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"Oxalá fosse verdade!"

Nós, os leitores dos jornais portugueses (sobretudo o Público no nosso caso), fomos dramaticamente informados durante a última semana de que"(...) os Morlocks aterradores vague(iam) pelas cidades" e que "(u)ma geração inteira foi liquidada por modas pedagógicas que, ainda por cima, se reclamam da esquerda" (Maria Filomena Mónica (FM) no Independente de 14 de Fevereiro), de que "(...) a deriva niilista (...) invadiu as escolas, a televisão e a cultura de massas" (João Carlos Espada (JCE) no Público de 17 de Fevereiro) e que "(a)s sociedades ocidentais (...) estão a chocar gerações de analfabetos. De bárbaros" (Torcato Sepúlveda no Público de 17 de Fevereiro). Caramba! Ainda estamos a tentar recuperar do choque! E ainda por cima, o reputado José Manuel Fernandes veio informar-nos (também no Público, no dia 16 de Fevereiro) de que "de todos os documentos produzidos recentemente sobre o estado da educação em Portugal, um dos mais impressionantes é, seguramente (sic), o que FM escreveu para o Caderno Vida, de O Independente " (de onde extraímos a referência sobre os "Morlocks aterradores").

Deduzimos que a palavra-chave deve ser impressionante, porque, de facto, após termos lido cuidadosamente o artigo de FM, também ficámos bastante impressionados! Não talvez tão impressionados como JCE que concluiu após a sua leitura (ver artigo acima citado): "(o) artigo de FM aponta com invulgar precisão alguns dos males que corroem o nosso sistema educativo. Em minha opinião, todavia, esses males estão a corroer mais do que o sistema educativo: eles ameaçam a nossa cultura cívica, as nossas maneiras, os padrões e as referências que servem de alicerce à civilização liberal". O mesmo autor, em seu socorro, vai buscar o seu mentor de sempre, Karl Popper, que já nos tinha avisado sobre os efeitos desastrosos desses males para as nossas sociedades liberais.

Quais são esses males identificados, "com invulgar precisão", por FM? São: "a ideia de que é possível aprender sem esforço, a subalternização do professor e a demonização da avaliação", todos eles responsáveis pela degradação" (d)as escolas para além do tolerável" (ver artigo de FM). E qual é a origem dos males identificados? Segundo FM são: "A cultura dominante (...) inculcada nos cursos de Ciências de Educação. Trata-se, em resumo, de uma mistura entre o legado de Rousseau e algumas ideias, mal digeridas, da Sociologia da Educação, com ênfase para as que contestam a autoridade do professor, a validade dos conteúdos curriculares e o clima vivido nas salas de aula". Em resumo "modas pedagógicas de esquerda" importadas pelo PSD e "aplicadas" pelos "(g)overnos de sinal oposto". Finalmente, como resultado destes males, "(a) escola é já um recreio gigantesco, onde tudo tende para o lúdico, para a pluridisciplinaridade", onde "(o) que tem faltado é exactamente uma transmissão eficaz do saber" e onde a selecção é desencorajada"; "(q)uem manda é, por conseguinte, o aluno (...)"; "(...) todo o sistema está montado para que os alunos não sejam avaliados".

Como docentes e investigadores de Ciências da Educação (sobretudo no domínio de Sociologia da Educação), pretendemos contestar sucintamente a análise e as conclusões de FM da seguinte maneira: 1) desafiando o pressuposto subjacente à sua análise de que, em Portugal, "o nível desce", 2) criticando o seu ponto de partido teórico que é reducionista devido ao facto dele se basear numa teoria de reprodução primária que efectivamente nega a acção do professor e que expulsa qualquer possibilidade de mudança para o exterior do sistema educativo, 3) sugerindo que o retrógrado elitismo tradiconal das Universidades portuguesas e a herança do Salazarismo são subestimados na sua análise, e 4) enfatizando que, do nosso ponto de vista, as Ciências da Educação têm tido, infelizmente, pouco impacto (ainda) sobre o sistema de ensino. É este último ponto que gera o título que escolhemos para este artigo, designadamente, "Oxalá fosse verdade!".

1. O "nível" desce?

Diz o povo que "voz do povo, voz de Deus" ou, de outra forma, não há como o senso comum para se escorarem evidências, mesmo as das mais notáveis análises. Baudelot e Establet, precisamente num livro intitulado O Nível Educativo Sobe: Refutação de uma Ideia Velha Relativa à Pretensa Decadência das Nossas Escolas (1994) referindo-se às "carpideiras" que em França, nos anos oitenta, diagnosticavam e simultaneamente clamavam contra a desgraça civilizacional da descida do nível escolar, diziam que "o discurso relativo à descida do nível não obteria o êxito que possui se não estivesse fortalecido pela experiência quotidiana de fenómenos reais" (1994: 28). O que nos parece é que a "indignação" de F.M. face à crescente ineficácia do sistema educativo português é anterior à sua "análise", isto é, uma evidência fundada em evidências a priori acerca da descida do nível, enquanto ideia mais bem distribuída acerca desse mesmo sistema. É que, como pretendem mostrar os autores referidos em relação ao caso francês, quando situadas dum ponto de vista histórico "as afirmações sobre o "nível" formuladas por pessoas autorizadas (...), há motivo para fazer estremecer os mais insensíveis sobre o grau abismal de nulidade atingido pelos jovens de hoje, após 168 anos de descida ininterrupta." (ibid.: 16).

Num outro trabalho, Roger Establet (1993) chama a atenção para a necessidade de se trabalhar epistemologicamente a noção de "nível", dado tratar-se de uma "pré-noção", sendo esse um trabalho de confronto, de questionamento das noções correntes na vida social. Não deixa de ser, de algum modo, também notável a ausência desta suspeita epistemológica na "análise notável" da decadência do sistema educativo português, nomeadamente o secundário, por parte da investigadora F.M.

Todavia, será porventura pela crítica da noção de nível que alguns aspectos, mesmo aqueles mais catastróficos descritos por F.M. poderão ser, digamos, desvelados. Perante os mesmos "factos" preferimos a análise à indignação. E já agora, e porque os textos aqui envolvidos remetem para esse lugar político: a "indignação" é de esquerda ou de direita?

Pensamos, assim, que não são teoricamente assumidas nestas descrições da descida de nível, nem perspectivadas, as consequências da massificação do ensino secundário, os problemas políticos, organizacionais e pedagógicos que daí derivaram. A questão do "nível" tem uma espessura sociológica que cremos não ter sido bem digerida, por parte de quem tanta responsabilidade põe numa correcta digestão das disciplinas.

Se é verdade que a dificuldade de medir o nível toma questionável a utilização do conceito, a mera comparação de exames dos anos 60 com os de 96 deixa de fora e por responder questões como: os desempenhos visados são exactamente os mesmos? Se a escola é penetrada, como pensamos ser, pela forma como o saber se constrói, como circula e como se comunica, constituindo as constelações epistemológicas e paradigmáticas hierarquias que podem não ser sequer comparáveis, como comparar "níveis" de desempenho entre tempos e contextos epistemológicos, políticos e sociais diferentes?

A fraglidade epistemológica do conceito - dado que o ponto escolhido para a abordagem acaba por "criar" o objecto a abordar - e a sua discutível capacidade de medir seja o que for, remete-nos para outro lugar da argumentação de FM: porque é que esta problematicidade não foi sublinhada? Tanto mais quanto, como diz JCE, FM é "uma mulher de esquerda". O "nível" desceu, efectivamente, onde porventura "subiu" mais, isto é, no secundário. Há, de facto, estratos da população que agora tem acesso ao secundário e são precisamente esses que engrossam os números estatísticos relativos ao insucesso e ao abandono do sistema.

Antes da "indignação", a análise deve reportar-se às questões políticas, organizacionais, profissionais e pedagógicas como problemas relevados pela democratização do ensino, ou será esta última que verdadeiramente está em causa, tendo, então, a discussão de ser também outra. E já agora ; a "análise" é um processo de esquerda ou de direita?

2. Inovação pedagógica e a escola para todos

No fundo, FM acredita pouco quer na avaliação contínua quer na avaliação formativa. E parece acreditar ainda menos numa escola oficial que promova o sucesso de todos os alunos. Aliás, esta última é sinónimo de uma escola onde se defende "a ideia de que é possível aprender sem esforço". Só um regime de selecção eficaz, através de exames bem feitos, pode garantir esforço individual efectivo e a consequente qualidade do sistema. Que reducionismo! Que ideias, mal digeridas, das teorias das Ciências da Educação! De facto, FM vê qualquer afastamento das tarefas de transmissão e avaliação sumativa do saber como sintomas da degradação da escola. Pensar, e agir, de outra maneira implica, segundo a sua análise, desarmar-se perante as forças de reprodução. Esta posição constitui, de facto, a derrota antecipada da democratização da escola, processo aliás confundido, por Torcato Sepúlveda, com a "massificação do ensino". Promover o desenvolvimento da "escola de massas", isto é, da "escola para todos", significa quebrar com a instrumentalidade da escola elitista. Isto só se pode fazer garantindo simultaneamente a excelência académica e a inovação (obrigado Ana Benavente) pedagógica.

3. Os exames e a herança salazarista

FM refere uma só vez os efeitos perniciosos do regime salazarista sobre o sistema educativo. Falando dos problemas graves do Ensino Secundário, reconhece que "(u)m deles é a percentagem de alunos cujos pais são analfabetos, um legado, é bom recordar, do salazarismo". Temos pena que em vez de enquadrar melhor como os efeitos do salazarismo sobre o sistema educativo condicionaram o desenvolvimento desse mesmo sistema, Filomena Mónica saltasse logo para dois exemplos caricatos dos anos 70 e para um outro (a decisão do Ministério da Educação de introduzir os "currículos alternativos") muito sério (e bem criticado por FM). Na verdade, o regime salazarista condicionou fortemente a atitude da esquerda, durante os anos 60 e 70, no que diz respeito aos exames. A "demonização" dos exames resultou, em grande parte, das regras impostas por uma academia ancilosada e elitista. Sentimos ainda hoje, sobretudo nas universidades clássicas, os efeitos negativos dessa academia. Não é exagero dizer que esta academia desprezava tanto a pedagogia como o próprio povo. Reabilitar o exame como forma de avaliação tem sido um processo longo e árduo, que somente agora começa a produzir resultados positivos.

4. Oxalá fosse verdade...

"A cultura dominante é a inculcada nos cursos de Ciências da Educação" (FM, p.19). Como é que uma cultura é inculcada? Como é que se torna dominante? Giddens fala da reflexividade intrínseca como característica das sociedades modernas, quer dizer, a reflexividade é algo que se introduz "na própria base da reprodução do sistema, de tal modo que o pensamento e a acção são constantemente refractadas um sobre o outro" (Giddens, 1992: 29). Assim, poderíamos ser levados a pensar, os saberes veiculados pelas Ciências da Educação, "nas escolas de Ciências da Educação" teriam de tal forma impregnado o sistema educativo que a mais ninguém poderia ser assacada a "culpa" pela descida de nível.

Ora, pensamos o contrário, pensamos que, de facto, as principais propostas pedagógicas, organizacionais, institucionais e políticas porventura derivadas das Ciências da Educação ainda não penetraram suficientemente no sistema, tendo-se, o mais das vezes, ficado pelo papel de recursos retóricos ao dispor de políticos, decisores e até de bem intencionados reformadores pedagógicos. É de perguntar, pois, quais são as "escolas de Ciências da Educação" a que FM se refere, aquelas divulgadoras de "modas pedagógicas" pelas quais uma "geração inteira foi liquidada", ao propalarem aquela "cultura dominante". Aos ex-Magistérios? Às E.S.E's? Às mais recentes Faculdades de Psicologia e Ciências da Educação? A todas estas? É necessário ser-se preciso, porque, nisso concordamos com FM, 2+2 não são 5.

Uma cultura torna-se dominante quando se traduz em habitus, quando é interiorizada e perpetuada no comportamento dos indivíduos. O que a nossa experiência nos mostra, enquanto investigadores e docentes em Ciências da Educação, é que as mais das escolas portuguesas e das práticas pedagógicas aí veiculadas, permanecem como que impermeáveis àquilo que a investigação e a reflexão levadas a cabo neste âmbito disciplinar produzem e veiculam. Poderá esta afirmação ser injusta para o grupo de "militantes pedagógicos", mas, e à míngua de acervo empírico de que nos socorramos, verdadeira em relação ao sistema no seu todo.

Por outro lado, as Ciências da Educação não são um bloco tão unificado que possam, sem perdas, todas as suas vertentes disciplinares e interventivas ser arrumadas sob essa designação. Não estão situados ao mesmo nível filosófico e epistemológico a pedagogia negativa veiculada por Rosseau e, por exemplo, a não directividade rogeriana. Para não mencionar já a convivência sob essa etiqueta - mais organizacional do que epistemológica - de perspectivas mais psicologizantes com perspectivas mais sociologizantes que está longe de ser epistemológica e pedagogicamente pacífica.

No artigo de FM há passagens em que pensamos que também ela está de acordo connosco, quando dizemos que oxalá fosse verdade que as Ciências da Educação fossem a cultura dominante do sistema educativo, e não só a sua retórica legitimadora. Por exemplo, quando diz "tudo seria menos trágico, se os alunos pudessem dispor de bibliotecas, onde, desde que dominassem uma língua estrangeira, pudessem consultar outros livros" (p.18). Exactamente, pensamos isso, pensamos que o professor já não é "o" recurso da escola, mas um entre muitos outros, pensamos que o saber quando é activamente procurado é muito mais consolidado e fácil de adquirir... É, é o que dizem as Ciências da Educação. É, oxalá fosse verdade...

Preferimos terminar assim, para na nossa argumentação evitarmos cair na tentação, elegante talvez, mas essencialmente retórica, de citar L. Carrol ("A Duquesa pôs-se a atirar o bebé violentamente ao ar e o pobrezinho berrava de tal maneira que Alice mal conseguia distinguir as palavras: "Com o meu filho sou severa/ Se espirrar vou-lhe bater;/Que ele a pimenta venera,/ Aspirando-a com prazer."). Mas não, terminaremos mesmo assim, como dissemos: oxalá fosse verdade...

 

Stephen R. Stoer e António M. Magalhãesdocentes e investigadores de Ciências da Educação

Baudelot, C. e Establet (1994) - O nível Educativo Sobe. Porto: Porto Editora
Establet (1993) - "Le Niveau Monte", in École: le Niveau en Débat, Critique Régionale 18, 1-14.
Giddens, A. (1992) - As Consequência da Modernidade. Oeiras: Celta Editores


  
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Autoria:

António M. Magalhães
Univ. do Porto
Stephen R. Stoer
Fac. de Psicologia e Ciências da Educação, Univ. do Porto
António M. Magalhães
Univ. do Porto
Stephen R. Stoer
Fac. de Psicologia e Ciências da Educação, Univ. do Porto

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