"A sociedade moderna faz avançar este processo subtil de demissão das tarefas humanas pela convicção que, simultaneamente, foi criando de que há sempre outros que são "os competentes" para fazer um trabalho qualquer que se nos depare." A propósito do projecto de despacho sobre Apoios Educativos, Manuela Teixeira declarou ao jornal O Público2 que "o diploma frustrou todas as expectativas (porque se esperava) que o documento resolvesse a situação dos docentes do ensino especial". Se não é minha a confusão, o dito despacho somente cita a educação especial como uma das especializações consideradas para o exercício de funções de apoio educativo. E, salvo melhor entendimento, a intenção do normativo não será a de "resolver a situação dos docentes do ensino especial", mas sim a de criar condições de "apoio educativo para alunos". Se as declarações citadas não auguram objectividade na análise do documento, também o próprio texto do despacho enferma de alguma ambiguidade. No artigo sétimo, o enunciado de "funções" sugere justaposição de professores no lugar do desejável trabalho de equipa em escola "inclusiva", deixando em aberto a possibilidade da manutenção da dependência das escolas relativamente a estruturas paralelas, o que obsta ao efectivo exercício de autonomia. "No passado, admitiu-se com demasiada frequência que a melhoria da prática docente era o resultado da acção de especialistas exteriores que explicavam aos professores o que deviam fazer. Independentemente de ser uma concepção ingénua da maneira como as pessoas aprendem, tinha também como efeito diminuir a confiança dos professores na sua prática e impedir que contribuissem para o seu aperfiçoamento profissional".3 No nosso país, nos últimos anos, a prática das equipas de educação especial foi quase sempre contrária ao seu discurso. Essa incoerência praxeológica contribuiu para que muitos professores do ensino regular quase não mudassem de atitude relativamente às crianças "especiais". A intervenção paralela e substitutiva de professores contribuiu, em muitos casos, para que muitas escolas não sentissem a necessidade de alterar as suas práticas. As estruturas, cujos agentes (especializados, ou não) apenas atendiam alunos especiais, dificilmente se adaptarão a novos hábitos. Por esta razão, o nóvel discurso de "inclusão" poderá constituir-se em mais uma oportunidade perdida. Poderá mesmo dar cobertura a uma "renovação" em que tudo permaneça igual, ainda que com outra designação. A UNESCO.html">UNESCO.html">UNESCO.html">UNESCO.html">UNESCO tem sublinhado a necessidade de se "passar de uma atenção particular centrada numa percentagem de crianças consideradas como tendo dificuldades de aprendizagem para uma aprendizagem que englobe todas as crianças". "Em vez de proporcionar experiências de aprendizagem separadas, para grupos de crianças especiais, os professores das escolas regulares devem procurar maneiras eficazes de proporcionar um currículo comum que tenha em conta as diferenças individuais dos alunos". "As necessidas especiais verificam-se quando as escolas são incapazes de responder às dificuldades das crianças". Quando se adopta uma perspectiva curricular, "a principal preocupação é dar resposta a cada aluno dentro do currículo geral, em vez de organizar programas separados". Mas, com a emergência da Educação Especial, "acontece muitas vezes que os alunos só são considerados especiais, se existem serviços para os atender (...) E não há qualquer estímulo para que os professores das turmas regulares se ocupem dos alunos que têm dificuldades (...) já que ensinar crianças com necessidades especiais é uma tarefa para os especialistas." "O professor do ensino regular que procure ajudar alunos "especiais" pode até ser acusado de lhes estar a prestar um mau serviço, por lhes negar o acesso a especialistas. Com base nestes pressupostos, o atendimento às crianças que sentem dificuldades na escola é caracterizado, em muitas partes do mundo, pela importância dada à classificação por categorias, à prestação de cuidados e à segregação". Estes apontamentos do discurso da UNESCO.html">UNESCO.html">UNESCO.html">UNESCO.html">UNESCO sobre escola inclusiva são muito claros. Creio que se justifica a sua inclusão neste texto num momento em que alguns dos professores especiais insistem em ler a Declaração de Salamanca do modo que mais lhes convém. O que convém é recordar que a utilidade da especialidade se afere na qualidade do contacto com professores e alunos nas escolas, e não pela quantidade de visitas inscritas num boletim itinerário. As especializações estiolam quando fechadas num gabinete. A não ser que a mudança nas escolas possa acontecer por "controlo remoto"... É necessário (como o projecto de despacho aponta) extinguir as actuais equipas de educação especial, mas será também necessário resistir a novas tentações, nomeadamente, a de instituir, ou a de manter "coordenações" distantes das escolas, que se limitem a preencher formulários, a arquivar relatórios, a moderar reuniões (quantas vezes inúteis!) fora das escolas... Se o sistema acusa escassez de professores, seria um luxo manter centenas de professores especialistas longe do contacto com crianças. As escolas precisam de serviços locais que as ajudem a melhorar o trabalho com as crianças, com todas as crianças. Mas será necessário assegurar que quaisquer apoios que vierem a ser disponibilizados no futuro, não fiquem, sob que pretexto for, sob a tutela da educação especial. Tal não faria sentido no quadro mais amplo que o conceito de apoio educativo estabelece. Será necessário aproveitar os resultados úteis de anos de acção de alguns dos professores e equipas de educação especial. Mas será ainda mais necessário prevenir enviezamentos que desvirtuem os fundamentos da escola inclusiva que (pelo menos em intenção) se anuncia. Só será possível falar em inclusão quando, em consonância com a Declaração de Salamanca, as escolas se constituírem em comunidades solidárias. De contrário, prevalecerá um subtil processo de desresponsabilização operado pela intervenção de estruturas paralelas e continuaremos a ter duas ou mais escolas dentro de uma mesma escola. José Pacheco 1 Baptista, A.(1973) O Tempo nas palavras, Lisboa, Moraes Ed., p. 108 2 Edição de 14 de Maio de 1997 3 UNESCO.html">UNESCO.html">UNESCO.html">UNESCO.html">UNESCO (1993) "Materiais para a formação de professores"
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