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"Sobre a Noite e a Vida"

pelas palavras de Orlando de Carvalho
que partiu há pouco, antes de Abril*


(...) "a Grândola na boca de patifes e pedreiros" (...) Sim, isto é do meu primeiro e último livro de poemas, "Sobre a Noite e a Vida", que espero não seja o último. É o mais recente... a nove anos de distância... Realmente, esse poema, embora subordinado à ideia, como diria o Eco, de uma obra aberta, procurava ter um sentido, isto é, uma certa experiência do que foi essa passagem, extremamente importante e dramática, do antigo regime para o novo regime. A das esperanças acumuladas, a dos desejos que se procuravam realizar e que agora, a vinte anos de distância, aparecem discutidos e contestados como se o 25 de Abril não tivesse autenticidade e quase pudesse ser posto em causa... Como se fosse, como dizia noutro dia um seu colega jornalista (sobretudo jornalista, pois não creio que seja grande coisa mais), uma espécie de escarlatina. Ele não soube dizer uma doença infantil, poderia ter dito, para repetir a fórmula de Lenine, mas disse escarlatina. O 25 de Abril foi uma escarlatina... Ora o povo português não é propriamente tão jovem que tenha doenças infantis.
A Revolução era jovem e, portanto, teve as suas doenças de infância, mas o 25 de Abril foi um acto extremamente importante e é perfeitamente inútil que alguém, do ponto de vista histórico, tente diminuir o seu relevo, na vida portuguesa deste século e até na vida portuguesa em geral. O 25 de Abril foi um acto extremamente importante, foi um acto corajoso, foi um acto sincero mas é claro que o curso dos acontecimentos, que nós, previsível mas não desejavelmente, não conseguimos controlar, gerou muitas coisas que serão objecto natural de controvérsia...
Como todas as revoluções, esta teve uma fase inicial, uma fase que diríamos épica, teve uma subida, teve depois, inevitavelmente, uma fase de transição, o que não exclui alguma traição... É próprio das revoluções serem traídas, não é preciso pensar na Revolução Francesa para falarmos de revolução traída... Houve uma parte do 25 de Abril que foi traída, mas alguma coisa ficou, extremamente importante, e que é precisamente este clima de liberdade política institucionalizada.
(...) Uma grande conquista. E diríamos que é uma tão grande conquista que foi praticamente ela que juntou os espíritos e as consciências, naquela época, contra todo o regime existente. Não existia propriamente uma unidade ideológica, uma unidade de pensamento e uma unidade de perspectivas, mas a luta contra um regime opressivo, um regime de ditadura. A conquista da liberdade política era o objectivo número um da Revolução do 25 de Abril e esse está conseguido, parece, e esperemos que irreversivelmente conseguido, embora não devamos descuidar toda a pedagogia necessária para que ele se mantenha, porque estas coisas não se mantêm necessariamente. Não há um dinamismo histórica de irreversibilidade absoluta, tudo depende da vontade dos homens e é preciso que as pessoas saibam o quão precioso significou a conquista da liberdade política e da democracia política.
Claro que quanto aos outros aspectos, da democracia económica, da democracia social, da democracia cultural, ainda estamos muito longe de os ter conseguido e houve retrocessos graves. Não porque tudo aquilo que se construiu, nesse sentido, tivesse sido impecável, e não fosse susceptível de crítica, porque foi... Hoje mais facilmente vemos que sim... Houve, porventura, um predomínio, como dizemos em Filosofia, uma sobredeterminação do ideológico sobre o prático, sobre o pedagógico que foi, em muitos aspectos, nocivo. Sacrificou-se a certos aspectos ideológicos a pedagogia necessária para a realização desses objcetivos...
Em primeiro lugar não se criou uma consciência social...Houve focus fatuus, toda a gente se lembra, quer no ramo das Forças Armadas, quer no ramo dos civis, houve muitos movimentos, diriamos extremistas, querendo não criar uma consciência cívica, mas implantá-la, à tort et à travers, e isso foi negativo... Porque era preciso conquistar uma consciência de que as liberdades cívicas precisam de uma componente social, sob pena de se tornarem ineficazes e, sobretudo, da população não sentir as vantagens da própria liberdade política... Ao nível dos absolutamente carecidos é evidente que a escolha que a liberdade política oferece é nula. Se não for acompanhada de vantagens mínimas, no plano social, a liberdade política torna-se também num flatus vocis...
Ora isso implicava uma transformação de mentalidades, uma escola contínua, suficientemente aberta para abranger, pelo menos, todas as perspectivas empenhadas na transformação, fossem quais fossem as suas orientações ideológicas, para etapas concretas perfeitamente definidadas e calculadas. Isso não se fez, e como isso não se fez, as conquistas que se conseguiram foram, em grande parte, efémeras, não tiveram subsistência, cairam à mais pequenas controvérsia política, à mais pequena mudança de governo, o que significa que elas não estavam estabilizadas e que as massas populares não as sentiam com suas. Isso foi um erro grave...
Diríamos que é a principal razão da falência das transformações sociais. Nós, porventura levados por um radicalismo extremo, não tivemos o cálculo indispensável a um certo evolucionismo mais natural, mais enraizado, cujo dinamismo fosse mais permanente... A falência das transformações sociais foi um dos aspectos graves, até porque o país foi confrontado com uma opção política fundamental, escolher a Europa ou estar contra a Europa, e isto implicou vários constrangiments na própria vida interna de que, ainda hoje, não estamos completamente libertos. Em face do traumatismo que foi a entrada na Europa, as frágeis construções que se iam fazendo ao nível social, não apoiadas numa consciência colectiva enraizada, tinham de ser efêmeras e tinham que desaparecer a curto prazo, como desapareceram. Foi isso que aconteceu no plano agrário, no plano assistencial, no plano escolar, em que nós estamos a sofrer, ainda hoje, as consequências de um radicalismo, de um domínio da chamada pedagogia não directiva, que conduziu à falência de valores educacionais mínimos, na ideia de que era possível educar sem qualquer espécie de constrangimento, pura e simplesmente numa espécie de não educação...
(... ) O que faz com que o ensino médio e o ensino superior sejam hoje confrontados com uma falta de perspectivas e de bases extremamente grave. E que estejamos a lançar para o mercado ondas e ondas de licenciados que caminham para uma espécie de proletariado intelectual e, ainda mais grave, são um proletariado semi-analfabeto, tanto no aspecto, técnico e no aspecto cultural, como no aspecto cívico... Creio que esta foi a maior falência da experiência revolucionária. Nem se pode dizer que ficou a meio, pura e simplesmente não se fez... A não ser ao nível da penetração... É indiscutível que as massas estão estatisticamente muito mais escolarizadas, estão muito mais nas escolas, o que não significa que resulte daí uma escolarização autêntica" (...)


* Orlando de Carvalho, catedrático da Universidade de Coimbra, intelectual de referência para a Democracia Portuguesa, condecorado com a Ordem da Liberdade, foi o entrevistado de "a Página" de Abril de 1994, nos 20 anos da Revolução. Recordamos hoje parte dessa entrevista com sentida saudade pela recente ausência.


  
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Edição:

N.º 90
Ano 9, Março 2000

Autoria:

Orlando de Carvalho
Professor e Investigador. Universidade de Coimbra.
Orlando de Carvalho
Professor e Investigador. Universidade de Coimbra.

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