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Modéstia à parte, sou professor... Também quero discutir a educação

Jornalistas, comentadores, analistas, vendedores, autarcas e políticos vários, pais, avós e outros familiares, patrões e presidentes de patrões, sindicalistas vários, alunos e professores universitários, advogados, gestores da coisa pública e privada, presidentes de partido ou mesmo secretários gerais, adivinhos e videntes, controleiros políticos e outros que tais, todos falam, escrevem e opinam sobre educação em Portugal. É com o mesmo descaramento dos ingénuos que aqui se apresenta, à consideração dos leitores mais pacientes, estas pistas de reflexão

I - A Má Escola que Temos. Os Currículos e Programas.

1 - A crise da educação é, certamente, um dos mais sérios problemas que enfrenta o nosso país. A escola em Portugal não está a ser capaz de preparar com a devida seriedade as futuras gerações. Não está a ser capaz de responder aos desafios do presente, nem de compreender os desafios do futuro.

2 - O que torna a educação democrática, o que assegura a todos igualdade de oportunidades, não é apenas o direito de acesso à escola. É o direito de acesso ao saber. É o direito de cada um adquirir um saber que lhe permita inserir-se, com sucesso, na sociedade e em consequência ser socialmente útil.

3 - Quando a escola não permite o acesso a um saber estruturado e estruturante - pela informação que dá, pelo saber que enriquece a pessoa, pelas oportunidades de vida que abre aos jovens, pelo raciocínio crítico que produz - ela torna-se alienante. Alienante porque apenas fornece a aparência, a caricatura do saber, o conformismo, a sub-cultura.

A má escola transmite apenas a aparência do conhecimento. Não permitindo o verdadeiro conhecimento, impede que ele seja procurado por outras vias. A má escola tem efeitos mais negativos que a ausência de escola.

4 - A má escola para além de alienante é também elitisante. Uma criança rica pode suprir, em sua casa, com os livros disponíveis da família, com o contacto familiar, com a convivência cultural com pessoas do seu meio ou ainda com o recurso a professores particulares, o que a escola má não lhe dá.

Uma criança pobre, de origem culturalmente modesta, fica dependente em absoluto da escola, só esta lhe poderá dar o enriquecimento intelectual. Se a escola é má e falha, a criança pobre fica sem alternativas e é, assim, condenada ao insucesso escolar. A má escola é também responsável pelo aumento do trabalho infantil.

5 - É reconhecido que nem todas as crianças têm à partida as mesmas condições para o sucesso. As crianças de meios carenciados estão mais fragilizadas, pelo que a má escola tem consequências ainda mais dramáticas para estes grupos sociais.

6 - O ensino é mais válido quando a escola concilia as heranças culturais da humanidade e do país com as novas conquistas universais do saber e da cultura. O ensino ajuda os indivíduos a serem mais livres na medida em que os ajude a percepcionar a sua missão pessoal. Educar é ajudar cada um a tirar de dentro de si as energias criadoras que transporta. É ajudar cada um a ter confiança em si mesmo e a aprender a procurar o conhecimento integrando-o na sua pessoa. O ensino deve colaborar na integração dos indivíduos - desenvolvendo as suas potencialidades - na sociedade global de que faz parte e no meio social em que vive e de que participa.

As pessoas, quanto mais conscientes da sua dignidade e dever, mais desejam participar activamente na vida social, na vida económica, cultural e política.

7 - Qualquer português sabe que as possibilidades de desenvolvimento do nosso país, as possibilidades de nos aproximarmos dos países mais desenvolvidos, passam em larga medida pela educação.

Os portugueses também sabem que o nosso atraso crónico se deve em larga medida ao nosso atraso educativo. Se deve aos baixos níveis de formação da população portuguesa.

Adiar medidas de fundo que contrariem este atraso é comprometer o presente e o futuro do país. As medidas económicas nada conseguirão se não forem sustentadas no desenvolvimento da educação e do ensino.

Portugal é um país com cerca de um milhão e duzentos mil analfabetos e com mais de três milhões de pessoas que pouco mais sabem do que ler e escrever o seu próprio nome. Estes são factos iniludíveis e a ter em conta na transformação e reorganização do sistema educativo em Portugal.

8 - O problema do ensino em Portugal não é apenas uma questão de mais verbas para a educação. O dinheiro só por si não é nada. É necessário saber o que se gasta e onde se gasta. A Administração Central e Regional Educativa é hoje uma máquina sorvedoura de dinheiro sem resultados práticos.

A maior parte das verbas para a educação são gastas de forma inútil porque a administração burocrática, a falta de objectivos claros e coerentes de política educativa, a falta de desconcentração da administração, a ausência de autonomia de quem trabalha nas escolas, a falta de simplificação de processos, tudo concorre para o nosso atraso educativo.

Mais verbas para a educação sem uma clarificação da política educativa e sem simplificação de processos nada poderão resolver, a não ser tornar a máquina educativa ainda mais inoperante e pesada.

9 - As nossas escolas mantêm os modos de funcionamento das velhas escolas primárias e dos velhos liceus. Tudo se reduz e se concentra nas aulas. É ao trabalho de aula que está subordinado o horário dos alunos e dos professores. É ao trabalho de sala de aula que se reduz em larga medida a relação pedagógica.

A última reforma nada alterou do velho e caduco regime a não ser agravar-lhe os males, porque à diversificação de processos de ensino/aprendizagem preferiu aumentar a carga lectiva em sala de aula tornando ainda mais pesados e obsoletos os programas de cariz centralizador.

10 - Nas nossas escolas os nossos alunos continuam a não ter tempos e espaços dedicados ao trabalho individual e ao trabalho em equipa. Continuam a não ter tempos e espaços destinados à pesquisa individual e de grupo. Continuam a não ter tempo e espaço para o desenvolvimento global das suas pessoas. Tudo repousa nos conhecimentos transmitidos pelos professores na sala de aula e na avaliação dos conhecimentos transmitidos.

Com a nova reforma intensificou-se a quantidade de tempo e de processos burocráticos dedicados à avaliação dos alunos. A actividade de aprendizagem está em larga medida consumida pelos imperativos da avaliação sem que destes resulte qualquer coisa de útil para uma verdadeira apropriação do saber.

AGORA TAMBÉM QUERO FALAR DE REFORMA

11 - A reforma não clarificou núcleos de saber considerados fundamentais nem tornou clara a forma do seu progressivo aprofundamento e das suas ligações horizontais e verticais.

A Reforma limitou-se, em muitas disciplinas, a acrescentar, de forma desgarrada, mais conhecimentos eruditos e desligados da realidade vivida pelos alunos.

Não existe um núcleo fundamental de conhecimentos universais que os alunos aprofundem e alarguem à medida que progridem no sistema. Não se organizou um conjunto de conhecimentos gerais, da cultura portuguesa ,que se aprofundem e alarguem à medida que os alunos progridem nos ciclos de ensino. Não se encontraram conhecimentos gerais de carácter local de que os alunos se apropriem à medida que progridem no seu desenvolvimento pessoal e cívico.

O que hoje é propostos aos alunos é uma vastíssima amálgama de afloramentos a conhecimentos díspares, desligados entre si e distantes da realidade visível aos estudantes. O que hoje se propõe como aprendizagem aos estudantes é um programa anárquico, copiado parcialmente de programas estrangeiros ou de disciplinas universitárias, um conhecimento escolarizado, distante das necessidades e realidades da vida social em que os alunos e professores estão imersos.

A reforma a que a nossa escola foi submetida, em vez de ser motivo de esperança, produziu inquietação social, perplexidade nos professores e desassocego nas famílias. A má escola em Portugal está mais distante da sociedade portuguesa e do tempo em que vivemos.

12 - Afirmando a reforma querer um sistema de ensino para cada um, nenhuma mudança estrutural foi feita no sentido de respeitar as capacidades, inclinações e competências específicas dos alunos. Pelo contrário, o que se quis, nos últimos anos, foi eleger algumas disciplinas como mais importantes e indispensáveis a "um verdadeiro saber". Mais grave ainda, esta eleição das disciplinas nobres foi feita pelo nome das disciplinas sem se cuidar dos conteúdos reais que elas hoje propõem.

Em vez de se partir dos conhecimentos e interesses das crianças e jovens, em vez de se olhar para a multiplicidade de formas de inserção na sociedade e no mercado de trabalho, em vez de se entender que a inserção social exige diversidade de competências e saberes, criou-se uma forma a que todos inevitavelmente se teriam de conformar.

A sociedade é diversa e oferece múltiplas funções, pelo que a escola cumprirá melhor o seu papel se for capaz de respeitar e ampliar competências diversas nos alunos. Homogeneizar é criar obstáculos à inserção social dos jovens e é tornar a sociedade ainda mais desequilibrada.

13 - Enquanto nos 2º e 3º ciclos e no Ensino Secundário se alargaram as cargas horárias dos alunos, no 1º ciclo continuou-se a trabalhar em escolas de "meio-tempo" como se às crianças do 1º ciclo lhes bastassem as matérias tradicionais - agora apresentadas de forma mais atomizada e dispersa - dadas de forma tradicional.

É nossa convicção que o 1º ciclo necessita de alargar o seu tempo de trabalho para cumprir de forma capaz os objectivos que lhe são propostos. Não defendemos a sobrecarga horária das crianças do 1º ciclo, nem o alargamento das matérias neste sector de ensino. Pensamos sim que este ciclo necessita de cinco anos para cumprir os objectivos que actualmente lhe estão propostos.

14 - No que respeita aos edifícios escolares eles continuam a ser construídos para uma escola de sala de aula, quadro, giz, papel e lápis. São escolas pensadas em torno da aula e da aprendizagem circunscrita ao programa de disciplinas dispersas. Nenhuma modificação se fez para permitir o estudo individual e de grupo no interior da escola. Nada foi feito para acolher o trabalho dos colectivos de professores. Nenhuma modificação para permitir o trabalho de equipas pedagógicas.

As nossas escolas continuam a dispor apenas de salas de aulas, corredores, sala de professores e, nalguns casos, o polivalente como espaço de espera da próxima aula.

A esta falta de inovação, devemos juntar o facto de a maior parte das nossas escolas trabalharem com o dobro ou triplo dos alunos para que foram construídas. As escolas em Portugal raramente estão construídas a uma escala que permita a convivencialidade de alunos e professores. São espaços desumanizados, áridos, desconfortáveis, propícios à indisciplina, à confusão e ao barulho.

Os edifícios escolares têm de ser repensados. É necessário pensar a escola como um local onde os alunos trabalham, convivem e se socializam. Ao sair da escola, ao fim de um dia de trabalho, o aluno deve sentir que cumpriu o seu trabalho escolar: de aula, de grupo e individual. Ao fim do dia deve ser liberto para outras formas de convívio, seja com a família ou com os amigos. Por isso os edifícios escolares e a organização do dia de trabalho escolar devem ser completamente repensados.

15 - O problema da nossa escola é institucional.

15.1 - Estamos a pagar o preço de algumas décadas de confusão e ineficiência.

Nos últimos vinte anos apostou-se em tudo e em todas as direcções o que quer dizer que não se apostou seriamente em nada. Cada governo, cada ministro, cada secretário de Estado, cada director-geral, cada grupo de trabalho teve a sua ideia. E todas estas ideias foram pouco esclarecidas e contraditórias entre si. Criou-se na orientação política do sistema uma verdadeira confusão.

A legislação produzida nos últimos vinte anos é uma manta de retalhos. Aponta em direcções contraditórias e embora sendo apenas retórica é um obstáculo ao trabalho dos professores nas escolas.

15.2 - Na área pedagógica a confusão não foi menor. A área das ciências da educação é recente em Portugal. Não existe tradição na formação de formadores. A formação destes é superficial, feita de pequenos afloramentos, desgarrada e contraditória.

Dum modo geral a formação de cada formador circunscreve-se a esta ou aquela corrente pedagógica, muitas vezes é uma formação constituída por influências e ideias contraditórias e, sobretudo, livresca. Não é raro esta formação dar origem ao aparecimento de "pequenas seitas pedagógicas". Os formadores veiculam para os professores e para as escolas estas contradições e superficialidades.

A formação continuada, que poderia ter um impacto positivo sobre a escola, parece ter tido um impacto negativo. Criou incoerências de métodos e processos de trabalho. Fez de coisas menores coisas maiores. Lançou insegurança sobre o saber dos professores. Impediu que as relações pedagógicas ganhassem alguma coerência.

Os alunos, que sofrem o trabalho dos professores, não ficaram imunes a esta situação de incoerência pedagógica. Por vezes têm dificuldade em se adaptar à diversidade de solicitações e de métodos e processos de trabalho de cada professor.

A escola em Portugal precisa de clarificação também ao nível das ciências da educação e precisa de tempo para eliminar o inútil e apurar processos mais coerentes do pensar e do fazer em educação.

São precisos ainda tempo e formas de avaliação que permitam distinguir os formadores qualificados dos simulacros de formador. É preciso ainda tempo e competência para que o "mercado" da formação distinga o trigo do joio.

Por seu lado os professores precisam de reganhar confiança em si mesmos e voltarem a sentir-se os principais construtores do seu próprio saber profissional.

A corrida a acções de formação ou a cursos que conferem graus académicos, por oposição à constituição de colectivos escolares que desenvolvam, aprofundem e ampliem, no local de trabalho, o saber específico dos professores, é de momento um obstáculo à renovação da escola em Portugal. Os professores têm de combater a tendência para o desenvolvimento de um trabalho individualizado. Precisam de desenvolver maior apetência pelo trabalho colectivo e contextualizado na escola. Precisam de ganhar confiança no "saber de experiência feito", no senso comum porque construído a partir da realidade vivida.

As políticas que favorecem as atitudes individualistas e o desenvolvimento da carreira de forma mais rápida por actos de individualismo devem ser desencorajadas. Devem ser encorajadas as atitudes e o trabalho desenvolvido pelos colectivos escolares seja pelo impacto que têm na escola, seja pelo impacto que têm na comunidade educativa. Não é esta a política consagrada na legislação mais recente sobre o estatuto e a carreira dos professores.

A PROPÓSITO, QUERO FALAR DE IDEOLOGIAS...

16 - Não existindo coerência ao nível das relações pedagógicas, a escola em Portugal tornou-se ainda mais frágil face ao poder da classe dominante. A escola em Portugal continua a ser um instrumento da classe dominante que a usa para perpectuar o seu poder. Por intermédio da escola, transmite os seus valores, põe em causa os valores transportados pelas crianças e jovens oriundos das classes populares, menospreza esses valores, considera-os negativos nos seus processos de avaliação e de selecção, marginalizando-os ou fazendo-os em alternativa aceitar os valores da classe dominante.

Pelo contrário a escola devia ser lugar de aprendizagem e de desenvolvimento dos jovens dando-lhes capacidade crítica, ajudando a preparar os jovens para desejarem participar na construção de um mundo mais justo.

As imagens e os valores transmitidos pela burguesia, para além de socialmente inúteis, fossilizam uma realidade que deveria ser alterada.

17 - Perante esta situação corremos o risco de se estar a caminhar - com o actual governo - para um sistema híbrido que, como todos os híbridos, só pode ser estéril. Tudo indica que se caminha para o desprezo do conteúdo do ensino. Procura-se criar um compromisso entre restos de programas-nacionais com currículos criados por iniciativa local. Isto, à mistura com áreas genéricas de saber, centros de interesse, entre outras iniciativas.

Se esvaziar-mos a escola de um núcleo de conteúdos universais que se articulem com um conjunto de conhecimentos gerais de carácter nacional, combinados com conhecimentos locais, a escola não se torna mais inovadora e melhor.

Pelo contrário, se a escola for despida de conhecimentos básicos, universais e nacionais, capazes de exercerem uma função estruturante das crianças e dos jovens e de lhes fortalecer a capacidade de raciocinar e de analisar, a escola, em vez de se tornar de melhor qualidade, só pode ser ainda de pior qualidade do que já é.

Caminhar para uma escola baseada na construção exclusiva de currículos locais e de resposta ao gosto imediato das crianças e jovens é um mau caminho. Apostar exclusivamente numa escola "criativa" é confundir os fins com as causas.

Ninguém pensa no vazio. Ninguém é criativo na ausência de conhecimento estruturado. A criatividade e a inovação não se constroem se não estiverem suportadas em informação sólida.

No nosso mundo há factos básicos e elementares que são comuns a todos, que todos devem conhecer, e que a pedagogia indica em que faixa etária devem ser apreendidos e aprofundados. Há valores que a escola não pode desprezar e que têm de ser proporcionados pela escola aos alunos. Só assim a escola assume também o seu papel de instituição de ligação entre gerações. Só assim a escola se liga à realidade viva.

18 - Os programas-padrão não têm cabimento hoje na nossa escola, se a queremos apta a responder aos novos desafios que a sociedade, a ciência e a técnica nos lançam no dia a dia. Mas isto não quer dizer que se caia no oposto de pensar que a escola pode passar sem uma clara definição de conteúdos e exigências mínimas. Não podemos cair no erro de entregar a tarefa de sistematizar e dosear as informações mínimas de que precisará o homem do Terceiro Milénio a alguns heróis, mais ou menos impreparados e mal pagos, que se encontram espalhados pelas escolas deste país.

Exige-se saber e clareza. É necessário que professores, alunos, pais, saibam claramente que saberes e competências a escola se propõe proporcionar e como o pretende fazer, para que todos possam desempenhar com qualidade o seu papel.

19 - Durante demasiado tempo vivemos sob o signo do neoliberalismo. A fase de transição liberal deve permitir reconstruir a vida pública e social, a qual deve refazer mecanismos de controle sobre a vida económica, uma vez que, se esta for deixada à sua sorte, não se torna livre, mas sim selvagem.

20 - Para se lançarem as bases de uma escola de qualidade entendemos ser necessário superar o neoliberalismo, criar uma nova sociedade que não nos deixe apenas perante uma economia autoregulada e vazia de conteúdo social e político. Não superaremos a má escola enquanto a economia não estiver ao serviço das pessoas e permanecer apenas ao serviço do lucro máximo de uma pequena minoria.

21 - Estamos perante uma massificação da escola mal compreendida e mal orientada.

A escola massificou-se no bom sentido da palavra. As portas da escola abriram-se a todas as crianças e jovens.

O problema é que, até agora, os responsáveis pela política educativa não foram capazes de entender as consequências desta profunda alteração. Continua-se a querer que a escola funcione como se esta realidade não existisse e como se vivêssemos na escola ultra-selectiva de há trinta anos atrás.

Pensar esta alteração, encontrar-lhe uma verdadeira resposta, levará inevitavelmente a uma verdadeira refundação da escola e do sistema educativo, nomeadamente nos seus processos de organização interna, na forma de disponibilizar o saber, nas relações pedagógicas, na forma de estar de alunos e professores, na organização do trabalho dos professores e alunos, no modo de participação dos parceiros educativos.

22 - A influência de orientadores mal preparados e/ou comprometidos ideologicamente é uma realidade A maior parte dos orientadores e formadores de professores têm uma baixa formação. Esta formação é livresca, académica, superficial, sectorializada e descontextualizada da escola. Este facto tem contribuído para lançar no seio dos professores a confusão em vez da inovação.

23- A má formação e a desorganização da burocracia do Ministério da Educação é outra realidade. Existem no Ministério da Educação e nos seus prolongamentos centenas de grupos de trabalho, milhares de pessoas, que perderam completamente a noção da realidade das escolas. Vivem descontextualizados da realidade educativa e seguem fins que nada têm a ver com a resolução de problemas ou com o apontar de soluções. A sua principal finalidade é justificar o seu posto de trabalho e salientar-lhe a importância junto dos seus pares.

Para que surja uma escola de melhor qualidade em Portugal é necessária uma completa desburocratização do Ministério da Educação e dos seus prolongamentos.

CUIDADO COM AS IMITAÇÕES.

24 - A orientação educativa em Portugal vive da imitação de modelos estrangeiros muitas vezes apenas experimentais, não consagrados nos países de origem, nem aí adoptados ou já aí muitas vezes abandonados por se lhe reconhecer ineficiência. Isto mostra a fragilidade da nossa administração educativa e da nossa investigação na área da educação e a dificuldade que todos têm em lidar com a nossa realidade.

Apoiar os que investigam e lidam com a realidade educativa portuguesa e sobre ela são capazes de trabalhar é uma condição para a construção de uma escola de melhor qualidade em Portugal.

25 - Entre nós continuam a privilegiar-se o desperdício em várias áreas da educação. A questão dos salários dos professores e educadores continua a ser uma das últimas preocupações dos governantes. A burocracia, a máquina governamental, absorve uma boa fatia do orçamento disponível.

A rede escolar e a gestão do corpo docente são mal geridos. O corpo docente não é tratado como corpo especial - a merecer atenção individualizada - mas como um simples prolongamento do conjunto dos funcionários públicos. Os baixos salários e as más condições de trabalho dos docentes não são atractivas para as novas gerações. Por essa razão a profissão é hoje procurada pelos jovens com baixo aproveitamento escolar e que não conseguem ingressar noutros cursos.

Para os docentes que já trabalham no sistema, esta situação é proporcionadora de abandono da profissão por parte de professores com maior iniciativa, dá origem ao desenvolvimento da procura de um segundo emprego ou transforma a função educativa em mero complemento de uma outra actividade mesmo que seja a doméstica.

Para melhorar a escola seria necessário reconsiderar os salários e a carreira dos professores tornando-a mais atractiva ao mesmo tempo que se devem aumentar as exigências para o ingresso e permanência nesta profissão.

26 - Há quem afirme que 60% das nossas aprendizagens ocorreram antes dos seis anos de idade, em casa, nas ruas, na observação da vida ou na educação pré-escolar, nos casos mais felizes. O que resta então para a educação básica, secundária e superior?

A Escola Básica, Secundária e Superior é responsável por tudo o que separa o letrado do iletrado. É também responsável por sistematizar tudo o que aprendemos fora da escola seja durante a infância seja ao longo da vida. Ordena, leva-nos a conclusões, dá amplitude ao que antes observámos. Sistematiza conhecimentos que adquirimos na vida diária.

Para construir uma nova escola em Portugal é necessário que ela se dote da capacidade de sistematizar e aprofundar conhecimentos adquiridos na vida diária e seja capaz de proporcionar outros que sendo fundamentais só a escola se encontra em condições de proporcionar.

27 - Reconhecemos que perante o avanço, inexorável, da sociedade do conhecimento, os países desenvolvidos têm de dirigir um olhar cada vez mais atento para o ensino secundário, como uma etapa formativa verdadeiramente crucial e como modo de combater o desânimo dos jovens e a marginalização social. A má escola em Portugal não foi capaz de construir um verdadeiro projecto para o ensino secundário e de responder ás necessidades de formação dos jovens que terminando o ensino secundário não ingressam no ensino superior.

O mundo empresarial português, preocupado apenas com o recrutamento de mão-de-obra barata e com a vinculação precária ao emprego, não deu nenhum contributo para superar este problema. Para superar a má escola que temos é necessário que as empresas em Portugal dêem um contributo sério na formação para o posto de trabalho, sem desconsiderarem a formação que a escola dá aos jovens.

28- A observação da realidade escolar que nos envolve leva-nos a considerar que os governos em Portugal não foram capazes de fazer da educação o grande instrumento de desenvolvimento a nível social, político e económico:

28.1 - Não se investiu nem o necessário, nem eficientemente no sector.

28.2 - As verbas disponíveis não foram aplicadas de forma equitativa, nem suportadas numa visão esclarecida e socialmente consensualizada sobre objectivos a atingir, sobre mudanças a realizar, sobre prioridades a considerar.

28.3 - Não fomos capazes de nos adaptar à nova procura escolar, aos desafios do mercado de trabalho, às mudanças que atravessam a sociedade portuguesa e internacional.

28.4 - Não fomos capazes de manter uma direcção firme baseada numa política educativa nacionalmente aceite por ser capaz de responder aos anseios mais profundos da sociedade portuguesa.

28.5 - Não fomos capazes de criar e desenvolver um sistema com a qualidade necessária para ser um instrumento de promoção social e humana.

29 - Que fazer então para criar uma nova escola em Portugal, capaz de ultrapassar a má escola que temos? Só o conseguiremos se formos capazes de criar, na consciência da sociedade portuguesa, a ideia de que a educação é a grande prioridade nacional. Isto quer dizer que o problema é fundamentalmente um problema político com implicações de vária natureza.

É necessário que a opinião pública nacional se ponha de acordo quanto ao rumo a seguir e exija que se siga esse rumo.

30 -A sociedade portuguesa deve reconhecer que a educação é coisa pública e deve ser como tal assumida. Porque é um bem público, comunitário, compete ao Estado assumir a responsabilidade pela orientação e sustentação do sistema educativo. Por isso uma das prioridades do Estado deve ser o de garantir a existência de um sistema de educação público, gratuito, e de alta qualidade. A escola privada é apenas um subsistema alternativo à disposição dos cidadãos que a ele queiram recorrer por motivações várias e do seu foro intimo.

31 A escola pública não é a escola do Estado, é a escola que sendo regulada pelo governo se insere cada vez mais na comunidade de que faz parte. A escola pública não se compadece com a sua entrega a grupos que, sob diversas capas, não são mais do que grupos de interesse privados.

32 - Não precisamos apenas de mais escola, precisamos de melhor escola.

Ter apenas a porta das escolas abertas não chega. É alienante porque dá aos alunos e às famílias a falsa impressão de ascensão social. Precisamos de escolas onde se ensine e se aprenda. Escolas que sejam geradoras do espírito crítico em todos os que se relacionam com ela, alunos professores, funcionários, pais...

33 - Precisamos de um sistema educativo flexível, capaz de se adaptar às mudanças rápidas que caracterizam as sociedades avançadas. Precisamos de um sistema inteligente, que aprenda com os seus erros e acertos, assim como com os erros e acertos dos outros.

O redesenho do sistema, a discussão sobre o rendimento, sobre a qualidade dos resultados e sobre a adequação às necessidades sociais e do sector produtivo, têm de constituir um motivo essencial de diálogo permanente entre as forças políticas, os agentes sociais, os sindicatos, a escola, de modo a orientar e actualizar o nosso sistema educativo e fazer dele uma verdadeira ferramenta de progresso social e económico.

34 - A invocação de condições adversas, conjunturais, sejam as más heranças, ou os desígnios da convergência nominal ou da moeda única, não podem justificar a existência de uma má escola.

Já o dissemos, a nova escola tem de ser a prioridade das prioridades e diz-nos respeito a todos.

Diz respeito aos professores que têm o dever e a obrigação de lutar por salários e condições de trabalho mais justos, por uma maior autonomia no exercício da sua profissão, por mais direitos de intervenção na definição das políticas educativas, por maiores direitos de organização no local onde exercem a sua actividade profissional, pelo direito a propor e escolher projectos educativos que melhor sirvam a comunidade em que estão inseridos, por escolherem ou produzirem materiais de natureza pedagógica mais conformes às novas exigências pedagógicas...

Diz respeito aos alunos que são os mais prejudicados com a má escola que temos. Os jovens têm o direito e a obrigação de exigir uma melhor escola. A escola permissiva, facilitadora, fabricante de diplomas, é uma fraude que os estudantes sentirão como tal no seu futuro.

Diz respeito aos pais que têm a obrigação de exigir as condições para que a escola que os seus filhos frequentam sejam capaz de responder às necessidades de formação dos seus filhos e seja capaz de lhes proporcionar um conjunto de aprendizagens estruturantes fundamentais para enfrentarem a vida com confiança.

Diz respeito aos governantes que têm a obrigação de dotar as escolas das orientações e dos meios necessários ao seu desenvolvimento sustentado.

Diz respeito aos especialistas em Ciências da Educação que têm o direito e o dever de tornar mais claro o que para cada um dos cidadãos é obscuro.

Junho/97
José Paulo Serralheiro


  
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Autoria:

José Paulo Serralheiro
Professor e Jornalista. Director do Jornal a Página da Educação.
José Paulo Serralheiro
Professor e Jornalista. Director do Jornal a Página da Educação.

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