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Paolo Gentili à conversa com a Página

Um bate papo sobre Educação e Neoliberalismo onde nunca se fala de Portugal

O Doutor Paolo Gentili da Universidade do Estado do Rio (a par de outros, como Michael Lowy, da Sorbone de Paris; Bruno Trentin, da Confederação Italiana do Trabalho; Gilberto Guevara Niebla, Director da Revista 2001 do México), foi um dos participantes da Cimeira Internacional de Educação, realizada na Cidade do México, que analisou as consequências para os sistemas educativos da adopção de políticas neoliberais. Tema central da cimeira, o neoliberalismo na Educação, tendência que também se desenha em Portugal, foi pretexto para a entrevista do em foco deste mês de Novembro.

P. Senhor Gentili, entre os conceitos enunciados pelo Dr. Lowy destacamos que o neoliberalismo é um instrumento mais da política hegemónica do mundo capitalista e que o neoliberalismo está ao serviço da irracionalidade mercantil. Do ponto de vista da educação quais são as primeiras consequências destas políticas?

R. O neoliberalismo propõe a privatização dos sistemas educativos. Porquê? Porque sustenta que há uma crise na educação. Defende que tal críse só se resolve com a privatização da educação. Alguns países latino americanos serviram de laboratório experimental a estas ideias com resultados aparentemente milagrosos.

P. Como entende o neoliberalismo a crise no sistema educativo?

R. Do ponto de vista neoliberal, os sistemas educativos enfrentam hoje uma profunda crise de eficiência, eficácia e produtividade.

P. Isso quer dizer que a cobertura educativa na América Latina já é total e o que falta é uma questão de eficácia?

R. Quer dizer que para o neoliberalismo o processo de expansão da escola durante a segunda metade do século XX ocorre de forma acelerada sem que tal crescimento tenha garantido uma distribuição eficaz dos serviços oferecidos.

P. Então, o que dá origem à crise escolar?

R. Segundo os neoliberais, a crise é produzida pela expansão desordenada e anárquica que os sistemas educativos vêm sofrendo nos últimos anos. É uma crise de qualidade, derivada da improdutividade que caracteriza as práticas pedagógicas e da gestão administrativa na grande maioria dos estabelecimentos escolares.

P. Se é assim que o neoliberalismo vê a qualidade no ensino, onde nos leva esta ideia?

R. A que a existência de mecanismos de extensão e de integração escolar são o resultado claro e directo da própria ineficácia da escola e da profunda incompetência dos que nela trabalham. Isto é totalmente inaceitável do nosso ponto de vista. Podemos dizer que do ponto de vista neoliberal se trata de uma crise da administração e gestão e não da democratização da escola.

P. Tal concepção que consequências tem na escola?

R. A subordinação da democratização da escola a uma reforma administrativa do sistema escolar orientada apenas pela necessidade de introduzir mecanismos que regulem a eficácia, a produtividade, etc.

P. Isso soa a tecnocracia, a discurso retórico. Parece que o neoliberalismo entende a qualidade educativa ao mais puro estilo mercantil.

R. Efectivamente, do ponto de vista neoliberal — mesmo considerando os países mais pobres — não faltam escolas: faltam melhores escolas; não faltam professores: faltam professores mais qualificados; não faltam recursos económicos para facilitar políticas que favoreçam a educação, só falta uma melhor distribuição dos recursos existentes.

P. Esse discurso parece-me que predomina tanto na América Latina como na Europa e, pelos vistos é divulgado em vários foruns internacionais e é a política aplicada mundialmente. Com tudo o que acaba de dizer, o que é para o neoliberalismo a transformação da escola?

R. Já aqui foi comentado que para o neoliberalismo isso é uma transformação gerencial a implicar uma mudança substancial nas práticas pedagógicas, bens mais eficientes. Reestruturar o sistema educativo para flexibilizar a oferta educativa; promover uma mudança cultural não menos profunda na gestão; redefinir o perfil do professor, requalificando-o de novo, e além do mais levar a cabo uma ampla reforma curricular.

P. Insisto. Como explica o neoliberalismo a crise do sistema educativo?

R. Defende que a escola funciona mal por ausência de um verdadeiro mercado educativo. Construir tal mercado constitui um dos grandes desafios das políticas neoliberais no campo educativo. A competência interna e o desenvolvimento de um sistema que tenha como base o mérito e o esforço individual podem promover os mecanismos fundamentais que garantam a eficácia dos serviços que oferecem.

P. Mas isso é reduzir tudo ao mercado. Onde estão os valores sociais, a solidariedade...?

R. Efectivamente, para eles tudo é mercado, e a crise é o produto da disfunção da noção de cidadania já que esta, ao basear-se no conceito universal e universalizante dos direitos humanos (políticos, sociais, económicos, culturais, etc), gerará um consumo de falsas promessas.

P. Então, para os neoliberais quem são o os verdadeiros culpados da crise educativa?

R. Bem, citarei uns directos e outros indirectos. Em primeiro lugar, o Estado assistencial, apoiado pelos sindicatos e todas aquelas organizações que defendem o direito igualitário a uma escola pública de qualidade. Os principais: os sindicatos dos professores.

Podemos afirmar portanto, na perspectiva neoliberal, que o Estado e os sindicatos são os principais responsáveis da crise, mas a sociedade não fica à margem, já que é culpada na medida em que as pessoas aceitam como natural e inevitável o "status quo" estabelecido pelo sistema improdutivo do Estado intervencionista.

De forma clara e simples: a escola funciona mal porque as pessoas não reconhecem o valor do conhecimento; os professores trabalham pouco e não se actualizam, são perguiçosos; os alunos fingem que estudam quando na realidade perdem o tempo, etc.

Enfim, para os neoliberais trata-se de um problema cultural provocado pela ideologia dos direitos sociais.

P. Durante a Cimeira, comprovamos que existe um consenso estratégico entre políticos, tecnocratas e intelectuais conservadores sobre como defrontar a crise educativa. Pode resumir as receitas que propõem?

R. Em resumo, os objectivos são a necessidade de estabelecer mecanismos de controlo e evolução da qualidade dos serviços educativos; a necessidade de articular e subordinar a "produção educativa" às necessidades estabelecidas pelo mercado de trabalho; e a estratégia de flexibilizar as formas de contratação e as retribuições salariais dos docentes, mas ao mesmo tempo, desenvolver sistemas estatais de evolução.

O Neoliberalismo deixou as nações mais pobres,

mais excluidas e mais polarizadas

P. Como se repercutiram estas políticas na América Latina?

R. De uma forma terrível, já que deixaram nações mais pobres, mais excluídas e mais polarizadas. Isto está a provocar um confronto de todos contra todos para alcançar a sobrevivência numa sociedade dominada pela economia, que favorece o excessivo pagamento dos interesses da dívida externa, em prejuízo dos salários e da qualidade da vida da população.

Estas políticas incrementam ou incrementaram a desigualdade social, racial e sexual, reproduzindo os privilégios das minorias. Agravam o individualismo e a competição selvagem, quebrando assim os laços de solidariedade colectiva e intensificam um processo antidemocrático de selecção natural onde os melhores triunfam e os mais frágeis perdem.

Com todo este panorama, podemos dizer que a resposta do neoliberalismo é simplista e enganosa, já que promete mercado, quando na realidade, é na própria configuração do mercado que se encontram as raízes da evolução das desigualdades.

O neoliberalismo não diz nada de como actuar contra as causas estruturais da pobreza, pelo contrário, actua intensificando-as.

P. Globalização?

R. A hegemonia do projecto neoliberal expressa-se também em Espanha, Inglaterra, USA e, de uma forma particular, em França e na Alemanha. Podemos reconhecer que o mundo hoje se unificou, em princípio e só, na transnacionalização destas receitas neoliberais. Aplicam-se de forma específica em cada país. O neoliberalismo de Aznar em Espanha, não é o mesmo de Menem na Argentina. Obviamente existem diferenças, mas não existem diferenças no núcleo das ideias, que tanto Aznar como Menem reconhecem e não discutem.

A globalização é paradoxal num certo sentido, sob o ponto de vista dos Estados democráticos, progressistas, porque foram os trabalhadores destes países os que lutaram, participaram para construir políticas internacionalistas (integração mundial dos trabalhadores), daí que esta seja uma ideia progressista. O paradoxo é que esta ideia é conquistada em primeiro lugar pelo capital . O que se passa é que esta globalização não tem nada a ver com a internacionalização que pensam os trabalhadores e as suas organizações. A tal ponto que aparece um novo paradoxo: os trabalhadores abandonam a ideia de globalização, não compartilham o seu conteúdo. É entendida, hoje, como uma integração meramente económica. Vê-se claramente: não é o mesmo a CEE, a política de globalização da Europa, o Mercado Comum Sul Americano, etc., mas todos estes objectvos estão orientados pelo excessivo economicismo. Fazem a economia dos países mais competitiva, mas tem pouco a ver com a realidade social dos povos.

P. Podemos reduzir a globalização a mera economia e assim a educação fica reduzida a puro mercado?

R. Efectivamente, neste contexto o que vemos é que os grupos de poder económico pressionam os governos para que os países em vias de integração tenham a capacidade de reduzir o gasto social. Isto vê-se como é encarado o défice público.

Reduzir o gasto social é a saída segundo estes centros de poder económico, para conseguir o equilíbrio económico. Isto leva-nos a matizar as situações já que não é o mesmo na Espanha, na Alemanha ou na América Latina. O Estado de bem-estar nunca existiu na América Latina. A América Latina caracteriza-se mais por políticas populistas cujo fracasso é mais rápido que o da social democracia europeia. Mas as políticas económicas de um e outro lado do Atlântico, para estabilizar a economia, são as mesmas: reduzir gastos com as políticas sociais, fazer emagrecer o Estado. Isto aparece como uma pré-condição para criar uma integração económica mundial mais salutar.

P. Em Espanha, por exemplo, não se fala tanto da privatização do serviço educativo mas sim da privatização da gestão educativa.

R. Penso que devemos ser cuidadosos quando falamos de privatização da educação, no sentido estrito em que o fazemos em relação às privatizações de empresas produtivas do Estado.

Dificilmente algum empresário ou grupo empresarial comprará o sistema educativo ao Estado, como podem fazer com os telefones em Espanha ou a electricidade.

Vejamos o caso latino americano. As chamadas políticas de descentralização e de gestão. Supostamente isto supõe um dinamismo maior na administração dos centros educativos. Mas, o que é que está a suceder na América Latina? As instituições educativas estão sem recursos. Não têm os recursos financeiros necessários para manter em funcionamento as instituições. A descentralização sempre permite que a administração autónoma das escolas possa ser também a administração autónoma dos recursos, que as escolas podem ter poder para obter recursos na sociedade. O que é que acontece? Ninguém vendeu as escolas, mas qual é a realidade? A escola não tem recursos, a comunidade vê-se na necessidade de manter a sua instituição educacional e, por outro lado, está autorizada a obter recursos da comunidade. É aí que os vai procurar. O que é que temos observado e que conclusões podemos tirar das políticas que chamamos de descentralização educativa na América Latina? O Estado desresponsabiliza-se, entrega tudo aos municípios. Os municípios mais pobres vêem-se obrigados a obter recursos na sua própria comunidade para manter a escola. Esta é uma forma de privatizar a escola na medida em que é a sociedade civil quem tem de manter a responsabilidade que o Estado delegou no município e este na sociedade.

P. Em Espanha a Lei de Bases permite a captação de recursos. Actualmente estamos mergulhados num processo de transferências do sistema educativo para as comunidade autónomas. Todos as pedem e as desejam. Que diferenças se podem observar neste processo com a América Latina?

R. Isto também é uma questão complexa. O grande desejo de descentralização, historicamente, é um desejo dos sectores democráticos. Só que o neoliberalismo joga com uma armadilha muito complexa. De facto, o neoliberalismo descentraliza, no caso latino americano, a gestão de recursos. Isto quer dizer: "Se vocês não têm dinheiro para financiar as escolas, nós autorizámo-los a obter recursos no mercado". Esta é a única coisa que se descentralizou.

Este pedido dos sectores democráticos de descentralização supõe que as escolas tenham mais poder na gestão pedagógica. Gestão que na América Latina não se descentralizou. Os governos centralizaram de uma forma brutalmente autoritária a reforma curricular. De tal forma que alguns governos contrataram equipas técnicas profissionais, alguns muito competentes, de outros países, por exemplo Espanha, para realizar a reforma curricular.

O livro branco da reforma espanhola transformou-se na bíblia para os Ministros da Educação da América Latina. Os mesmos ministérios que transferiam para os municípios a responsabilidade para financiar a educação centralizavam de uma forma autoritária a reforma curricular, não permitindo que as escolas discutissem o conteúdo do conhecimento oficial, o conteúdo das matérias, as disciplinas do plano curricular, etc.

O professor César Coll, um professor que merece o maior respeito profissional, foi o coordenador da reforma no Brasil. Apenas não fala português, e com isto não estou a dizer que não seja uma pessoa muito capaz. Mas observe a ousadia de coordenar a reforma curricular de um país do qual não conhece a realidade, ou conhece-a de uma forma muito superficial como qualquer estrangeiro. A realidade política, cultural, a língua, a história, enfim, tudo o que é fundamental na hora de definir o conteúdo do currículo. E a equipa coordenada pelo professor Coll não foi uma equipa de brasileiros. Foi uma equipa com escassíssima participação de brasileiros. Foi uma equipa que definiu o currículo nacional que hoje está a ser discutido no Brasil, ou o documento básico curricular que é uma cópia exagerada e insolente do que foi o documento base elaborado na Catalunha, transferido para a realidade brasileira.

P. Como pode adequar-se uma reforma teórica feita em Espanha a outra realidade? Inclusiva podemos falar do fracasso da reforma em Espanha por falta de participação dos professores e por carecer de uma lei de financiamento adequada.

R. Isso é muito interessante. Coll também participou na reforma Argentina, mas quando mais tarde chega ao Brasil, já ninguém duvidava do fracasso da reforma espanhola. O governo contrata-os e não diz que as reformas nas quais eles participaram fracassaram; pelo contrário, diz que são um verdadeiro êxito. Só que isto é uma política de enganos dos nossos governos para com os nossos professores. Inclusivé nós dizíamos: temos uma vantagem e uma desvantagem: esta é a que aplicam modelos aproximados ao fracasso e a vantagem é que tendo contactos com companheiros e companheiras que trabalham em Espanha, eles podem dar argumentos para a crítica, pois os mesmos problemas que reconheciam vocês em Espanha, são os mesmos que nós estamos a reconhecer aqui, quando se aplicam as mesmas receitas que fracassaram em Espanha e vão fracassar mais estrondosamente aqui porque as nossas condições são muito piores. Dar-lhe-ei um exemplo: o tema da psicologização da reforma, quer dizer, um excessivo ênfase nos aspectos psicológicos, que já foi uma crítica que se formulou na proposta da equipa de Coll.

Esta psicologização dos problemas pedagógicos, num contexto de histórica discriminação educativa como temos na América Latina. No Brasil há 30 milhões de analfabetos, a grande maioria dos alunos não chega a concluir a escola primária. Não existem possibilidades de manter uma escola de qualidade para a maioria, nem sequer se garante para esses sectores a permanência no sistema. Não é só uma questão de qualidade mas também de quantidade. Expulsam-nos do sistema educativo. Então, como vê, nós estamos a viver a psicologização da reforma num contexto de brutal exclusão educacional. Aqui não se está sequer a garantir o acesso à escola para a grande maioria das crianças. A nossa situação é ainda pior no sentido de que nos encontramos em condições materiais diferentes das de Espanha. Isto é o que transforma também em muito mais cínica a nossa reforma, e muito mais cínica a acção dos nossos intelectuais que a apoiaram, que foram absolutamente insensíveis a uma realidade social que não se pode desconhecer se se quiser fazer uma política educativa democrática.

Que há uma realidade de milhões de crianças, de professores/as que todos os dias tratam de manter um sistema educativo público, que se verifica como um sistema profundamente incentivo-discriminador, marginalizador. Salários miseráveis, condições de trabalho e materiais miseráveis nas nossas escolas. Esta é uma situação, e sobre esta realidade se imprimiu uma reforma absolutamente centralizada, porque esses professores, esses pais, essas associações de professores, nunca foram consultadas na hora de discutir a reforma curricular.

P. Isto leva-me a questionar sobre a importância que se está a dar aos técnicos, e sobre a desumanização da educação com tanto tecnocrata.

R. Sim, creio que isso é importante, porque hoje estamos a viver a volta ao velho tecnicismo. Parecia esquecido, mas hoje vem com uma nova roupagem, com uma nova vestimenta, novas máscaras. Segundo o último diagnóstico, a crise educativa é uma crise de gerência do sistema educativo, de eficácia. A possibilidade de superar essa crise passa pela capacidade que os governos tenham de aplicar algumas receitas técnicas que são universais. Isto revaloriza a função do técnico, como indivíduo aparentemente neutro que trabalha em qualquer contexto, não importa a realidade porque a receita é universal e que aplica uma série de passos e critérios que vão ter um efeito seguro e mágico na melhoria da qualidade do ensino. Mas isto é falso. Foi-o nos países industrializados e muito mais nos do terceiro mundo. É falso que os técnicos são trabalhadores neutrais do conhecimento, que só aplicam receitas.

P. Isso é curioso, pois em Espanha actualmente encontramos gente que trabalhou em administrações de carácter socialista e agora acontece que são técnicos.

R. Essa é a essência do tecnocrata. Não tem compromisso político. Tem uma falta de respeito para com a história, a idiossincracia, as características de um povo. Vejam por exemplo as equipas técnicas que vieram aplicar a reforma no Brasil. Imagina-se que são os mesmos que propuseram o currículo na Catalunha?

A resposta desta gente é: "Nós somos técnicos; temos um saber, um conhecimento que os vai ajudar e que garante pela sua própria força um resultado positivo. Fazer um currículo em Espanha, Argentina, Brasil, nesta concepção tecnocrata é a mesma coisa.

Mas nós, que trabalhamos na escola, sabemos que isso é absolutamente falso. Não é o mesmo fazer um currículo em Espanha, Argentina, etc., e, além disso, ainda sabemos mais: que nenhum currículo vai ter êxito se não se fundamentar numa construção colectiva em que participem os professores, pais e entidades sociais. Isto não é um democratismo absurdo, esta é a realidade concreta. As reformas que não envolvem a participação social fracassam. Não só fracassam, como também são autoritárias e contradizem qualquer princípio democrático. Mas isto é o que o neoliberalismo tem feito na América Latina.

Recuperar o internacionalismo democrático

P. As crises são globais e diferentes? De que forma os professores, sindicatos e outras instituições civis podem ajudar a mudar estas políticas?

R. Essa é uma pergunta de milhão. Pelo menos para os que estamos num ambiente sindical, mas é interessante porque analisar as reformas neoliberais permite-nos reconhecer um factor que foi central nas políticas neoliberais: o factor cultural.

O neoliberalismo está tendo êxito não só porque está a aplicar uma série de receitas: propostas de reformas concretas, transformações das instituições económicas, jurídicas, educativas... mas também porque transforma a cabeça das pessoas. Há uma componente cultural muito forte no neoliberalismo. Este transformou-se no sentido comum, a partir do qual a gente analisa a nossa vida, as nossas instituições, a educação dos nossos filhos... e a partir do qual definimos as nossas próprias expectativas de vida. Transformou o nosso modo de pensar.

Isto revaloriza a função do sindicato, porque o sindicalismo não tem só o grande desafio de criar programas alternativos, de demonstrar a possibilidade de transformar as nossas instituições , neste caso as educativas. O sindicalismo tem que desenvolver uma batalha cultural, tem que demonstrar que esta realidade não só é inviável mas também tem que criar uma nova cultura, trabalhar na redefinição da ética da cidadania, do espaço público, da possibilidade de criar uma democracia verdadeiramente substantiva.

Penso que o papel do sindicato se fortalece a partir do reconhecimento de que a luta está a intervir tanto no plano das propostas e das políticas, como no plano da cultura no sentido comum. Temos que criar um novo sentido comum: democrático, dos direitos, da cidadania, da igualdade. É o que nos nossos países se perdeu, e nisso o sindicalismo joga um papel fundamental, nesta batalha cultural, que também é a batalha das palavras, pelos discursos, para impôr um novo conteúdo aos nossos consignatários.

Esta luta cultural dos nossos sindicatos ver-se-á altamente fomentada e enriquecida pelo intercâmbio internacional. Com a possibilidade de tornar a recuperar, provavelmente, um novo conteúdo: o nosso antigo internacionalismo, ou seja, começar a reconhecer que se o neoliberalismo é um projecto mundial, também temos que opôr um projecto mundial que reconheça que os nossos fracassos e êxitos poderão orientar-se no sentido positivo se conhecemos os êxitos e os fracassos dos nossos vizinhos, dos nossos companheiros que estão noutros países e continentes. Esta possibilidade de intercâmbios de professores da Europa e da América Latina daria uma riqueza à nossas lutas. Por um lado para nós suporia aprender o que têm sido as vossas lutas no contexto da reforma que se desenvolveu ao longo dos últimos anos. Dos êxitos e dos fracassos que vocês têm tido. Por outro lado, também vocês poderiam reconhecer o que do outro lado do oceano, a partir das condições de miséria e de exploração e de marginalidade que aqui existem, também existem professores dispostos a lutar por uma escola pública, democrática e de qualidade. E que também podem com essa luta transmitir-lhes alguma experiência que lhes pode servir em futuras lutas, em futuras resistências ou em futuros projectos democráticos.

Creio que recuperar o internacionalismo democrático é fundamental porque creio que o pior que podemos fazer para opor à globalização excludente do neoliberalismo é cair num novo provincionalismo de fechar-se nas suas próprias fronteiras locais sem conhecer as experiências actuais, não aprender o que têm sido os fracassos ou os êxitos daqueles que estão a lutar pelos mesmos ideais, as mesmas esperanças.

P. Durante estes dias, comprovamos como estão surgindo, tanto na Europa como na América Latina, movimentos sindicais alternativos às grandes centrais. Como vê estes movimentos?

R. Na América Latina há que renovar o sindicalismo, porque há uma nova realidade que merece um re-discussão das nossas instituições. Na América Latina isto torna-se uma heresia, mas é necessário renovar as nossas instituições sindicais, para serem mais dinâmicas na luta, para encarar novas formas de resistência, de propostas, para poder reconhecer o que o sindicalismo sempre reconheceu: que a realidade muda e, se esta muda, nós também. Não podemos aplicar as mesmas receitas do passado. Não devemos abandonar os nossos ideais mas dotá-los de uma nova força, novos conteúdos, novos impulsos. É um grande desafio ao sindicalismo e isso coloca-nos perante um sindicalismo combativo, com ideias, com propostas, com capacidade de resistência perante um futuro que esperamos seja muito melhor que a realidade que hoje vivemos.

P. Como se pode, então, actuar contra estas políticas ter perniciosas para a maioria da população, e em especial para a educação?

R. A luta é grande e complexa. O que diria em primeiro é que a esquerda, o sindicalismo, a escola não devem ser arrasados pelo pragmatismo conformista e acomodado. O neoliberalismo não é a única opção possível para a crise.

Os que trabalhamos no campo da educação temos que ter em conta que o neoliberalismo deixar-nos-à umas escolas muito piores que as que temos agora. Não se trata de um problema de qualidade pedagógica, mas do problema das escolas serem mais excluentes. A nossa inteligência pessimista deve considerar criticamente este sistema que luta contra a educação das maiorias, e o nosso optimismo deve manter-nos activos na luta contra um sistema de exclusão social que quebra as bases que sustentam a democracia: o direito à educação como pré-requisito básico para conquistar a cidadania, uma cidadania plena que só pode concretizar-se numa sociedade radicalmente igualitária.

P. Por último, que mensagem nos deixaria?

R. Que os sindicatos dos professores, os educadores e a sociedade em geral lutem. Não podemos ficar parados. Há que criar um novo consenso, diferente do neoliberalismo, que reconheça que os direitos humanos e sociais não se negoceiam, porque os direitos para poucos são privilégios.

Por último, quero fazer um realce especial ao proclamar que a educação só é eficaz se é igualitária, pública, gratuita, e laica.

Entrevista conduzida por Pedro Polo

*Pablo Gentili nasceu na Argentina e reside actualmente no Brasil. É professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro e ex-bolseiro investigador do DAAD (Alemanha) e da FLACSO (programa argentino).

Autor das seguintes obras:

- Poder económico, ideologia e educação

- Projecto neoconservador e crise económica

- Pedagogia da exclusão

- Escola sociedade anónima

- Cultura, política e curriculum. Ensaios sobre a crise da escola pública.


  
Ficha do Artigo
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Autoria:

Pablo Gentili
Laboratório de Políticas Públicas, Univ. do Estado do Rio de Janeiro, UERJ, Brasil
Pablo Gentili
Laboratório de Políticas Públicas, Univ. do Estado do Rio de Janeiro, UERJ, Brasil

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