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Um pedagogo contador de histórias

José Pacheco (J.P.), em três anos de labor regular, sistemático e persistente no jornal a Página, foi despoletando escritas do Primário que agora nos chegam às mãos numa edição que reune e fixa aquilo que corre sempre o risco de se esvair no efémero da imprensa: 36 short stories, crónicas, ensaios-narrativos, - (a catalogação em género é sempre tarefa árdua, em especial quando autor e/ou editor as evitam). É um livro gostoso de se ler. E deixo já um aviso aos mais vorazes: não o leiam de supetão, como apetece logo que se acaba a primeira história, aquela que dá o título ao livro; cada história merece ser saboreada, digerida, reflectida. Trata-se, nesse sentido, de um livro "enganador", pois aquelas 133 páginas, tecidas de histórias curtas que se percorrem num ápice, podem dar a ilusão de uma obra ligeira, quando, pelo contrário, estamos perante um livro "denso" de ideias, pensamentos e reflexões sobre a educação e, em especial, sobre esse peculiar mundo do «primário» (terminologia que continua agradar ao autor e que tem em mim um adepto; sou dos que não vê qualquer vantagem nestas permanentes alterações vocabulares, que na verdade pouco mudam, e que só lançam a confusão junto dos pais; "liceu" e "primária" estão para dar e durar, podem crer, é que a seu favor têm a patine da história e da afectividade).


Histórias a transbordar de humanidade

José Pacheco fala-nos de coisas sérias, graves e preocupantes no nosso sistema educativo recorrendo a um género pouco usual na abordagem destas temáticas - a narrativa. E revela-se um exímio contador de histórias. Numa linguagem simples, cativante, «voando em metáforas» (1), numa ironia agri-doce, relata-nos histórias do real, com personagens que transbordam de humanidade: o Nelson que «chegava pontualmente atrasado», a Letinha «que ficou para trás nas reduções», o Teixeira etiquetado, com alguma leviandade, de «autista, mal educado e preguiçoso», o André apodado de mongolóide, a Rosinha que «sabia a matéria na ponta da unha», o Rafael das frases poéticas, a Guidinha que baralhava a professora com os seus regionalismo linguísticos, o Marco «rotulado de filho de pai incógnito», o «escorraçado e irrecuperável» Roberto, a Mirinha que quase me atreveria a designar de homo scholaris de "novo tipo", tal a sua distância comportamental face ao estudante que grassa há décadas no nosso sistema, e o Zé António, com que encerra o livro, que «conheceu a prisão, a solidão e o desprezo» e morre de sida,... e tantos, tantos outros.

Mas o que me surpreende neste livro é ver que nesta transição de milénio, numa época de tantos descréditos, J.P. ainda é capaz de manifestar certezas, mobilizar utopias, ser positivo «na minha escola, falta o dinheiro mas sobra o optimismo e a criatividade» (p. 100). Ele confia na missão emancipadora da escola. Tem disso prova empírica, tem projecto implantado, apresenta-nos um modelo com provas dadas, de que naturalmente se orgulha - a "sua" escola, a Escola da Ponte, em Vila das Aves. Aí se defende a meiguice e a paciência como instrumentos pedagógicos eficazes em «comunidades de amizade crítica» (p. 65). Na formação pessoal e para a cidadania, do crescer na virtude e do saber viver com os outros em sociedade, reside a ênfase pedagógica do seu trabalho, quando o «encher a cabeça com conhecimento inútil» (p. 88) ainda é o objectivo central por que muitos pautam a sua acção. Por isso, J.P. não teme criticar os professores que «continuam a ensinar tudo aos alunos... excepto a serem pessoas» (p. 86).

A escola do "imperfeito"

Das histórias emergem múltiplos temas, muitos deles sujeitos «a breves euforias e a longas hibernações» (p. 102) na agenda educativa nacional, que nos ajudam a traçar uma visão diacrónica da «escola de primeiras letras». Constituem uma valiosa fonte de recordações para os docentes mais velhos (ajuda-os a não esquecer esse "pretérito imperfeito") e, aos docentes mais novos, informa-os de um património histórico, que lhes permite entender de forma crítica as "inovações", que às vezes não passam de repetições requentadas, com novas roupagens terminológicas.

E assim, as histórias da «escola de antigamente» trazem-nos à memória o "plano dos centenários", a fila dos burros; o trabalho infantil que ostracizava os direitos de escolaridade; a régua, esse «complemento educativo da época» (p. 50), a que se agarravavam os «pedagogos musculados» (p. 33); o «método misto: metade pelo livro, metade pela palmatória» (p. 46); a elaboração dos testes e dos rígidos preceitos a seguir: «não deixar qualquer das perguntas para trás, sem resposta» (p. 21); a cábula «disfarçada de folha de rascunho» ou «de tirinha de papel na bainha da saia» (p. 23); as percentagens estabelecidas de reprovações, pois nem todos podiam dar doutores; os manuais escolares de «surrealista narrativas»: o xerife comeu muito xuxu, tau, tau, tau, toca o teu berimbau ou a bola pula e o Lito papa a lula.

Mas este livro só recua ao passado para melhor se compreender a escola do pós-25 de Abril (moderna, democrática?) São muitos os assuntos que o percorrem: as sebentinhas e os livros de fichas que trazem mais lucro às editoras que aprendizagens aos alunos; as cantinas como paradigma da menoridade e desigualdade com que é encarado o primário, onde as crianças que o frequentam até parecem ser "as únicas do sistema sem estômago"; a ligação escola-famílias e «o copo de tinto como mediador intercultural» (p. 62); a indisciplina e os «regulamentos internos de modelo único» (p. 109); os agrupamento de escolas, os contratos de autonomia e as projectocracias; as necessidades educativas especiais e os «especialistas especialmente especializados em educação especial» (p. 118); a avaliação de desempenho, «que nunca passou de mero acto de rotina administrativa» (p. 96); e a corrida de muitos professores aos «supermercados de créditos» para «escutarem formadores e especialistas [e] coleccionarem toneladas de fotocópias» (p. 109).

Algumas «fraternas provocações»

Gosto deste livro também pelo que me afasta dele, no que respeita à teoria pedagógica. E esse é outro mérito do livro: ele funciona como um estímulo, levanta interrogações, provoca o debate e o confronto de opiniões. Em suma, não nos deixa indiferentes. Não sou fã do método que entusiasma e acalenta o viver profissional do autor. A minha independência, no que respeita a movimentos pedagógicos, desde logo me coloca de pé atrás em relação aos seguidores "do método", no caso vertente, o preconizado pelo MEM (2) e seu guru, o saudoso Freinet. Como se pode perfilhar "o método" quando já abandonámos a ideia de "o aluno"? No plural me entendo, ou seja, no valor do ecletismo que cada professor vai construindo, de acordo com os seus padrões de ensino e com os contextos diversificados de trabalho em que opera, de acordo com a sua inestimável experiência, as leituras, os cursos por onde vai passando (muitos, nos dias que correm), as partilhas e trocas profissionais que os encontros, seminários e, em especial, a sala de professores (mais do que no Conselho Escolar) proporcionam.

J.P. tem vindo a ganhar um estatuto assaz curioso à medida que o "poder" o tenta atrair à sua esfera (não esquecer que é membro do CNE como representante dos docentes do ensino básico). E como os tempos lhe correm de feição, arrisca-se mesmo a que lhe institucionalizem o projecto sui generis que erigiu. Aquilo que foi durante anos uma escola "marginal" e "minoritária" vai progressivamente deixando de o ser, quando se transforma em "modelo" das mudanças preconizadas via top-down. Um exemplo: a «Assembleia de Turma», com a recente revisão curricular, já aí está no plano de estudos do 1º ciclo.

Termino com três tópicos que me levantam algumas reservas: (i) Designar de "crianças investigadoras" (p. 107), as que se envolvem em processos de recolha simples de informação, de pesquisa mais que embrionária, não será de um certo pretenciosismo? (ii) Não se está a fazer harakiri profissional quando o professor quase pede desculpa por ensinar (p. 118) e reconhece que afinal os próprios alunos são os mais eficazes nessa tarefa? (iii) Como se pode defender que «a escola portuguesa é ainda pré-rousseauniana» (p. 105) quando os documentos oficiais, das últimas décadas, preconizam a igualdade de oportunidades e a «escola para todos» e vêm cheios de orientações metodológicas que, ao apontarem para a «formação integral do indivíduo», valorizam o trabalho cooperativo, o trabalho de grupo, o primado do colectivo, o aprender com o outro, o professor como moderador e não cessam de apelar às «vivências sociais e culturais dos alunos»!

Sou talvez capaz de imaginar a reacção de J.P. devolvendo-me as questões com uma outra pergunta: «por quanto mais tempo nos iremos manter no precário oscilar entre duas posições estéreis, entre um pessimismo reaccionário e inconsequentes boas-vontades?» (p. 37).

Luís Souta
Instituto Politécnico de Setubal

José Pacheco (2000)
Quando eu for grande quero ir à Primavera e outras histórias.
Porto: Profedições, 133 p.

Notas

(1) Até agora recorríamos sempre às clássicas metáforas, da «agricultura», da «jardinagem», algumas vezes à «bancária» de Paulo Freire, e mais raramente às «barbearias da educação» de Óscar F. Gonçalves (Em mortalidades, 1993). José Pacheco e Ademar Santos, que assina o texto introdutório, renovam o nosso stock com uma mão cheia delas
(2) São muitos os óbices que lhe encontro sendo a "caixinha dos segredos" ou placard do "acho mal" os mais inócuos.

 


  
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Edição:

N.º 99
Ano 10, Fevereiro 2001

Autoria:

Luís Souta
Instituto Politécnico de Setúbal
Luís Souta
Instituto Politécnico de Setúbal

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