claramente a ver com o modo como encaramos a cidadania.

No tal inquérito, quando perguntamos às pessoas o que é cidadania, cidadania é o que se passa lá fora: o trabalho, o voto, os direitos do consumidor; dentro de casa, não se é cidadão, mas apenas ser humano...

Ora, a noção deve ser que a cidadania também tem a ver com a casa, com aquilo que somos em privado. E a outro nível, o mundo do trabalho também tem que mudar, tornar-se mais democrático; relativamente a estas questões de masculino/feminino, tem que aceitar que exista uma coisa chamada necessidades familiares, de afecto, de ter filhos, de viver com um companheiro".

(...)

"Apesar de tudo, penso que há uma consciencialização dos dois 'géneros': dela própria, porque não tem que ser uma super-mulher, porque há outras coisas que vai deixar de fazer e que implicam com a sua cidadania lá fora; dele, porque não deve querer viver de um trabalho basicamente feito por ela.

E quando dizem que, com estas perspectivas, estamos a pôr em causa a Família, eu diria que pomos em causa uma instituição absolutamente hierárquica, estratificada, desigual e que pouco está relacionada com as questões dos direitos.

(...)

"Do ponto de vista da produção de políticas de intervenção nas escolas, penso que há um conjunto de preocupações que, aparentemente, nos poderiam trazer algum conforto, alguma maior segurança. Mas apercebo-me que os professores - muito deles - estão desnorteados e se sentem pouco valorizados. Creio, por isso, que alguma coisa de muito forte tem que ser feita directamente com os professores.

Quanto ao problema de quem deve ou pode ser professor, suponho que não pode ser qualquer pessoa, porque a noção de que alguns conhecimentos são suficientes para se poder estar numa escola a transmitir saberes é muito pouco reflectida e tem muito pouca preocupação com a qualidade de ensino.

Penso que este é um problema ligado à questão de quem faz a formação, as universidade ou os politécnicos - eu acho que o diálogo entre ambos poderia ser muito interessante, porque as universidades privilegiam mais as suas áreas de especialidade e remendam o currículo acrescentando umas cadeiras de Educação.

Acredito que esta inter-relação e articulação entre disciplinas de especialidade e educativas é muito importante, porque a tarefa dos professores é de tal maneira complexa e difícil que um professor deve ter uma formação bastante ampla".

(...)

Em relação aos currículos e à sua articulação com crianças oriundas de diferentes grupos étnicas, parece-me uma questão muito importante, porque se, por um lado, se procura que as crianças possam encontrar alguma contextualização na escola, também se pode correr o perigo de lhes estar a oferecer currículos que, de facto, são de cidadãos de 2ª - estou a pensar, particularmente, nos currículos alternativos. Portanto, acho que é um dilema tremendo para as escolas, para o Ministério da Educação e para todos nós, como é que se tornam as experiências relevantes das crianças na escola e, por outro lado, elas não deixam de ter entrada em saberes que têm um carácter mais universal e que são mais valorizados. Acho que esta continua a ser uma questão muito central para a Escola e que deveria, necessariamente, ser reflectida mais profundamente ou experimentada noutros moldes. Mas suponho que os currículos alternativos levantaram muitas questões e suponho que algumas delas com bastante razão.

 


  
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Autoria:

Helena Costa Araújo
Fac. de Psicologia e Ciências da Educação, Univ. do Porto
Helena Costa Araújo
Fac. de Psicologia e Ciências da Educação, Univ. do Porto

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