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Revisitação poética de Raul de Carvalho

APÓS a sua morte ocorrida há doze anos, a obra poética deixada por Raul de Carvalho (1920-1984) tem merecido nos últimos tempos uma espécie de revisitação crítica e consagradora da verdadeira importância que tem na poesia portuguesa do nosso tempo. Primeiro, foi a publicação da sua Obra Poética, num primeiro volume que integrou todos os títulos editados durante a vida e ainda os dois livros póstumos saídos no ano da sua morte, sob a responsabilidade de Luís Fagundes Duarte, estando ainda em fase de organização um segundo volume, que integrará muitos poemas inéditos, alguns livros inteiramente organizados pelo Poeta de Mesa da Solidão, a par dos muitos poemas dispersos por jornais e revistas ou nas mãos de alguns amigos.

Agora, numa romagem de amizade e saudade acontecida na sua vila de Alvito, Raul de Carvalho mereceu ser revisitado nos seus lugares de origem, no coração dessa paisagem do Alentejo que andou sempre a seu lado, como se observa em muitos dos seus poemas, e foi pretexto para que ali acorressem alguns dos amigos mais próximos que teve em toda a sua vida, a par de novas gentes que redescobrem agora a profunda importância e alcance da sua poesia, ao mesmo tempo que o Município de Alvito aproveitou para lançar o ensaio de Maria Luísa Leal, A Construção do Sujeito na Poesia de Raul de Carvalho, que foi a sua tese de mestrado e já assinara antes uma esclarecedora nota biográfica que aparece no volume da Obra Poética.

Não pretendemos discutir os pressupostos críticos de que Maria Luísa Leal parte para a abordagem da poética do autor de Realidade Branca, mas não podemos deixar de acentuar que, mesmo por se tratar de um trabalho universitário, com todo o seu habitual "calão" semiótico e linguístico pouco comum para a maioria dos leitores, o que importa colocar em relevo é esse sentido crítico de saber redescobrir outros caminhos no entendimento da poesia de Raul de Carvalho e, sobretudo, por ser uma tentativa minuciosa, crítica e interpretativa feita por quem não tendo conhecido o poeta em vida, melhor parece colocar-se para que a abordagem se faça no pleno domínio da "construção" literária do texto que detecta, nas várias linhas de força que estabelece, uma profunda e interessante visão do sujeito e das coisas que determinaram a grande expressividade alcançada pela poesia de Raul de Carvalho.

Por outro lado, embora minuciosa nos elementos pessoais da vida e obra do autor de Parágrafos, não podemos deixar de referir que poderiam evitar-se algumas pequenas "incorrecções" e "omissões", até mesmo uma evidente insuficiência de pesquisa quanto ao rigoroso estabelecer de uma bibliografia passiva que oferecesse aos leitores mais interessados nessa poética as pistas necessárias para outras leituras, ou seja, saber quem até hoje se interessou e estudou a obra de Raul de Carvalho, referenciando algumas entrevistas, depoimentos, textos vários de intervenção, para se saber (ainda) o que o Poeta de Elsinore pensava do próprio acto poético.

Nessa intencionalidade com que elaborou a sua obra (e isso mesmo demonstra Maria Luísa Leal), podemos repetir que foi pelos caminhos da verdade e da coerência que Raul de Carvalho traçou as linhas essenciais do seu trajecto, como aliás fazem os grandes poetas: é aí que reside, pois, a bagagem, poética e cultural, que transportou em largos anos de constante "ofício de viver". Não por ser apenas da sua condição, mas por nunca conseguir escapar, mesmo por entre o esclarecedor cortejo de humilhações e desamores, à vocação interior de a si mesmo se entender a fazer da "escrita" uma permanente forma de salvação. E podermos dizer ainda com Eduardo Lourenço que "a outra metade da inesgotável imagem de Campos, recriação e aprofundamento original de uma similar sensibilidade, revive na obra de Raul de Carvalho, um dos mais autênticos e puros poetas do seu e nosso tempo. A torrente admirável do seu lirismo encobre um pouco o secreto gesto que nela está empurrando sem cessar a 'solidão do homem para um ponto que fica algures no universo'. Na sua poesia se unificam e resgatam até os bocados a mais que havia na jarra definitivamente partida de Pessoa".

Portanto, tudo vale a pena ser feito para se fazer sair do silêncio a "voz" poética de um dos maiores nomes da poesia portuguesa deste tempo português, que sofreu a sua via-sacra em vida e mesmo depois da morte: longos foram os anos de indiferença ou de esquecimento, não sabemos se intencional da parte de uma crítica sempre mais inclinada para proclamar o talento poético de quem o não tem, negligenciando assim uma "poética" que, como a de Raul de Carvalho, claramente torrencial e arrebatada, calorosa e serena, se afirma como um rio caudaloso que navega por águas que não deixam lixos acumulados nas margens que o percorrem.

Ora, é exactamente esse poeta do silêncio, da solidão e da revolta, cantor desesperado de esperanças ou alegrias que a vida muito cedo fez soçobrar, que este trabalho crítico, com um esforçado empenhamento e entusiasmo, traz à nossa presença, realçando por mais de uma vez como a voz de Raul de Carvalho claramente se insere numa linha poética maldita ou ousada, sempre sincera e apaixonada. Porque o fardo da vida que carregou e povoa os versos que nos deixou, não é mais do que a certeza de que escrever foi (ainda) uma e mesma forma de se sentir vivo, tudo poder suportar e calar, "estar fora" desta sociedade em que de todo se não quis integrar. E isso nunca escondeu nem lhe perdoaram. Até à sua morte, repetimos, acontecida em Setembro de 1984. Mas no que de mais visível e de iluminado nos aponta, sem nenhuma espécie de engano, toda a sua poesia tomou as palavras como arma na forma de estar ao serviço da verdade e exprimir em sinceridade esse profundo e magoado grito como grande poeta do nosso tempo.

Por isso, a edição deste excelente ensaio de Maria Luísa Leal e a romagem-homenagem que na sua terra natal foi um claro e comovido pretexto para revisitar Raul de Carvalho (e ali estiveram alguns poetas e amigos que acompanharam a sua "aventura", como Luís Amaro, Albano Martins, Manuel Gusmão, Francisco Fanhais, Luís Fagundes Duarte, António João Valério e outros), denota que, por entre as várias lutas e protestos, a sua poesia foi de facto e no mais amplo sentido feita contra tudo e a favor de nós. Sempre. E assim mesmo nos consente que seja possível fazer dela uma certa leitura, passados já tantos anos sobre a sua morte física, mesmo na diversidade dos muitos livros que nos ficaram desse profundo clamor de silêncio e solidão.

 

MARIA LUÍSA LEAL
A CONSTRUÇÃO DO SUJEITO
NA POESIA DE RAUL DE CARVALHO
Ed. da Câmara Municipal do Alvito / 1996.

Serafim Ferreira


  
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Autoria:

Serafim Ferreira
Escritor e Crítico Literário, Lisboa. Colaborador do Jornal A Página da Educação.
Serafim Ferreira
Escritor e Crítico Literário, Lisboa. Colaborador do Jornal A Página da Educação.

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