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Perguntar Não Ofende...

É compreensível que, em ano de centenário, as novas caravelas ministeriais naveguem à descoberta do Secundário. Mas partir-se-á do princípio de que está consumado o achamento do Básico? As tímidas propostas de reorganização curricular do Ensino Básico, recentemente submetidas à discussão pública, assim poderão fazer crer. Mas, se estamos habituados a ler preâmbulos que são obras primas da literatura (ou não estivéssemos no país do Camões, do Saramago e da Sophia), também já nos habituámos à pobreza das estratégias e à ausência de dispositivos de acompanhamento e avaliação das ditas "inovações".
Para lembrar que o Básico continua por cumprir e para que não voltemos a desenhar novos mapas sobre velhos palimpsestos, deixar-vos-ei com algumas perguntas sobre a identidade da Educação Básica que ainda temos. Que cada leitor lhes responda como lhe aprouver.

A primeira das perguntas poderá ser: a Educação Básica existe? Teremos uma educação básica caracterizada pela complementaridade e sequencialidade?

A compartimentação estanque entre ciclos é uma manifestação absurda dos cânones do paradigma mecanicista e origina rupturas traumáticas nos alunos, que não transitam entre ciclos de um mesmo ensino básico mas entre comunidades escolares autistas. Hutmacher afirmou que ao entrarem no ciclo seguinte, "os alunos experimentam uma espécie de regressão quanto ao seu empenhamento e participação nas actividades de pesquisa, de descoberta e de construção de saberes." A sequencialidade regressiva, por seu turno, permite que o Secundário determine e perverta os objectivos de um ensino básico (que deveria ser terminal e autónomo) e contribui para a elitização académica e o insucesso escolar assumido como mecanismo de discriminação e exclusão social.
Mas, já em 1977, num encontro de professores, se afirmava: "estamos conscientes de que, para além do facto de se ter alterado a terminologia da escolaridade obrigatória, não mudou na mentalidade da maior parte dos colegas". Mas, se os professores são de opinião de que a "articulação é pertinente", "a articulação deve existir", "é necessária", "fundamental para a unidade da educação básica"... terão modificado as práticas de gestão curricular e a organização das escolas, conferindo aos três ciclos da Educação Básica a sua vocação de complementaridade e sequencialidade?
Quanto tempo mais vai durar o drama da justaposição formal entre ciclos e da dependência de uma matriz curricular licealizante? Quanto tempo mais vamos submeter os nossos alunos a sucessivos desenraizamentos culturais em idades tão vulneráveis? Será possível conciliar a ideia da articulação entre ciclos com a segmentação interna de cada ciclo em anos de escolaridade? Será possível pensar a articulação entre ciclos, se nem a articulação entre anos de escolaridade está assegurada? E porque há ciclos? Alguém saberá explicar?
É elevado o nível de absentismo e de abandono no Básico. Em cada ano lectivo, trinta mil alunos atingem o limite de idade de frequência sem terem completado o nono ano. Assim sendo... se as práticas de avaliação dos alunos (apesar de e contra as intenções dos despachos) não se alteraram, onde encontraremos hoje uma avaliação efectivamente formativa? Será possível conciliá-la com a aplicação de testes iguais e simultâneos para todos os alunos? Porque perdem os professores o seu precioso tempo a aplicar e a corrigir testes? Porque razão as escolas desperdiçam tanto e tão precioso tempo no adestramento dos alunos em provas-modelo? Porque se perpetuam rituais de classificação dos alunos, se não há nas escolas uma cultura de avaliação que permita obter da avaliação formativa e sumativa indicadores seguros de aprendizagem?
Ouvimos, amiúde, dizer "transitou com duas negas" ou "passou manco a inglês". De que nos serve ter uma escolaridade básica de nove anos, se é garantido o acesso mas não é garantido o sucesso a todos os alunos? E para que servem as ditas provas globais? Avaliam alguma coisa? O quê?
Muito antes de serem definidos os princípios da actual educação básica, um outro normativo rezava assim: "as modalidades organizativas deverão ser diversificadas (...), deve ser combatida a tendência para um ensino meramente livresco" (...) e "atender-se à dupla perspectiva da educação do indivíduo e do cidadão." Não sendo novo o discurso, como se pode ver pela amostra, será hoje possível conciliar da articulação entre ciclos com a divisão dos alunos por turmas, ou com o "dar aulas" dirigidas a míticas turmas homogéneas, ensinando todos como se fossem um só? Até quando insistiremos na elaboração de planos de aula feitos pelo professor para um inexistente aluno médio?
No mês de Março deste ano, participei num encontro de professores. No decurso de uma das intervenções, um especialista apresentou num acetato os princípios gerais da aprendizagem preconizados no decreto da reforma curricular. Fiquei perplexo perante a reacção das muitas centenas de professores presentes no encontro: subitamente e com grande frenesim, transcreviam o conteúdo do acetato como se de uma prescrição normativa recente se tratasse. O caso não é para menos...
Em consonância com o Decreto-Lei n.º 286/89, onde encontraremos, hoje, nas escolas, indicadores seguros da consecução de "aprendizagens significativas, integradoras, activas, socializadoras e diversificadas" que a reforma curricular prescrevia? Porque se mantém no básico a sobrevalorização das áreas nobres (Português, Matemática) em detrimento de outras, que ficam reduzidas a um conjunto insignificante e desarticulado? Porque se reduz o número de objectivos de um programa a um conjunto de aquisições nucleares e não se cuida de organizar a escola de modo a assegurar a todos os alunos o acesso e o sucesso na escolaridade básica e obrigatória? Porque é que a responsabilidade do insucesso é sempre do aluno, do alcoolismo, da droga, da falta de hábitos de leitura dos pais, ou do analfabetismo dos avós?
A área-escola foi considerada como "o pulmão da reforma curricular". Um estranho cancro a matou precocemente. E alguém cuidou de saber as razões do cancro nesse pulmão da reforma?
Se (já em 1987!) o grupo de trabalho encarregado da redacção da proposta dos "Novos Planos Curriculares" denunciava a "falta de investimento na formação de docentes na área de desenvolvimento curricular", o que mudou volvida uma dúzia de anos? Mudou a formação inicial dos professores? Mudou a formação não-inicial?
E se nos dispuséssemos a desarmar o nó górdio da formação?

José Pacheco
Escola da Ponte / Vila das Aves


  
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Edição:

N.º 91
Ano 9, Maio 2000

Autoria:

José Pacheco
Escola da Ponte, Vila das Aves
José Pacheco
Escola da Ponte, Vila das Aves

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