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Noite e nevoeiro

ParaCatarina, João, André, Sara e Pedro

Numa tarde de Novembro de 1955, numa sala um pouco sombria, um homem escreve, corrige, recria um texto que deve colar absolutamente às imagens atrozes que passam na mesa de montagem. Esse homem, é Jean Cayrol que numa espécie de sobressalto, decidiu fazer o comentário que deve acompanhar "Noite e Nevoeiro", uma curta metragem de Alain Resnais produzida por Anatole Dauman "Mesmo uma paisagem tranquila, mesmo uma planície com voos de corvos, de medas e feixes de ervas, mesmo uma estrada onde passam carros , camponeses, casais, mesmo uma aldeia para férias, com uma feira e um vagabundo podem conduzir simplesmente um campo de concentração". Foi Fredéric Towarnicki, um diplomata conhecedor de Heidegger, que pôs em contacto Resnais e Dauman. Para satisfazer a encomenda dum filme sobre campos de concentração, feita pelo Institut D'Histoire de la Seconde Guérre Mondiale, o produtor pensa imediatamente em Alain Resnais, já autor, de alguns ensaios famosos sobre pintura e de um filme proibido que punha em causa o colonialismo francês, "Les Statues Meurent Aussi", feito em colaboração com Chris Marker. À proposta responde primeiro que não. Era necessário, disse, que o filme fosse feito por alguém que tivesse vivido a experiência dos campos. Obstinado, Dauman voltou à carga. Finalmente, Resnais aceita mas com uma condição: que seja Jean Cayrol, escritor e antigo deportado, a escrever o comentário.

Durante o Verão de 1955, a difícil procura de documentos e uma rodagem não menos complicada concretizam uma empresa reputada de impossível, tanto no plano político como no artístico.

Apesar das dificuldades financeiras, o filme foi rodado a preto e branco e a cores. É assim, que Resnais aborda a montagem das imagens com as quais é necessário coexistir durante dias. Montagem e manipulação de imagens muitas vezes insustentáveis, que segundo palavras do próprio Resnais, "produzem uma forte impressão de irrealidade e dão uma sensação de vertigem àqueles que têm que fazer este trabalho. Uma primeira montagem de 40 minutos termina. Chegou o momento de a mostrar a Jean Cayrol que, aceita sustenta o olhar das imagens do futuro "Noite e Nevoeiro". A experiência é terrível. Cayrol adoece e não se resolve a rever o filme do princípio ao fim. Escreve uma primeira versão do texto, muito belo, segundo as palavras de Resnais, mas inutilizável porque está muito longe do encadeamento dos planos. É então que intervém Chris Marker. É ele que vai fazer o trabalho de adaptação ao filme, retocando o texto na sua estrutura e no ritmo para que ele entre em relação directa com as imagens. Esta versão retocada é submetida a Cayrol que aceite rever frase a frase o seu texto. Regressa então à sala de montagem, para o combate com as palavras mas sobretudo com as imagens. "Mesmo uma paisagem tranquila...".

Cada uma das imagens da fabricação de "Noite e Nevoeiro" põe assim concretamente, a cada uma dos protagonistas a questão do imostrável. Jean Cayrol, claro, mas também Hanns Eisler a quem Resnais, por sugestão de Marker, pediu para escrever a música que suporta dificilmente a coabitação com estas imagens. Michel Bouquet que regista a leitura do texto como um pesadelo, do qual diz guardar uma recordação terrível, a de Henri Colpi, um montador de som, Sacha Vierny um dos operadores de câmara, tentando regular os "travellings" nas ruínas dos campos. André Heinrich, o director de produção, todos os técnicos e Resnais, que se recorda de acordar aos gritos todas as noites que precediam o período de rodagem, e os pesadelos a desaparecer quando chegavam aos locais de rodagem.

"Noite e Nevoeiro" verá finalmente o dia da estreia. Mas terá de passar ainda por tentativas de censura, directa ou indirecta, ligadas tanto às autoridades francesas como alemãs, que contaram com a cumplicidade do historiador Philippe Erlanger, que o retirou do Festival de Cannes de 1956. Torna-se por fim no filme de referência sobre o tema, aquele que é, à sua maneira, uma trincheira inultrapassável para todas as formas de revisionismo e de apelo à violência racial.

A experiência de Jean Cayrol é, guardadas todas as proporções, um pouco a nossa, isto é a de cada espectador de "Noite e Nevoeiro", sempre próxima da dor física que procura estas imagens, e o imperativo, de as olhar até que elas se tornem inesquecíveis.

Paulo Teixeira de Sousa


  
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Autoria:

Paulo Teixeira de Sousa
Escola Secundária Especializada de Ensino Artístico de Soares dos Reis, Porto
Paulo Teixeira de Sousa
Escola Secundária Especializada de Ensino Artístico de Soares dos Reis, Porto

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