Página  >  Edições  >  -  >  As Pessoas em Primeiro - só depois a produção

As Pessoas em Primeiro - só depois a produção

Para situar a educação e o ensino numa perspectiva de cidadania, no contexto político actual da globalização e da ideologia neoliberal que a sustenta, construída a partir de uma subjectividade colectiva de exclusão sem culpa, temos imensos desafios a serem enfrentados no plano ético-político, epistemológico, teórico e da praxis. Estes desafios tornam-se maiores em sociedades como a portuguesa cuja classe dirigente tem como projecto político-social, como única alternativa, a globalização com exclusão social, ainda que disfarçada pelo discurso retórico.

Para mim, um dos aspectos que me torna a vida mais amarga, neste fim de século, no campo da chamada esquerda, é a capitulação sucessiva de muitos intelectuais no plano ético e político. Aguentar-se de forma lúcida e sem transigências é um desafio crucial.

Educar, hoje, pressupõe que seja do senso comum que as relações capitalistas são incapazes, pela sua própria natureza, de corresponder minimamente ao conjunto de direitos fundamentais de todos os seres humanos, a começar pelo direito a uma vida de que a dignidade não esteja ausente, à saúde, à educação, à habitação, ao emprego, ao subsídio de desemprego, lazer, etc.

O modo como o capitalismo, na sua fase mais avançada de desenvolvimento científico e tecnológico - ou seja, de desenvolvimento das forças produtivas -, refaz as suas taxas de lucro através da exclusão dos direitos mínimos de dois terços da humanidade, mostra, de forma empírica, a sua natureza anti-social. Hoje, só não vê quem não quer: sob o capitalismo não há futuro para milhões de seres humanos.

É evidente que consideramos o avanço da ciência e da tecnologia como um dos maiores bens das sociedades humanas. O que está em causa nas nossas sociedades não é o industrialismo em si mesmo. Não defendemos o regresso às cavernas. O que pomos em questão é o industrialismo sem alma que exclui do trabalho, do prazer e da vida, milhões de seres humanos. O desafio que temos pela frente, e que tem de ser caro aos educadores e professores, é o de contribuir para que se construa um outro industrialismo que tenha como objectivo primordial responder às necessidades do conjunto da humanidade.

Somos permanentemente desafiados a contribuir para criar uma escola nova que contribua para a igualdade e a justiça social. Olhamos a escola que temos, os problemas que nos coloca e cada vez mais nos convencemos que é impossível alterá-la fora do contexto de outras alterações da política e da economia.

Não vale a pena criar ou viver de ilusões. Não seremos capazes de criar uma escola e processos de formação técnica e profissional que sirvam as pessoas, se não formos capazes de romper com uma prática política fomentadora da exclusão social, da desigualdade e portanto antidemocrática. Todos os que defendem uma escola para todos, a começar pelas organizações de professores, têm hoje pela frente, cada vez mais, este desafio da política. Mais do que defender os pequenos interesses corporativos, importa que se realize o grande combate político.

A tarefa prioritária é, pois, de afirmar e defender os valores de uma efectiva igualdade, qualidade para todos, solidariedade, ampliação da esfera pública democrática por oposição à liberdade e qualidade apenas para alguns, reguladas pelo mercado e pelas perspectivas do individualismo e do privativismo.

Renato Saddi, líder sindical dos professores de S. Paulo, no Brasil, na sua tese de mestrado (1996) questiona a ideia do senso comum, segundo a qual, 'a formação teórica dos educadores seria algo secundário ou algo reservado a uns poucos intelectuais que se dedicam à pesquisa'. Defende, sem por em causa a importância da função formativa da prática, que sem uma sólida formação teórica reduz-se a possibilidade do educador fazer uma análise histórica, para entender a estrutura das relações sociais vigentes, e de propor projectos alternativos, definindo dentro deles o papel do educador e dos processos de formação humana.

Na ausência dessa formação teórica, a perspectiva estratégica desaparece e o que resta é apenas o activismo político estéril. Sobre a mesma questão o professor G. Frigotto afirma que 'no plano da construção do conhecimento, a perda da perspectiva teórica e epistemológica tende a reduzir a formação e a prática do educador a uma dimensão puramente técnica ou didáctica'.

Podemos então afirmar que é por possuir conhecimento teórico que o educador, no campo da formação, apreende os saberes que os alunos construíram a partir do senso comum e das suas experiências e práticas sociais, lúdicas e culturais, e é partindo desta realidade que o educador organiza e programa técnica e didacticamente os diferentes conteúdos e práticas de ensino não dualistas, não fragmentários, mas globais.

O grande risco que hoje corremos é o de cair em práticas fragmentárias. Com tais práticas, acabamos por ocultar ou até justificar a alienação do capitalismo actual. A incapacidade de entender os fenómenos, em termos globais, e de se agarrar a fragmentos da realidade é possivelmente,hoje, uma das maiores fragilidades da esquerda. Não é difícil verificar como os próprios sindicatos, a pretexto de reivindicações parcelares e corporativas, caiem com frequência em discursos, práticas e reivindicações conservadoras.

No campo da formação técnicoprofissional estamos perante grandes desafios. Não é fácil criar alternativas. Face ao desemprego galopante e a estruturas educacionais provocadoras de segregação social, podemos cair muito facilmente no activismo ou no pragmatismo. Podemos mesmo cair - perante as reivindicações do senso comum das classes populares - em 'soluções' de requalificação oferecidos pelo poder dominante. Podemos também cair em alternativas idealistas e imobilizadoras da acção. A forma de ultrapassar estes riscos, afigura-se-nos, só se pode dar através da acção reflectida e colectiva. É a convicção desta realidade que nos leva a pensar que as organizações de trabalhadores - de mãos dadas com as organizações científicas -, se estruturadas no sentido de promover a acção-reflexão, são os melhores instrumentos para construir as novas alternativas.

Acabar com a divisão disciplinar estanque e com as formas individualistas e competitivas de conhecimento e de ensino é uma necessidade crucial. É no plano da prática política uma forma eficaz de contrariar e de fazer parar as imposições tecnocráticas que subordinam o educativo ao mercado e ao processo de globalização com exclusão social.

Os educadores precisam de melhorar a sua competência teórica adquirida em instituições capazes de lhes dar, como precisam, a sua experiência profissional reflectida. Mas estas formações não são suficientes. Os educadores precisam de se formar como intelectuais e como dirigentes. Esta última capacidade só se adquire através da participação em movimentos sociais, em associações científicas, sindicatos, partidos, associações culturais... que sejam capazes de produzir projectos alternativos de sociedade.

As alternativas que julgamos necessário construir não podem perder de vista que, em primeiro lugar, estão as pessoas e que estas não podem ser sacrificadas à reestruturação produtiva. Vale isto por dizer que é preciso criar um projecto de sociedade que afirme na prática a solidariedade e a igualdade efectiva entre todos os seres humanos, o que, em nosso entender, só é possível se se ampliar a esfera pública e o controle democrático sobre os dinheiros públicos.

Como educadores/professores importa afirmar e exemplificar, vezes sem conta, que as pessoas estão, sempre, antes da produção.

José Paulo Serralheiro

num editorial marcado pelo diálogo, via Internet,

com vários amigos e colegas brasileiros.


  
Ficha do Artigo
Imprimir Abrir como PDF

Autoria:

José Paulo Serralheiro
Professor e Jornalista. Director do Jornal a Página da Educação.
José Paulo Serralheiro
Professor e Jornalista. Director do Jornal a Página da Educação.

Partilhar nas redes sociais:

|


Publicidade


Voltar ao Topo