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Nos 500 anos do Achamento e da Fundação do Brasil, Celebrar o Futuro

Em tempo de discursos oficiais ou oficiosos comemorativos dos 500 anos do Achamento (para os portugueses) e da Fundação (para os brasileiros) do Brasil, mais marcados pela Economia que pela História, sente-se, em Portugal, que, a nível de Estados, existe a preocupação comum - talvez a primeira, e agora sem artifícios diplomáticos, que ocorre desde que o Brasil deixou de ser colónia, e já lá vão quase 180 anos - de concertarem esforços no mesmo sentido: na Europa, a CEE; na América, o Mercosul.
Ouvindo-se os chefes dos Governos de ambos os países dir-se-á que não existem mais reservas mentais (há quem lhes chame contencioso) nas relações entre os dois Estados e que, quanto a Portugal, tendo chegado o tempo de existirmos e nos vermos como somos, como disse Eduardo Lourenço, nem Portugal se considera mais um credor moral pelo que legou à colónia do Brasil (grandeza e unidade territorial, uma língua e uma religião unificadoras), nem o Brasil tributário dum legado que começou por servir os interesses do colonizador.
De facto, não existe contencioso algum. Desde que, em 1825, a troco do reconhecimento da independência e da garantia de que o Brasil não alimentaria pretensões sobre as colónias portuguesas de África (em 1822/23 emergira em Angola uma tentativa de confederação apoiada num "partido brasileiro"); e desde que, com o 25 de Abril, se apagaram da memória diplomática os ressentimentos salazaristas contra as inflexões da realista política externa do Brasil, que Gibson Barbosa assumiu frontalmente, quanto ao apoio tradicional à irrealista política colonial portuguesa - não havendo mais conflito, não poderia haver contencioso.
Em boa verdade não se poderá chamar contencioso aos pruridos intelectuais remanescentes das típicas e epocais incompatibilidades que resultam, em geral, do corte umbilical do colonizador-colonizado, nem ao fundamentalismo nefelibático de quem perpetua fábulas hoje inconsequentes, como a de manter em aberto, na conta-corrente da história da conquista e da colonização, as dívidas imprescritíveis pelo desbastamento das florestas de pau-brasil, do ouro extraído, dos índios mortos e desapossados das suas terras de origem ou dos negros levados de África que, em regime de escravidão, ajudaram a formar o Brasil como é hoje.
A manter-se este contencioso (mas quem teria o direito de o subscrever, hoje, se os devedores a índios e africanos também já eram brasileiros de facto: os descendentes de Diogo Álvares ( na Baía), Jerónimo de Albuquerque (em Pernambuco), João Ramalho (em São Paulo) ou de Brás Cubas (em Santos), entre muitos outros sertanejos e bandeirantes), quem, se quisesse seguir o exemplo do actual Papa, deveria pedir perdão pelas barbaridades praticadas, na melhor das consciências, com a cobertura das bulas dos Papas e das ordenações dos Reis? E quem seria ressarcido pelas pilhagens de terras, pelos sangues vertidos, por todas as formas praticadas de violência, tortura e morte, durante séculos?
Parece, pois, explicado que nas comemorações dos 500 anos que tal história já soma, quando elas respeitem a Portugal e ao Brasil, em parceria, se fale mais do Futuro que do Passado - mais daquilo que os poderá reunir do que daquilo que os separou.
Pela História, esta não se repetirá; pela Moral, as vítimas não têm voz; pela Justiça, as dívidas prescreveram.
Pudesse, ao menos, num futuro próximo, ser diferente a História, a Moral e a Justiça, em Portugal, no Brasil e em toda a parte, sem repetição de massacres nas florestas do Amazonas, da Colômbia, do México, do Ruanda, do Zaire, de Angola, do Kosovo ou da Tchetchénia.
Por agora, fiquem-se os portugueses congratulados por, 500 anos depois das primeiras feridas, mas também dos primeiros afectos que marcaram os primeiros encontros dos homens de Pedro Álvares Cabral com os nativos das terras de Vera Cruz, poderem - nas palavras de Miguel Torga, em 1954, quando voltou ao Brasil para um reencontro com cenários da sua adolescência - "concentrar a atenção neste ser uno e diverso, local e universal, cioso e pródigo, inquieto como um adolescente e atento como um adulto, que é o brasileiro - europeu tropical a inaugurar o futuro, português policromado que melhorou a alma e a fantasia, e tem oito milhões de quilómetros quadrados de extensão humana."

Leonel Cosme
escritor, investigador /Gondomar


  
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Edição:

N.º 90
Ano 9, Março 2000

Autoria:

Leonel Cosme
Escritor - Jornalista, Porto
Leonel Cosme
Escritor - Jornalista, Porto

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