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Eça de Queirós e o Brasil

Neste ano em que se comemora o quinto centenário do Achamento do Brasil e o primeiro centenário da morte de Eça de Queirós, tem todo o sentido evocar a simpatia que Eça, a despeito de um alegado período "anti-brasileiro" que lhe reconhecem alguns estudiosos, nutria pelo Brasil e o respeito que, a partir de certa altura, lhe mereceram os "brasileiros" que eram os emigrantes portugueses retornados à terra natal.

Essa simpatia é tanto mais de salientar quanto era notório o seu desamor pela América Latina em geral ("essas regiões selváticas"), alimentado seguramente durante os quase dois anos que passara em Havana, à frente do Consulado, onde, em vez da famigerada magia dos trópicos, como revela em carta para o seu velho amigo, desde a adolescência no Porto, e parceiro nas "Farpas", Ramalho Ortigão, encontrou um "tédio" que estava longe de o compensar da "infecção do Chiado" e do "enxurro do Rossio": "Oh! a estúpida, feia, suja, odiosa, ignóbil cidade!(...)Ah! a miserável, subalterna, rasteira maneira destes espíritos!"

Eça partira contrariado para Cuba, depois de ser preterido, em favor de um colega protegido pelo Ministro, na colocação desejada para o Brasil (na circunstância o Consulado da Baía), a que já estava emocionalmente ligado, decerto, desde a infância, pelas memórias dos avós paternos. Estes tinham vivido longos anos emigrados em Pernambuco e daqui haviam trazido, além do filho que seria o pai do escritor, criadagem crioula, incluindo a ama e madrinha, que até aos cinco anos amparou, em Vila do Conde, o "pobre homem" nascido, acidentalmente, na Póvoa de Varzim, em circunstâncias bastante infelizes: filho sigiloso de uma jovem fidalga que só passados quatro anos casaria com o seu apaixonado "pernambucano", que exercia em Viana do Castelo a mesma profissão de magistrado desempenhada pelo pai no Recife.

Mas se a breve permanência em Havana não inoculara em Eça a magia dos trópicos (ele sempre se reconheceu "profundamente europeu" e, "precisando de política, crítica, corrupção literária, humorismo, estilo, colorido, palheta", quando saía da sua "atmosfera" vivia "inquieto", num "ar" que não era o seu), serviu para o confrontar com o drama dos emigrados, no caso presente os "coolies" oriundos de Macau que chegavam às Antilhas, para trabalho nas plantações, submetidos a tratos de puro esclavagismo - facto que comunicaria em relatório ao Governo de Lisboa, mas não dera outros frutos do que ser incumbido, pelo Ministério, de realizar uma viagem pelos Estados Unidos e Canadá para avaliar as condições em que se processava e vivia a emigração portuguesa.

O que Eça viu na sua passagem por várias cidades norte-americanas, desde Nova Iorque a Ontário, sensibilizou-o profundamente. Quando, nos finais de 1874, é deslocado de Havana para Newcastle, era já um homem impressionado pelas difíceis condições de trabalho do emigrante português em toda a América e ciente do preço que tinha de pagar o "torna-viagem" para, um dia, poder regressar ao país natal, rico e ufano, - ou mais pobre e desesperado do que quando partira em busca do Eldorado.

Esta experiência, que relatara num documento de 112 páginas enviado ao Ministro Andrade Corvo, torná-lo-ia compassivo sempre que se referia aos compatriotas emigrados, designadamente os que haviam demandado o Brasil, em contraposição aos escritores seus contemporâneos, como Júlio Diniz, Camilo Castelo Branco e outros, que glosavam, com ironia ou mordácia, os "brasileiros" que regressavam, definitivamente ou em vilegiatura, impantes de dinheiro e prosápia, com um papagaio no ombro e anéis de ouro nas duas mãos - candidatos a comendas ou a títulos de nobreza por obras de benemerência, com direito a retrato a óleo nas Ordens e Confrarias...

Eça não deixa de incluir na sua galeria de caricaturas sociais alguns extractos desta emigração bem sucedida, como o Inácio Ramires, que "acompanha D. João VI ao Brasil como reposteiro-mor, negoceia em pretos, volta com um baú carregado de peças de ouro que lhe rouba um administrador, antigo frade capuchinho, e morre no seu solar da cornada de um boi"; ou do "Pinho brasileiro, o comendador Pinho", hóspede permanente de uma pensão lisboeta, do qual "ninguém sabe deste Pinho nem a idade, nem a família, nem a terra de província em que nasceu, nem o trabalho que o ocupou no Brasil, nem as origens da sua comenda", mas que "o Estado, segundo corre, o vai criar barão."

Mas não é demolidor, como Camilo, nem mordaz, como também seria Aquilino (este algumas décadas depois, antes de se glosarem os emigrantes que trocaram o Brasil pela França ou Alemanha). Por fim, compassivamente, Eça releva todas as fraquezas do novo-riquismo "brasileiro" ao prefaciar o inusitado romance que o seu amigo e confessadamente "discípulo" Luís de Magalhães publica em 1886, - "O Brazileiro Soares" - em confronto com os estereótipos do emigrante retornado do Brasil. Começando por zurzir os autores que "têm utilizado o brasileiro como a encarnação mais engenhosa da sandice e da materialidade (...) com todos os seus joanetes e todos os seus diamantes, crasso, glutão, manhoso, e revelando placidamente na linguagem mais bronca os sentimentos mais sórdidos", Eça assume-se, frontal e magnanimanente, contra a velha pecha nacional de desmerecer o êxito do próximo:

"Aquele que V. encontra na Guardeira, o Joaquim da Boa Sorte, era excelente, cândido, casto, trabalhador, verdadeiro, magnânimo, de alma forte e amante. E V. muito simplesmente, muito rigorosamente, tendo de o contar como o viu e como o sentiu, comete esta audácia pavorosa, que vai fazer praguejar de cólera os veteranos do Idealismo: dá ao antigo grotesco, ao brasileiro, todas as qualidades de coração que pertenciam exclusivamente, pelo dogma do Romantismo, ao homem pálido, ao homem de poesia e de sonho...

(...) V. portanto, indo buscar o brasileiro a esses limbos da caricatura disforme para o fazer reentrar na natureza, e na partilha comum do bom e do mau humano; revestindo-o, pela verdade observada, de todas as excelências morais de que o despira, sistematicamente, a calúnia romântica; mostrando no antigo Bruto a possível existência do Santo - executou uma verdadeira reabilitação social."

Nesta altura, ainda em Bristol, Eça escrevia na "Gazeta de Notícias" do Rio de Janeiro as suas "Cartas de Inglaterra", iniciadas em 1880, ano em que, na revista "Atlântico", entra em polémica com Pinheiro Chagas, que o acusava de ser um mau patriota por ter considerado, parafraseando Alexandre Herculano e Oliveira Martins, que "nos fins do século passado e começo deste, Portugal se tinha tornado como uma colónia do Brasil" e que "o nosso império do Oriente fora um monumento de ignomínia", para redarguir que os verdadeiros patriotas são aqueles que "põem a pátria acima do interesse, da ambição., da gloríola (...) e tudo o que é seu o dão à pátria: sacrificam-lhe vida, trabalho, saúde, força, o melhor de si mesmos."

Em 1888, já no Consulado de Paris, Eça inicia a "Correspondência de Fradique Mendes", que publica também na "Gazeta" carioca. Nesta aparece uma notável carta dirigida a Eduardo Prado, rico brasileiro, diplomata e escritor, que já pertencia ao círculo dos exilados da eleição de Eça, portugueses e brasileiros, que estacionavam em Londres e Paris. Monarquistas uns, republicanos outros, no gabinete parisiense de Eça se encontraram Eduardo Prado, Rio Branco, Ouro Preto, Ferreira Viana, Oliveira Martins e Lafayette, todos irmanados pela mesma compreensão de que - no dizer de Prado - "a luta é entre a liberdade e a tirania."

Como Fradique Mendes, Eça responde a uma carta de Prado em que este lhe solicita uma opinião sobre o actual Brasil. A pensar porventura no conto "Civilização", que em 1892 sairia na "Gazeta de Notícias",- e talvez já no seu desenvolvimento que levaria à "A Cidade e as Serras" - cada vez mais entediado do cosmopolitismo, Eça, que recria a imagem de um Brasil virginal já ameaçado aquando de uma "viagem" de Fradique em 1869, sentindo-o agora invadido pelo industrialismo americano e pelo francesismo, é um ecologista assumido:

"Só lhe posso comunicar uma impressão de homem que passou e olhou. E a minha impressão é que os Brasileiros, desde o imperador ao trabalhador, andam a desfazer e, portanto, a estragar o Brasil(...)

O que eu queria é que o Brasil, desembaraçado do ouro imoral, e do seu D.João VI, se instalasse nos seus vastos campos, e aí quietamente deixasse que, dentro da sua larga vida rural e sob a inspiração dela, lhe fossem nascendo, com viçosa e pura originalidade, ideias, sentimentos, costumes, uma literatura, uma arte, uma ética, uma filosofia, toda uma civilização harmónica e própria, só do Brasil, sem nada dever aos livros, aos hábitos importados da Europa. O que eu queria (e o que constituiria uma força útil no universo) era um Brasil natural, espontâneo, genuíno, um Brasil nacional, brasileiro, e não esse Brasil que eu vi, feito com velhos pedaços da Europa, levados pelo paquete e arrumados à pressa, como panos de feira, entre uma Natureza incongénere, que lhes faz ressaltar mais o bolor e as nódoas(...)

Mas no dia ditoso em que o Brasil, por um esforço heróico, se decidir a ser brasileiro, a ser do Novo Mundo - haverá no mundo uma grande nação. Os homens têm inteligência; as mulheres têm beleza - e ambos a mais bela, a melhor das qualidades: a bondade. Ora uma nação que tem a bondade, a inteligência, a beleza (e café, nessas proporções sublimes) pode contar com um soberbo futuro histórico, desde que se convença que mais vale ser um lavrador original, do que um doutor mal traduzido do francês."

Em Julho de 1898 (dois anos antes da sua morte), Eça ainda prestava a Eduardo Prado (que terá inspirado a figura do Jacinto de "A Cidade e as Serras") e ao Brasil, em artigo publicado na "Revista Moderna", editada em Paris, um emocionado testemunho do seu grande afecto: "... sinto a dupla felicidade de louvar, através de homem que tanto prezo, terra que tanto amo!"

Perante isto, não será talvez excessivo acrescentar ao tanto que já se disse sobre Eça de Queirós, sem ferir o seu proverbial cosmopolitismo, que ele foi um homem-entre-três-mundos, mesmo que introjectados contraditoriamente: a cidade, a serra e o Brasil.

Leonel Cosme
escritor, investigador


Bibliografia:

Eça de Queirós: Cartas e Outros escritos, Prosas Bárbaras, Notas Contemporâneas (Ed. Livros do Brasil, Lisboa, s/d) e A Emigração como Força Civilizadora (Ed. Perspectivas e realidades, Lisboa, 1979).

João Gaspar Simões: Eça de Queiroz, o Homem e o Artista (Livros do brasil, Lisboa, 1945) e Eça de Queiroz (Ed.Arcádia, Lisboa, s/d).

Luiz de Magalhães: O Brazileiro Soares (Ed.Livraria Chardron, Porto, 1886).


  
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Edição:

N.º 94
Ano 9, Setembro 2000

Autoria:

Leonel Cosme
Escritor - Jornalista, Porto
Leonel Cosme
Escritor - Jornalista, Porto

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