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Regressar com esperança para agir com inteligência

A paixão pela moeda única

continuará a manter em lume brando

a paixão pela educação

Este número de 'a Página' inaugura um novo ano lectivo. Pensando nesta abertura do ano veio-me à memória uma crónica recente que li no jornal 'El País'. Nesse texto, o cronista, fazia algumas referências a certos hábitos duns passaritos que todos conhecemos por pintassilgos. Segundo o cronista algumas espécies destes pequenos pássaros, gostando de clima ameno emigram no Verão para o Norte da Europa, mais concretamente para os países escandinavos. Acontece que os povos que aí vivem são muito respeitadores dos direitos das pessoas e até dos pássaros. Assim, os pintassilgos, durante o Verão, sentindo-se compreendidos e respeitados, ganham certas intimidades. Descem tranquilamente aos jardins, entram nas cozinhas e chegam mesmo a debicar no prato dos proprietários. Tudo isto ocorre com tranquilidade e à vontade.

Depois do Verão, procurando escapar ao frio do Norte e gozar um clima mais ameno, os pintassilgos voam para o Sul. Da Escandinávia trazem hábitos de civilização e tolerância. Não admira que também no nosso país queiram descer com tranquilidade aos jardins, entrar nas cozinhas e até debicar do mesmo prato dos proprietários. O que eles não sabem é uma coisa. É que,nos países como o nosso, as pessoas gostam muito de passarinhos fritos. De modo que a confiança e a intimidade destes pequenos pássaros acaba muitas vezes em tragédia. Os pintassilgos acabam não a debicar tranquilamente no prato dos proprietários mas no quente da frigideira.

Esta tragédia dos pintassilgos não pode deixar, neste inicio de ano lectivo, de me remeter para uma outra tragédia que é o regresso de professores e alunos às escolas. Também muitos destes, durante o Verão, respiram fundo, relaxam, procuram outros ares e paragens e assim ganham alguma confiança.

Não admira que muitos regressem à escola com um profundo desejo de mudança, de transformação, de intervenção, de inovação, de aposta na construção de uma escola feita mais à medida dos alunos que temos, da sociedade que somos e dos nossos sonhos e desejos.

Nos primeiros dias do novo ano lectivo muitos educadores e professores chegam a ter o sentimento de que podem voar livremente e alguns até pensam debicar à mesa dos donos do sistema. Esquecem-se que por cá, pesem todos os discursos sobre inovação, criatividade, autonomia, imperam os direitos e as vontades dos proprietários do nosso burocrático e centralizado sistema educativo. Não admira que, a meio do primeiro período, já muitos se sintam como pintassilgos na sertã.

É incerto o que vai acontecer este ano aos que chegam com vontade de mudança e aos outros, aos que apenas chegam. São incertas as novidades e as mudanças que este ano lectivo nos trará. Mas podem adivinhar-se algumas. O orçamento para a educação subirá ligeiramente conforme o previsto. Não o necessário, como seria desejável, mas o possível de acordo com os limites impostos pela sublime paixão do governo pela moeda única. De resto, todos o sabemos, é este objectivo económico que condiciona a vida social, política, cultural e educacional do país. A sublime paixão pela moeda única antes de tudo, as pessoas ficam para depois, como para depois fica a grande paixão pela educação.

Esta política impedirá que mais uma vez se introduzam medidas de fundo no campo educativo. A reestruturação material das escolas e a melhoria do salário dos funcionários, educadores e professores são medidas, que sendo gritante necessidade, não se vislumbram sequer no horizonte mais longínquo.

Mas esta política, que coloca em primeiro lugar as metas económicas e só depois as pessoas, tem outros efeitos sobre o mundo da educação. Efeitos sobre a própria estrutura curricular na medida em que o objectivo prioritário da educação deixa de ser a formação da pessoa dos alunos concretos que temos - e de todos os alunos - de modo a formar cidadãos capazes de entenderem criticamente o mundo em que vivem, para passar a ter como preocupação determinante a formação de trabalhadores/produtores para a miserável economia que temos.

Como também já vamos sabendo todos, esta economia é cada vez mais a economia da exclusão. Por isso não se trata de formar pessoas que no trabalho e na produção encontram formas de exprimir os seus direitos de participação e de cidadania, mas trata-se de formar mão-de-obra para uma sociedade onde o direito ao trabalho com direitos e à produção útil é cada vez mais incerto e remoto.

Pesem todos os discursos rectóricos e todas as 'experiências giras' o que a nossa escola contínua a produzir, globalmente, é a selectividade social. A escola, tal como está, continua a contribuir para a política de exclusão social. Custa a entender porque é que num tempo em que a humanidade dispõe, como nunca, de tanta capacidade técnica e científica para satisfazer as necessidades humanas e diminuir o tempo de trabalho libertando-nos para o prazer, o tempo livre, o lúdico, o artístico, cheguemos à triste conclusão que no nosso mundo mais de 800 milhões de pessoas se encontram desempregadas ou sub empregadas. E o mais grave é que não se vislumbram alterações desta tendência, pelo contrário, o que se torna evidente são os sinais de que o número de excluídos tende a ser cada vez maior.

Naturalmente não é a escola a responsável pelo exército de desempregados que vai engrossando. Nem é a escola a responsável pelo facto de os jovens não encontrarem emprego. E no entanto muitos responsabilizam a escola por esta situação de calamidade social afirmando que esta não prepara os jovens de forma adequada para o mercado de trabalho existente. Somos capazes de reconhecer que a escola, tal como está - e contra o nosso gosto - não prepara para coisa nenhuma, mas o que não podemos aceitar é que a responsabilizem pelas políticas incapazes de gerar emprego.

Temos pois, neste inicio de ano lectivo, muita coisa para discutir, muita coisa a consciencializar e a tornar pensamento colectivo dos professores. Penso que será mais útil aos pintassilgos que durante o Verão ganharam certa confiança - usando embora da prudência que o nosso país aconselha - dedicarem-se menos a actos de voluntarismo e a descidas individuais no quintal ou a arremetidas na cozinha dos proprietários do sistema e exigirem e dedicarem mais tempo e espaço à discussão colectiva e livre destes problemas que atravessam o sentido actual da nossa profissão.

Os professores, se não quiserem acabar na frigideira, têm inevitavelmente de transformar o conjunto dos docentes de cada escola em intelectuais colectivos. Têm de não recear a política, pelo contrário, têm de a discutir e de procurar descortinar-lhe os seus objectivos e efeitos sobre o mundo educativo em particular e sobre a sociedade em geral.

Não podemos, de modo algum, ficarmo-nos na condição de meros funcionários públicos cumpridores de programas, regulamentos e outras ordenações burocráticas vindas da Administração. Não podemos também assumirmo-nos como meros técnicos de ensinar, apenas preocupados com transmitir correctamente as matérias que nos mandaram ensinar.

Vivemos um tempo em que é necessário assumirmos a nossa condição de intelectuais atentos aos alunos e à sociedade em que vivemos. Intelectuais com vontade de centrar a sua atenção na pessoa dos nossos alunos e de tomar a formação global destes - no contexto social e no tempo em que vivemos - preocupação dominante. Por isso não podemos dispensar-nos de promover entre nós a discussão política, seja a global ou a sectorial.

Se é justo que cada um de nós não queira terminar os seus dias na sertã do poder, é louvável que o nosso trabalho profissional contribua para evitar conduzir massivamente as novas gerações à frigideira.

José Paulo Serralheiro


  
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Autoria:

José Paulo Serralheiro
Professor e Jornalista. Director do Jornal a Página da Educação.
José Paulo Serralheiro
Professor e Jornalista. Director do Jornal a Página da Educação.

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