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Quem Prende a Água Que Corre...

"Quando a multidão dos governados, sentindo-se abandonada, começa a organizar a sua sobrevivência em pequenas comunidades (...) cognominam do "movimentos marginais" estas tentativas. Contudo, os movimentos marginais de hoje apresentam talvez as soluções do futuro (...)"1

Passou a não ser fácil trabalhar em círculo de estudo desde que a euforia dos créditos e dos financiamentos se apossou da formação contínua de professores. Talvez porque os círculos continuem a manifestar comportamentos disruptivos de resistência face a tentativas de normalização. Talvez. De um lado, a informalidade do círculo; do outro, a tentativa de o controlar, de o submeter a regras que ao círculo não se ajustam. A não ser que a excessiva regulamentação conduza à realização de acções de formação em curso com rótulo de círculo. É o que parece vir a acontecer. Talvez.

Vem este arrazoado a propósito de uma confidência que me deixou apreensivo. Ao cabo de vinte e cinco anos de trabalho naquilo que eu julgava ser um círculo de estudo, instala-se a dúvida de que o tivesse sido. Depois de haver dedicado milhares de horas a estudar uma modalidade de formação, fico inquieto: ter-me-ei enganado no objecto de estudo? Passarei a explicar.

Uma professora de uma escola superior de educação disse-me que um departamento do Ministério da Educação promovera um círculo de estudo nacional. Se nenhum ruído interferiu na comunicação, compreendi que o "círculo" seria subdividido em círculos locais e destinar-se-ia a promover a análise de orientações curriculares para a educação de infância. É um propósito louvável. Mas eu, um simples professor primário interessado no debate dessas orientações (escusado será argumentar a conveniência e as vantagens da participação do primeiro ciclo nessa análise), fiquei ainda mais apreensivo quando me apercebi do processo de escolha dos formadores e quando me foi dito que a definição dos conteúdos e da metodologia seria atribuição do dito departamento.

Se a confidência não me ocultou outros dados, concluo que as características de um círculo de estudo, tais como a iniciativa, a auto-organização, o mutualismo, a errância, a informidade, ou a participação, estão ausentes deste projecto. Então, por que lhe chamam círculo ?

Acredito que, apesar dos maus-tratos, com esta ou com outra designação, os círculos hão-de resistir à erosão provocada por uso indevido, ou pelos espartilhos dos formulários. Há círculos que não se remetem para uma voluntária marginalização. Estão no sistema e nele irão manter-se por direito próprio. São anteriores às formações com financiamento. Provavelmente, irão sobreviver, quando o derradeiro quadro comunitário de apoio vier a extinguir-se, quando o Regime Jurídico e o edifício que dele restar forem apenas objectos de estudos de arqueologia educacional.

Os círculos agem como dispositivos de análise das condições do exercício da formação. A negociação com as estruturas de acreditação e de financiamento foi sempre precária. Entre David e Golias, o segundo teima em não aprender com o primeiro, mas é de crer que ambos tivessem aprendido algo desde que o R.J.F.C.P. foi publicado. Se os interesses divergentes não se conciliaram, também o poder de sucessivas regulamentações não se impôs totalmente. Se a informalidade que caracteriza os círculos não conseguiu expressão de reconhecimento, subsiste, porém, uma mútua benevolência, ainda que não- explícita. Resta saber até quando.

Quando, em 1992, escrevia sobre a necessidade de os professores se juntarem por necessidade, não poderia antever toda a dimensão do drama de uma formação imposta a troco de créditos. Hoje, como em 1992, admito que já quase tudo tenha sido discutido e prescrito sobre formação. Mas a máxima de Pascal avisa-nos de que, por detrás de cada verdade, é preciso aceitar que existe uma qualquer outra verdade que se lhe opõe.

 

(1) Friedman, Y. (1978) Utopias Realizáveis, Lisboa, Socicultur, p. 8-9

José Pacheco


  
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Autoria:

José Pacheco
Escola da Ponte, Vila das Aves
José Pacheco
Escola da Ponte, Vila das Aves

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