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Manifesto a Favor da Refundação do Sistema Educativo

"Uma ideia não pode ser responsável pelo
número de pessoas que a ela aderem"

REFUNDAR O SISTEMA EDUCATIVO, RASGAR NOVOS CAMINHOS
PROFISSIONAIS, CRIAR NOVAS PRÁTICAS SINDICAIS.

RESOLVEREMOS A CRISE DA PROFISSÃO QUANDO
SOUBERMOS REINVENTAR UM NOVO SISTEMA EDUCATIVO

Nos últimos 30 anos os sistemas educativos mostraram-se desadequados à nova procura social. Experimentaram-se as reformas globais pensadas a partir do início dos anos 70. As sucessivas reformas, tiveram como resultado mais visível, uma degradação da qualidade do ensino, um aumento da crítica e do descontentamento social e do mal estar docente.
A falência destas reformas é hoje inquestionável. Os professores foram os mais penalizados por elas.
Mais do que reformar defendemos a necessidade de refundar os sistemas educativos abrindo novos caminhos à função e ao movimento sindical docente.
Tudo passa pela autonomia das escolas e do exercício da profissão, por sermos capazes de encontrar um novo valor de uso para a educação, por construir colectivamente novos caminhos para a profissão docente.
É este o grande desafio que se coloca à actual geração de professores.

1 - As sociedades humanas encontraram sempre formas de garantir a passagem do conhecimento às novas gerações. Desde sempre se organizaram, de muitas maneiras, para garantir três objectivos fundamentais:

- permitir aos novos uma formação que lhes permitisse a produção e a subsistência material pessoal e da sociedade;

- permitir aos novos a aquisição do conhecimento da cultura da sua comunidade, garantindo-lhes assim a noção de pertença a uma comunidade ou meio social determinado;

- dar aos novos a possibilidade de conhecerem o mais possível o património cultural mundial, para que cada um se sinta também cidadão do mundo, parte do universo social em que foi engendrado.

2 -Os professores de hoje, foram educados, formados e trabalham de acordo com a lógica do sistema educativo criado no séc. XIX. Tal sistema organizou-se com base em várias crenças: o nacionalismo, o progresso linear, o optimismo escolar, uma certa forma de organizar o espaço e o tempo escolar, certas formas de educação, as crianças e os jovens "mais capazes" como destinatários deste esforço educativo.

3 - Este sistema deu origem a rituais escolares de que dificilmente os professores se libertam.

A entrada na sala de aula, um certo modo de organizar o espaço da sala, o livro de ponto, a marcação de faltas, a secretária do professor, as carteiras dos alunos, o quadro preto, o pau de giz, o manual escolar. Condicionantes de rituais que professores e alunos celebram dia a dia.

4 - No nosso século, a partir da II Guerra Mundial, as teorias desenvolvimentistas reforçaram o optimismo escolar. Pensou-se que era possível educar e ensinar todos e cada um do mesmo modo que antes se ensinava e educava uma elite de estudantes.

Este optimismo depositou grandes esperanças nos sistemas de ensino e nos professores.

5 - Em pouco mais de vinte anos, perante o insucesso escolar crescente e a baixa de qualidade do ensino, passou-se de um optimismo exacerbado à descrença e à crise generalizada dos sistemas educativos. A sociedade passou a olhar o sistema e os professores com grande desconfiança.

6 - Os governos, particularmente nos países mais industrializados, confrontados com este descontentamento social, ensaiaram nos últimos 25 anos sucessivas reformas globais do sistemas de ensino.

7 -Estas reformas "tecnocráticas", para além de baixarem a qualidade do ensino, reflectiram-se na forma de exercer a profissão e estão na base do que já é conhecido por "mal estar docente".

8 - Estas reformas tiveram como principal objectivo desresponsabilizar os governos pelo insucesso do sistema. O discurso político é simples: se o sistema, uma vez reformado pelos cérebros da coisa educativa, não funciona a culpa é dos professores que não sabem dar-lhe forma.

Este processo político tem permitido aos governos adiar a solução do problema e rentabilizar politicamente os professores.

9 - Analisando as diferentes tentativas de reforma e os seus resultados somos levados a concluir que os velhos sistemas educativos onde fomos educados e onde trabalhamos são irreformáveis.

Estas reformas nada mais podem do que degradar ainda mais a qualidade da educação e do ensino.

1O - A questão do ensino público e privado é uma falsa questão. É preciso ir mais longe. É necessário encontrar uma outra lógica de enfrentamento dos actuais problemas educativos e da actual crise da profissão docente. É essa reflexão/acção que propomos.

11 - Mais do que reformar é necessário ensaiar um corte epistemológico com o sistema e refundar os sistemas educativos tendo em conta as actuais aspirações e necessidades económicas, sociais e culturais do conjunto da actual sociedade sem esquecer os novos paradigmas científicos e tecnológicos que caracterizam a sociedade e o tempo em que vivemos.

Trata-se, ao fim e ao cabo, de criar para o nosso tempo e à nossa medida, o que outros criaram para o seu tempo, à sua medida.

12 - Para nós a reforma não é uma questão de mais ou menos meios, de maior ou menor investimento. Não somos a favor da reforma do sistema educativo. Somos contra a reforma.

Não somos a favor do sistema. Não somos a favor da reforma do sistema. Somos contra o sistema. Queremos outro sistema.

Somos a favor da refundação ou da recriação do sistema educativo.

Não somos professores e sindicalistas engajados no sistema. Somos professores e sindicalistas a favor da modificação radical do sistema existente.

Não somos reformadores. Afirmamo-nos como refundadores dos sitemas educativos.

13 -Não ignoramos que a refundação do sistema educativo pressupõe a refundação de outros sistemas sociais e da organização do Estado.

Não perdemos de vista que a modificação do sistema educativo é inseparável da modificação mais geral do sistema social e político da sociedade. Por isso defendemos que a luta pela refundação do sistema educativo é inseparável da luta mais geral pela transformação da sociedade em que vivemos.

14 - Somos contra a sociedade do espectáculo. Contra a sociedade onde só existe o que é mediatizado pela comunicação social.

Somos contra a sociedade que reserva apenas a alguns o direito de escrever o guião, as personagens e onde homens e mulheres são convidados a desempenhar personagens criados por outros.

Somos a favor da participação. Somos a favor de uma sociedade em que cada um possa voltar a decidir o que quer fazer, como fazer, porque fazer e para que fazer.

15 - A refundação de um novo sistema educativo acarreta a criação de novas formas e maneiras de ser professor. Implica a criação e aceitação de novos objectivos para os sistemas educativos. É esta nova forma de ser professor e de responder a necessidades sociais gritantes que nos podem devolver e aumentar o prestígio social agora perdido.

16 - A revalorização do estatuto profissional e social dos professores não se faz aos gritos. Torna-se possível quando os professores tiverem um papel central no sistema educativo, quando pela sua acção e competência profissional mostrarem uma rentabilidade social reconhecida pelo conjunto da sociedade. Em suma, quando o trabalho dos professores for reconhecido pelo conjunto da sociedade como socialmente relevante.

17 - A elevação do estatuto social dos professores é inseparável do reconhecimento social do seu saber, da sua cultura e da qualidade do seu trabalho. Esta é inseparável da autonomia das escolas, da autonomia do exercício da profissão, da qualificação científica e cultural dos professores e das condições de exercício desta actividade profissional.

18 - Por isso o exercício da profissão de professor não é separável da função cívica e política. Os professores, se quiserem defender a qualidade do seu trabalho e o seu estatuto social, estão condenados a bater-se pela defesa política das condições do exercício da sua actividade profissional. Estão condenados a ser professores/educadores, cidadãos e por isso políticos — condenados a ser intelectuais.

19 - O grande desafio que se coloca aos governos, à sociedade e aos professores, é o de descobrir, compreender e determinar um novo valor de uso para o acto educativo retirando todas as consequências de tal determinação.

20 - Defendemos que, ao contrário das reformas construidas técnica e juridicamente nos centros de poder e aplicadas administrativamente nas escolas, as mudanças a promover devem ser desenvolvidas como um processo gradual que tenha como centro a escola e a comunidade e como principais protagonistas os professores/educadores.

21 - Reclamamos uma completa autonomia das escolas e do exercício da profissão docente. Reclamamos que cada escola se constitua como unidade autónoma, integrada no seu meio, capaz de construir a sua cultura de escola e de se responsabilizar perante e com a comunidade pela condução dos processos determinantes que permitam responder às necessidades de formação do conjunto da sociedade e não apenas dos jovens "em idade escolar".

I - DA CRISE DA ESCOLA À REFUNDAÇÃO DO SISTEMA EDUCATIVO

22 - Entre o final da II Guerra Mundial e o desencadear da crise petrolífera no início dos anos 7O, o crescimento económico contínuo, deu origem às chamadas teorias desenvolvimentistas e a um optimismo e desejo de mudança que ficou marcado na pintura, na música, no cinema e na consciência de alguns de nós.

Este período desenvolveu teorias tendo como núcleo a ideia de "sociedade da abundância" ou "da era industrial", enquanto outros, numa perspectiva crítica, afirmavam termos mergulhado verdadeiramente na "sociedade do espectáculo".

23 - A ideologia dominante, neste período, reforçou a ideia de um crescimento e desenvolvimento ininterrupto.

Na economia o capitalismo foi erigido em modelo final do desenvolvimento das sociedades.

Na política, a democracia representativa, aparecia como modelo acabado capaz de promover a justiça, a liberdade e a igualdade social. O optimismo dominante considerava a humanidade "condenada" a desenvolver-se. Tudo passava por um maior ou menor grau de investimento. Uma maior ou menor consideração dos direitos individuais dos cidadãos.

24 - O constante desenvolvimento da ciência, da tecnologia, dos serviços e do mercado de trabalho, faziam prever uma contínua necessidade de mão-de-obra qualificada.

Neste contexto o sistema escolar foi erigido em "vaca sagrada" (Illitch) do desenvolvimento económico e social. A oferta e resposta escolar aparecia como um elemento fundamental de todas as políticas desenvolvimentistas.

O investimento na educação e no ensino era considerado decisivo, quase único, para o desenvolvimento económico, social e cultural e para a igualização de oportunidades.

25 - A escola era vista como elemento fundamental, quase único, da mobilidade social ascendente. Esta convicção generalizada do conjunto da sociedade provocou o que hoje designamos por "corrida á escola" ou "explosão escolar".

26 - Nos anos 6O, a generalidade dos países industrializados adoptaram políticas de ensino que apontavam para uma escolarização global da sua população a um nível elevado. Esta política provocou um aumento drástico do número de alunos e de professores.

Neste período as despesas com a educação aumentaram anualmente e em média 14% mostrando uma forte aposta dos governos nesta política.

Portugal seguiu esta política com vinte a vinte e cinco anos de atraso.

II - DA FORMAÇÃO INICIAL À FORMAÇÃO CONTÍNUA

27 - Ainda no inicio da década de 60, a aceleração dos avanços científicos e tecnológicos, a par do desenvolvimento de novos sistemas e formas de organização e gestão, criaram novas necessidades de formação.

Basicamente o sistema escolar continuava a apostar na transmissão de conhecimentos estruturados e no método de problemas. Para além de fornecer informação queria-se que os alunos soubessem identificar problemas/tipo e soluções/tipo. Este método levava a que os técnicos saídos da escola rapidamente se mostrassem incapazes de reconhecer novos problemas e de absorver os novos conhecimentos produzidos. Mostravam-se desactualizados ao sair das escolas.

28 - Esta situação deu origem aos processos de reciclagem (a ideia de que os técnicos — e logo depois, genericamente, os trabalhadores — precisavam de receber periodicamente uma actualização de conhecimentos).

Num primeiro momento não se discutiram as didácticas, objectivos e conteúdos de ensino, mas a forma de organizar temporalmente os processos de reciclagem.

Em pouco anos abandonou-se a noção de reciclagem, passou-se às noções de formação permanente ou contínua e iniciou-se a desconfiança face ao sistema escolar e à sua capacidade de responder às novas necessidades sociais.

A concepção de formação contínua, tal como é ainda hoje entendida, foi um primeiro remendo tentando ocultar a desadequação do sistema escolar à sociedade.

III - REFORMAS E DESADEQUAÇÃO DO SISTEMA EDUCATIVO VIGENTE

29 - Mostrámos já as razões que levaram as populações a interessar-se pela frequência da escola por parte dos seus filhos, dando origem à "corrida à escola" e à "explosão escolar".

Os ideólogos do sistema e os governos favoreceram esta política com base na "teoria do capital humano" e no "princípio da igualdade de oportunidades".

30 - Numa visão tecnocratica da sociedade a "teoria do capital humano" entendia o investimento nas pessoas como um investimento altamente rentável para a sociedade. A um maior grau de escolarização das pessoas havia de corresponder inevitavelmente um maior crescimento e desenvolvimento económico.

Tratava-se de colocar cérebros e pessoas ao serviço da economia e da classe que dominava o sector produtivo da sociedade.

Alguns viram na escola deste tempo um meio de igualização social. Outros retrataram-na como fábrica de robots ao serviço da classe dominante.

31 - À escola dos anos 6O e 7O foi também cometida a responsabilidade de resolver dois outros problemas sociais: a desigualdade e a injustiça social.

Considerou-se que cabia à escola promover a igualdade de oportunidades e por tal processo promover uma maior justiça social.

Estes princípios continuam presentes em muitos dos programas educativos e sociais da actualidade, mesmo quando a experiência prática mostra o seu insucesso. (veja-se os programas de combate à pobreza, droga, marginalização e exclusão social, etc.)

32 - Estas políticas têm ajudado a desviar os cidadãos da análise crítica do sistema económico, do modo como se organiza e funciona o mercado, das questões do mercado de trabalho e de emprego, dos direitos políticos de participação dos cidadãos, das questões da organização do Estado, etc.

Estas políticas, a nível dos Estados e a Nível das Organizações Internacionais — lembre-se o modo como funcionam as organizações internacionais dependentes da ONU e os seus programas, sem descurar a natureza de classe da sua clientela política e técnica —, foram também importantes para engajar no sistema estabelecido um vasto sector dos intelectuais e para responder a necessidades de emprego de um vasto número de técnicos da pequena e média burguesia.

O movimento sindical, não ficou imune a estas tentações. Pelo contrário, algumas das suas reivindicações e práticas actuais estão marcadas pela ideologia desenvolvimentista característica do pensamento da burguesia dominante nos anos 60 e 7O.

33 - As teorias desenvolvimentistas mostram-nos um modelo de desenvolvimento baseado na exploração massiva e destrutiva dos recursos naturais e humanos.

34 - A par do fascínio pela produção e consumo crescente e da normalização internacional das formas e modos de produção e de consumo de bens materiais, assistimos à tentativa de massificação das formas de pensar, de agir, de produzir, de consumir, de fazer amor, de viver das pessoas.

O espectáculo social é cada vez mais igual nas "sociedades desenvolvidas".

35 - Nada parecia poder escapar à máquina internacional de produção e consumo. Nada parecia poder escapar aos que económica e ideologicamente controlavam tal máquina.

Os povos "condenados" a "enriquecer" estavam "condenados" a trabalhar, produzir e consumir cada vez mais.

36 - A crise económica despoletada pela crise petrolífera do inicio dos anos 70 deu inicio a críticas e a reservas quanto a este modelo de desenvolvimento. Reduziu o optimismo escolar vigente. Fez voltar antigas interrogações. Colocou na ordem do dia a consideração de novos valores, como os do ambiente e da sua preservação, as reservas e recursos naturais, a qualidade e o modo de vida das pessoas individual e colectivamente consideradas. Abriu-se a porta para a consideração das questões ecológicas.

37 - No que respeita à educação reconhecia-se que os sistemas escolares se tinham mostrado incapazes de responder e de se adaptar às necessidades constantemente renovadas do mercado de trabalho. Incapazes de acompanhar o desenvolvimento científico e tecnológico mostravam-se cada vez mais incapazes de responder a necessidades do sector económico.

Por não servirem a economia estavam votados à desconfiança.

38 - Uma taxa crescente do insucesso escolar e uma crescente baixa da qualidade do ensino mostravam que o sistema mais do que contribuir para a igualização social e de oportunidades se revelava como produtor e certificador oficial de tais desigualdades.

39 - O optimismo escolar reinante na década de 60 foi, a partir da década de 7O, substituído gradualmente pelo "pessimismo escolar".

40 - Perante o descontentamento e o desencanto do conjunto da sociedade e as evidentes dificuldades do sistema os governos iniciaram um processo de desresponsabilização política.

Os governos empregaram um número cada vez mais numeroso de técnicos e "especialistas" da educação e ensino com a finalidade de conceber e aplicar a reforma do sistema.

Tais reformas, sustentadas pelo pensamento tecnocrático desenvolvido no final dos anos 60 e inicio dos anos 7O, pensadas, concebidas e aplicadas a partir dos centros de poder, nada mais conseguiram do que dar mais do mesmo, provocando uma baixa crescente da qualidade do ensino e responsabilizando os professores pelo insucesso do sistema.

41 - Ao aumento do peso do aparelho burocrático e da despesa com o ensino, tem vindo a corresponder um aumento da frustração social face ao produto gerado pelos sistemas educativos.

O desencanto é generalizado e atravessa todas as classes e grupos de interesse.

Não basta mais do mesmo, o problema fundamental não é de mais ou menos investimento, o que é necessário é descobrir novos caminhos para os sistemas educativos.

42 - São muitos a apontar o dedo afirmando que a crise da escola é uma simples crise de crescimento.

No nosso entender a crise é sobretudo motivada pela incapacidade dos governos em gerirem a transição de uma escola de elites e fornecedora de mão-de-obra certificada, para uma escola de massas capaz de responder às novas solicitações do conjunto da sociedade.

43 - Até agora não houve ainda a capacidade de passar da escola de elites para a escola de massas. De descobrir como a escola de massas pode não ser massificante. De reconhecer e de dar resposta aos novos desafios que a sociedade põe em matéria de educação e ensino.

Não houve a capacidade de cortar com um modelo de educação e de ensino criado para um outro tempo, para outro modelo de desenvolvimento, para uma outra realidade económica, científica, tecnológica, social, política e cultural.

44 - Os responsáveis pelas propostas de reforma continuam a pensar que o problema é de rentabilidade, eficácia administrativa, rentabilidade e eficácia do trabalho dos professores, reforma curricular e modernização da escola.

Da nossa parte consideramos que se trata de encontrar novos fundamentos e objectivos para os sistemas educativos, reinventando o sistema de acordo com a nova realidade social.

45 - O actual modelo escolar tornou-se social e politicamente ilegítimo, não tem sentido, não é reformável, morreu.

46 - Reconhecendo o direito de acesso e de sucesso de todos — não apenas dos mais jovens — aos sistemas de ensino, sentimos a necessidade de olhar a sociedade de outra maneira. O olhar que presidiu à fundação do actual sistema já não serve.

Estamos agora obrigados a descobrir todas, e não apenas algumas, das necessidades de formação do conjunto da sociedade. Estamos obrigados a reconhecer que a educação e ensino podem ser organizadas de muitas maneiras. Estamos obrigados a organizar o sistema e as escolas ao ritmo das necessidades concretas de todos os cidadãos e não apenas dos mais jovens.

47 - Esta forma de encarar a crise leva-nos a considerar a necessidade de reequacionar as formas e as práticas de organização do ensino. Passa por romper com os pilares nos quais se fundamentam os actuais modelos escolares.

Passa pela consciência que todo o tempo é tempo de aprender.

Passa por criar um modelo que sirva toda a população independentemente da sua idade e da sua inserção no mercado de trabalho.

Passa pela organização de programas, de ofertas de ensino e de formas de organização do acto educativo que respeitem a individualidade e as necessidades concretas dos que procuram o sistema.

Passa por novas formas de conceber e de organizar os tempos e os espaços por onde passa e se adquire o saber.

Passa por revolucionar a organização do espaço escolar.

Passa por uma nova forma de ser professor/educador.

48 - O desafio que se nos coloca é o de descobrir, em conjunto, um novo valor de uso para a educação e o ensino.

IV - AO REFUNDAR A ESCOLA ABRIREMOS NOVOS CAMINHOS PROFISSIONAIS

49 - O desenvolvimento da "escola de massas" atingiu fortemente o exercício da profissão docente e a identidade profissional dos professores.

50 - Ao contrário do que poderia acontecer, dadas as novas exigências colocadas à escola e aos professores, estes têm vindo a assistir a uma degradação progressiva do seu estatuto social e profissional.

As concepções tecnocráticas de ensino, a escola vista como fábrica ou cadeia de produção, supõem hierarquizações que tendem a proletarizar a generalidade dos professores transformando- os em obedientes funcionários ou técnicos de ensino.

51 - Alguns chegam a defender que a crise da profissão e do ensino se supera pela estratificação dos professores em níveis salariais e de reconhecimento social de acordo com o seu grau académico ou das funções que exerçam no aparelho administrativo.

A prazo apostam num nível para Licenciados e equiparados, um outro para Mestrados e um terceiro para Doutorados. O exercício das funções de coordenação e de "chefia" seria distribuído de acordo com estes graus académicos.

52 - Pela nossa parte recusamos a escola/fábrica, recusamos a massificação, a hierarquização baseada em diplomas, entendemos que a crise pode ser superada se, entre outras coisas, tivermos a capacidade de regressar à tradição do "studium" ou seja, aos grupos de pares e discípulos dialogando em conjunto. É também essa a escola que pensamos ser necessário organizar.

53 - Reconhecemos que a "explosão escolar" e a "escola de massas" provocou profundas transformações no grupo dos professores. Foi necessário recorrer a medidas de recurso no recrutamento de docentes.

A mais professores correspondeu, no período da "explosão escolar", uma baixa das qualificações iniciais e profissionais de muitos docentes, uma menor exigência do nível cultural, um descontrole nas condições de acesso à profissão.

54 - Em Portugal, embora tenha terminado o período da "explosão escolar", assistimos a uma política deliberada de desvalorização da função docente.

55 - Incapazes de entender as verdadeiras razões que explicam a falência da reforma. Macaqueando as políticas experimentadas noutros países sem lhes entender o alcance e os limites. Incapazes de entender os novos desafios que se colocam à educação. O governo português vê os professores como amanuenses das escolas e dirige-os como 3ºs oficiais administrativos.

56 - Estes políticos e alguns sindicalistas e "especialistas" da educação, acreditam que a "escola de massas" precisa de capatazes e de funcionários docentes que ponham em prática os programas e as orientações vindas do centro de poder.

Não entendem que a educação é um acto criativo e de cumplicidade entre docentes e discentes. Não entendem que a educação pressupõe a responsabilização assumida dos professores e dos alunos. Não entendem a natureza de ser professor.

Esta política está condenada à falência e nada mais poderá conseguir do que ampliar a crise da escola portuguesa.

57 - Descrentes e incapazes de entender os novos desafios que são postos á educação, os políticos tem vindo a seguir políticas de desqualificação dos professores procurando transformar a escola numa velha fábrica de certificados e diplomas.

58 - Nesta conjuntura os professores sentem-se mal. São muitas as causas do "mal estar dos professores". Causas que não atingem a todos por igual.

Mais e constantemente alteradas solicitações aos professores. Responsabilização constante dos docentes pelo insucesso do sistema. Novos papéis dos professores. Sucessivas contradições e modificações das orientações produzidas pelos administradores do sistema. Baixa constante da remuneração e do poder de compra dos docentes. Sucessivo abaixamento das exigências de qualificação na formação inicial, profissional e contínua dos professores. Tentativas de hierarquização dos professores. Menor estatuto social. São algumas das razões que explicam o "mal estar docente".

59 - A retórica dos sucessivos "reformadores" continua a afirmar a importância dos docentes e das escolas no processo de reforma do sistema educativo.

A prática dos governantes da área educativa, solidários com os restantes governantes e outros "interessados" da coisa educativa, continuam fieis ao velho Estado Centralizado.

A retórica dos governantes afirma a necessidade da descentralização, enquanto a sua prática mantém a centralização, a regulamentação asfixiante, a burocracia centralista, pequenina, medíocre, carreirista e incompetente.

No mundo da educação em Portugal não mandam as pessoas. Mandam os decretos, os parágrafos, as alíneas, as circulares, os despachos, os ofícios e sobretudo os pequenos burocratas que os interpretam.

60 - A prática mostra que a reforma nada mais tem feito do que acentuar a crise geral do sistema educativo, a sua desadequação, a crise de identidade docente e o mal estar de professores, alunos e famílias.

61 - Afirmamos que as reformas educativas faliram. Não podem fazer mais do que acentuar a crise do sistema educativo.

62 - No nosso entender, a refundação da escola e a superação da crise de identidade profissional docente não são dissociáveis. Andam a par e com elas a autonomia da escola, a criação de novas culturas escolares, a descentralização do sistema educativo, a nova forma de exercer a profissão docente e a criação e desenvolvimento de novas práticas sindicais.

63 - Porque queremos superar a actual crise escolar só podemos conceber a escola como local de investigação/acção.

Defendemos que é nos estabelecimentos de ensino que se produzem os saberes e as práticas educativas essenciais. É a escola e a comunidade educativa quem deve legitimar o valor dos conhecimentos que produz tendo em conta as necessidades e as respostas dos destinatários da acção educativa.

É na escola que se controi e legitima a ética profissional docente. É na escola que se legitimam as práticas sindicais dos professores. É na escola que se constrói o saber específico dos professores.

64 - A refundação da ecola passa pela sua capacidade, em função do meio em que está inserida, de construir as respostas ajustadas ao conjunto da sociedade que serve. A escola que importa reinventar destina-se não só aos jovens mas ao conjunto da sociedade.

Nenhuma escola pode viver sem uma cultura e um projecto educativo próprios.

65 - Colocamos em debate a ideia de que a autonomia da escola, de cada escola, partindo do exercício concreto da actividade profissional dos professores, favorece o aparecimento de novos tipos de práticas profissionais e de novas propostas educativas, tornando-se assim fundamental à construção da profissão docente.

66 - O estabelecimento de ensino, por nós pensado como "colectivo de aprendizagem", enquanto organização educativa autónoma e não como organização administrativa que executa ordens uniformes, é uma organização de docentes e discentes que favorece a autonomia dos estudantes e da profissão docente.

67 - Definitivamente o que está em causa, o que importa debater, não é a remodelação ou a reforma do sistema educativo mas o modo de criar um novo sistema a partir das mudanças processadas em cada escola.

68 - Está em causa saber como promover a luta dos professores pela conquista da autonomia, dos espaços, da gestão da vida e do tempo escolar, dos meios e capacidades de serem autores da mudança nas suas escolas e na sociedade. Se o fizerem — se souberem descobrir um novo valor de uso para educação, ajustado ao tempo e às actuais necessidades sociais — redefinem o seu papel, refundam a escola, recolhem o apoio social, reinventam e prestigiam a profissão docente e abrem novos caminhos ao associativismo docente.

José Paulo Serralheiro


  
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Autoria:

José Paulo Serralheiro
Professor e Jornalista. Director do Jornal a Página da Educação.
José Paulo Serralheiro
Professor e Jornalista. Director do Jornal a Página da Educação.

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