Página  >  Edições  >  -  >  Editorial de Janeiro de 1997

Editorial de Janeiro de 1997

Editorial de Janeiro 1997

Este ano e meio de governo caracteriza-se pela exitação. Tomados no seu conjunto, os principais responsáveis pelo governo, na área da educação, sabem que na actual situação da escola portuguesa — e não só — ou se perpetua o sistema vigente, deitando-lhe alguns remendos e aceitando a sua gradual degradação, ou se inicia um processo de refundação do sistema, com rompimentos fundamentais, provocando alguma incompreeção e crítica, mas iniciando um processo de revitalização e de recuperação da credibilidade do sistema.

Esta é uma opinião óptimista sobre a actual equipa do ministério. Uma opinião mais péssimista levar-me-ia a dizer que o actual ministro e alguns dos secretários de estado que o acompanham, são bons técnicos, mas técnicos de uma certa filosofia da educação que já mostrou a sua falência quer a nível nacional quer a nivel internacional.

Temos também noutras áreas, bons técnicos e bons politicos, o que não quer dizer que não sigam políticas que nos condenam inevitávelmente a maior desemprego, a menor ordenado, a maior exclusão social e pobreza. Presos ao seu saber, esses bons técnicos, não têm nem o conhecimento nem o arrojo de procurar e seguir alternativas mais felises.

Em artigo publicado no JN de vinte e seis de Dezembro, José Saraiva (JS) afirmava, a propósito da informação em tempo de Natal: “É verdade que se sucedem as notícias de fábricas com dificuldades e de trabalhadores com salários em atraso ou simplesmente despedidos. Mas tais vulgares notícias ganham uma certa dimensão numa época que motiva sempre maior atenção aos problemas dos outros...Reflexo de uma sociedade que não deixará de ter problemas deste tipo nos próximos anos, é bom que comecemos a encarar estes factos como 'normais'.” E mais adiante cita o ditado de um deputado chileno: “mesmo que me irrite este é o meu governo”.

Opinião — de um bom jornalista e comentador de opinião — a recordar se não queremos confundir bons técnicos com boas políticas. JS aceita esta normalidade como certamente aceita a chuva no inverno ou o sol no verão. Para ele não há alternativa ao actual sistema económico-político e motivo de protesto só haveria se o governo não fosse o seu governo. Assim, o que é “normal” é que os problemas se banalizem e os políticos da oposição protestem e os da situação batam palmas.

No que me toca, não tendo governo nem partido, se protesto e quando protesto, não é por ser da oposição ou da situação, mas por me parecer que as lógicas políticas são diversas e alternativas porque construidas no dia a dia pelos cidadãos em debate e reflexão permanente da coisa pública. Não creio em verdades ou políticas eternas, de eterna só reconheço a dúvida.

Voltando ao mundo da educação, numa visão mais realista, os nossos governantes, politica e técnicamente competentes, podem não sair da teia há muito tecida. Assumindo a tarefa de deitar remendos no nosso velho tecido escolar. Se assim for, assumamos também, todos nós, mas particularmente os professores, a nossa parte de responsabilidade pela decadência em curso. Por não termos sido capazes de propor outros caminhos e exigir alternativas.

Perante a situação que se vive, é preciso avançar para o lançamento de Novas Bases Para a Escola Portuguesa.

Em primeiro lugar é preciso chamar ao debate e à negociação todos os parceiros educativos. Com eles discutir a reorientação da nossa política educativa.

Não se trata de negociar os principios mais ou menos inócuos que deram substância ao chamado Pacto Educativo (PE). O PE que estranhamente foi entendido pelos parlamentares como coisa adquirida, não é mais do que o enunciar da velha ordem escolar em vigor. Por isso estranhei que os parlamentares, de toda a oposição, não lhe dessem importância sob o pretexto de que o seu conteúdo era só senso comum. Tal atitude mostra que os deputados estão com a situação. Nenhum parlamentar apresentou alternativas substanciais. O que deixa os professores mais entregues a si próprios e os deve fazer pensar quanto à forma de, dez anos depois, se fazer e com quem fazer o debate da avaliação e reforma da Lei de Bases (LB) para o Novo Sistema Educativo.

Viu-se que os partidos não perceberam as causas da falência das reformas, nem as novas exigências e procura educativa. Conte-se com os que julgam que leis produzidas em momentos que lhes foram simpáticos devem ser tornadas bandeiras imutáveis e com os defensores dos mitos educativos dos anos sessenta e setenta que enformam a actual LB.

Uma vez entendidos quantos às Novas Bases da Escola Portuguesa, é preciso debater, planear, calendarizar, negociar, os recursos e os instrumentos que viabilizem a nova política.

É urgente, dar enquadramento legal ao processo de negociação. Vamos ouvindo opiniões segundo as quais os estrangulamentos de funcionamento e de mudança na educação se devem a um constante bloqueio imposto pelos sindicatos. Nada mais errado. Desde a Revolução de Abril que assistimos a uma completa anarquia no processo de auscultação e negociação dos parceiros educativos. Não se produziu uma cultura de negociação. Não existe legislação que diga quem representa quem, discipline os processos negociais e os torne responsáveis, rigorosos, transparentes e democráticos. Os governos têm preferido a anarquia “negociadora”. Escolhem arbitráriamente os parceiros conforme o momento politico. Fingiem acordos e desacordos. Gerem arbitráriamente a tomada de decisões. Eternizam a irresolução dos pequenos e grandes problemas. Assim se explica que pequenas questões — grandes e dolorosas para os que as sofrem — se arrastem por dez, quinze ou mais anos, contribuindo para a descrença, apatia e desmaselo.

Negociados e traçados estes grandes princípios orientadores e os meios de ir construindo a nova escola portuguesa é necessário, em simultâneo, definir com rigor a escola de que carecemos e o que dela queremos. O que supõe, pelo menos, pormo-nos de acordo sobre matérias como a Administração e gestão das escolas, a organização do espaço, do tempo e do quotidiano escolar, a autonomia das escolas, as formas concretas e viáveis da sua inserção no território educativo a que pertence, a estabilidade do corpo docente, os recursos materiais e humanos necessário [quais, quem os disponibiliza e quando] e os direitos e deveres dos vários intervenientes no processo educativo e formativo.

É preciso pormo-nos de acordo sobre o perfíl dos alunos no final de cada ciclo de ensino. O que implica a discussão do quotidiano que queremos nas nossas escolas. Saber como melhorar a relação entre o saber e o saber fazer. Como contrariar a reprodução social que se continua a verificar. Deitar fora o velho conceito de que aprender e ensinar se faz predominantemente na sala de aula, com alunos organizados em turmas, confiados a um professor que por sua vez se organiza em grupo-disciplina e que no 1º ciclo se traduz um professor-uma turma-uma sala com carteiras- um recreio.

O modelo de escola baseada na sala de aula, no corredor e na porta da rua já só serve para reforçar dia a dia o mal estar docente, a sua desqualificação e empobrecimento cultural quotidiano e o desinteresse e desencanto dos alunos. Discutamos a nova divisão do tempo escolar, a organização de professores e alunos, os novos espaços físicos necessários, os novos equipamentos, as novas condições de trabalho e de convivencialidade, as novas relações professor-aluno, professor-pais... o novo quotidiano escolar. Mas por favor, sem as velhas teorias e conceitos ensinados recentemente em múltiplas acções de formação como se de coisa nova se tratasse.

Que modelos de avaliação nesta nova escola? Exames ou curriculo de cada aluno capaz de ser instrumento orientador da sua aprendizagem, do seu prosseguimento de estudos ou da saída para o mercado de trabalho? Ingresso no ensino superior por curriculo e entrevista ou por exame? Que perspectivar quando os alunos abandonam o sistema? Que papel deve ter a escola do ensino regular na educação e ensino recorrente de jovens e adultos? Que articulações estabelecer com outras instituições sejam as económicas [empresas] sejam as sociais ou culturais? Como fazer que a comunidade sinta que a escola lhe pertence? Como permitir que os jovens usem a escola nos períodos não lectivos? Como rentabilizar este equipamento social que é a escola? Como planear e que papel deve ter a escola na inserção social e profissional dos alunos?

De que professor precisa a nova escola portuguesa? Quando vamos deixar de permitir que a escola seja um biscate de uns quantos curiosos e curandeiros do ensino e com isso se contribua para o desmembramento e perda de identidade profissional dos professores? Que formação inicial queremos para todos os professores? Com que duração? Com que conteúdos? Que formação profissional? Que formação continuada? Que duração da componente lectiva? Que tempo para a investigação individual e em equipa? Como garantir a mobilidade ascendente e descendente dos professores entre ciclos de ensino? Como dar estabilidade ao corpo docente? Como aproveitar a experiência de cada um? Que autonomia se atribui aos professores individualmente e aos colectivos que organizem? Que novas relações professor-aluno-escolas-familia-território educativo?

Os professores são os principais obreiros destes novos valores e práticas. Deste novo perfíl profissional que importa construir. Que direitos e deveres profissionais construi-mos e defendemos? Que exigências colocamos a nós próprios e ao governo para podermos exigir com naturalidade uma nova consideração social dos professores?

Se a Nova Escola Portuguesa precisa de uma nova Lei de Bases, de uma nova escola e de novos recursos, não dispensa um novo Estatuto da Carreira Docente (ECD).

Neste inicio de 1997 pouco mais se vai fazer do que deitar uns remendos no velho ECD. Não fossem os remendos de pano velho e trabalhariamos para o próximo ECD com mais paciência. Mas dada a pobreza reinente serão remendos de pano velho e freco.

Cabe-nos então, a nós professores, iniciar a manobra de inversão da marcha do navio e meter a proa rio acima que o futuro está na nascente.

É de todo necessário que os professores façam deste debate uma questão de quotidiano. Troca de informação. Circulos de debate entre professores, de preferência de escolas diferentes. Utilizar os placardes das escolas, os jornais — por exemplo a Página — para troca de opiniões e informações. Aumentar substancialmente os niveis de leitura dos professores e a sua procura cultural. Participar nas reuniões e noutras iniciativas promovidas pelas organizações profissionais da classe. Maior participação no associativismo docente. Exigência de que os nossos representantes nas negociações sejam eleitos nas escolas de acordo com a vontade livre dos professores. E nos prestem contas em cada eleição periódica. Exigência da descentralização e regionalização da coisa educativa.

Eis alguns dos caminhos que temos de percorrer. Eis algumas exigências a colocar ao poder. Se o não fizermos — por respeito aos que nos antecederam — mais vale mudar de designação profissional. Deixemos para a história o nome de professores. Tomemos o nome de escriturários do ensino que calha melhor às práticas rotineiras e amorfas que vêm caracterizando cada vez mais a velha escola portuguesa.

E se nos sobrar alguma vergonha não nos admiraremos com a falta de consideração social e magro salário a condizer.

José Paulo Serralheiro


  
Ficha do Artigo
Imprimir Abrir como PDF

Autoria:

José Paulo Serralheiro
Professor e Jornalista. Director do Jornal a Página da Educação.
José Paulo Serralheiro
Professor e Jornalista. Director do Jornal a Página da Educação.

Partilhar nas redes sociais:

|


Publicidade


Voltar ao Topo