Wusiwana i ku yendza ka mamana (A verdadeira desgraça é a ausência da mãe) provérbio changana, Ribeiro, 1989:120
O texto proverbial, de norte a sul de Moçambique, nas várias comunidades linguísticas, reflecte, ? embora de modo quase sempre enviesado como é típico de qualquer texto literário, ? uma sensibilidade extremamente fina face ao órfão. Constitui um ser que incomoda ? julgámos que no sentido positivo do termo ? os produtores individuais e colectivos dessas "vozes de sabedoria" (e por que não, também, letras de sabedoria?!), talvez, porque, ao longo de milhares de anos, só a guerra e as migrações ? referimo-nos às antiquíssimas e sempiternas guerras e diásporas comuns à maioria dos povos do mundo ? tenham contrabalançado, se bem que raramente, com um pouco de sossego do guerreiro, sempre esporádico e furtivo, assegurador dos prazeres elementares, mínimos, que a alimentação e a perpetuação da espécie comportam. Os custos da criação dos enteados ou filhos alheios são enormes ¾ "Limpar o cu (feito por) de outrem, a merda não acaba: [é] melhor o dono [limpá-lo] (A educação dos filhos feita por pessoas estranhas, nunca é bem feita.)" [Otagula wa mukwo, mariya kanmala: mbwenye wa mwinya.] (Chuabo, Festi, 1980:165) ¾ e para o órfão, de facto ou potencial, "A verdadeira desgraça é a ausência da mãe." [Wusiwana i ku yendza ka mamana.]. (Changana, Ribeiro, 1989:120). O acervo proverbial moçambicano é rico nos conselhos, de nível intimidativo/prescritivo, que dá aos filhos não-órfãos, talvez porque a sua situação é, deveras, privilegiada em relação aos órfãos, para os quais estão reservados provérbios descrevendo a situação lastimável dos mesmos ¾ "Na cabeça do órfão não faltam tinhas." [M'muruni mwa munakwadhunin kamuntua ekonya.] (Chuabo, Festi, 1980:73) ¾ e formulando desejos de respeito, de reafirmação da protecção divina/dos antepassados: "Não se deve insultar o órfão." [Ekwaduni kenrwaniwa.] (Lomué, Festi, s. d.:66/L); "Órfão não é feito engolir (troçado). (Deve-se respeitar o órfão)" [Mwanampawi kanimedhiwa.] (Chuabo, Festi, 1980:109); "Órfão [é] alma (do antepassado)." [Mwanampawi kankwa: onula muru.] (Chuabo, Festi, 1980:110); "Órfão crescer Deus (quem o faz crescer é Deus)." [Mwanampawi wunuwa Mulugu (dinimunuwiha Mulugu).] (Chuabo, Festi, 1980:110); "Órfão é protegido por Deus." [Mwanakwaduni onkoyiwa Mulugu.] (Lomué, Festi, s. d.:[55]). A fome é, contudo, o flagelo mais ventilado, salientando-se o apetite insaciável do órfão, permanentemente sedento e faminto, para quem até o local de dormida passa a ser irrelevante face à fome e à sede: "Ao órfão dá-se comida, quanto ao dormir ele se arranja." [Kammenyedhe mwanakwadhuni, vogona ononavo mwinya.] (Chuabo, Valer; Festi, 1995:190); "Órfão não se sacia completamente." [Mwanakwaduni kanvona amalela.] (Lomué, Festi, s. d.:[55]); "Mel de órfãos não fica cheio prato." [Enwi ya anapawi kindhana ebale.] (Chuabo, Festi, 1980:41); "A concha (de casca de abóbora) do órfão acaba a água." [Ndiko ia muanamphaaui inamala madzi.] (Sena, Bertulli, s. d. (1960?): [45] ). O colector deste último provérbio, Cesare Bertulli, ao comentar o sentido do mesmo, traça-nos, deste maneira, o desditoso fadário da criança órfã: "Evidentemente o dizer comum quer fazer notar a triste condição do órfão que deve acarretar com todas as culpas que lhe queiram atribuir, e a dificuldade da sua educação, porque, embora sempre adoptado pela família clânica, ninguém o considera, de facto, como seu próprio filho." (Bertulli, s. d. (1960?): [45] ) Talvez, por isso, a dificuldade inerente à criação e educação do órfão é acentuada ¾ "Educar filho ficado (órfão), suportar. (É difícil educar o filho de outrem.)" [Omulela mwana ohala, ovilela.] (Chuabo, Festi, 1980:153); "Criar órfão sem se amostrar aborrecido." [Omulela mwanakwaduni ohinyonyeya.] (Lomué, Festi, s. d.:[73]); "Órfão, pato, custa depenar." [Mwanampawi nimbatha: orutxa okupurha.] (Chuabo, Festi, 1987:58); ¾ não deixando, contudo, de se criar uma expectativa optimista face aos objectivos educacionais: "Se cuidares do órfão, oferecendo sacrifício, fica perfeito." [Wamukoya mwanampawi, wakuttha mukuttho onomyala.] (Chuabo, Festi, 1980:188). Nem os remédios tradicionais, imprescindíveis ao crescimento e saúde de qualquer criança, o seu segundo alimento, e por isso, também, fonte de cuidados paternos ¾ "Filho que não tomou banho com remédio não acorda (não amadurece)." [Mwana ohahabiwe murobwe, kanrurumuwa (Kanwarala)] (Chuabo, Festi, 1980:111); "Pessoa que não anda, andou por causa do remédio do filho dele." [Mutthu ohedda, enddenle murobwe wamwane.] (Chuabo, Festi, 1980:100) ¾ dizíamos, nem esses medicamentos fazem parte de qualquer receituário que tenha como destinatários os órfãos, nomeadamente os "filhos ilegítimos": "Os filhos do adultério não recebem remédio." [Ana a dila kansasanyeliwa murobwe.] ("Etakawne", Ribeiro e Brentari, 1971:126). A ligação umbilical, diríamos "mamária", mãe-filho, é imprescindível à sobrevivência e ao crescimento físico e psicológico da criança, comportando o seu corte reacções instintivas a-naturais - ¾ "Morreu a galinha, apodreceram os ovos. (Crianças sem mãe, tudo são órfãos.)" [Ku fa ka huku, matandza ma bolile.] (Changana, Ribeiro, 1989:27); "Se faltares mãe tua [se faltar a tua mãe], mamas teta de cão, dizendo "É mãe". [Watua mayo, onomwa nibele na mwanabwa, wiraga "Di m'ma".] (Chuabo, Festi, 1980:192) ¾ forçando , por isso mesmo, o órfão a um eterno deambular: "O órfão acaba o lugar." [Muana uakufuia anamala mbuto.] (Sena, Bertulli, s. d.: [39]). Como Sísifo, o órfão está eternamente condenado a viver e a chorar a sua desdita, porque nem a morte se digna adoptá-lo: "Órfão não morre: trabalhos dele sofrimento." [Mwanampawi kankwa: mabasa ae goy.] (Chuabo, Festi, 1980:109); "Órfão, perdiz: chora esgaravatando sem parar." [Mwanampawi ekwali: enunla etolelagavi.] (Chuabo, Festi, 1980:109). Quão longe estamos ¾ sobeja-nos o "sonho" ¾ do universo infantil tão "engenhosamente" construído pelo poeta moçambicano:
Ocorre-me agora a pupila minúscula de uma criança. A sua engenharia desde o corpo na guerreira pequenez ao dedo provador da boca. Ocorre-me esta criança este monge da franqueza em seu templo de inocência. Amo-a. Vivo-a. Voar é poder amar uma criança. Sonhar-lhe o peso no colo, as mãos acariciantes sobre a palma da alma. Voar é tardar a boca na rosa do rosto de uma criança. Pronunciar-lhe a ternura, a seda fresca e pura da sua infância. Voar é adormecer o homem na mão sonhadora de uma criança. ( Eduardo White ,1992:28)
Américo Correia de Oliveira Escola Superior de Educação de Leiria, oliveira@esel.iplei.pt Os meus agradecimentos ao Júlio Ribeiro e ao Dr. António Sopa do Arquivo Histórico de Moçambique, sem a ajuda dos quais me teria sido impossível aceder a uma parte considerável do acervo proverbial moçambicano. Obras citadas
- BERTULLI, Cesare (s. d. [1960?]) Provérbios ou Sabedoria Chisena, inédito, dactilografado, não paginado. (organização de Júlio Ribeiro), Beira.
- FESTI, Lodovico M. (1987) . Njai Nali Mulima. Fragmentos de literatura oral etxuabo. Quelimane: edição do autor (?).
- FESTI, Lodovico M. (1980) . Wineliwa kunmala. Iniciação não acaba. Fragmentos da literatura oral recolhidos na Zambézia Central., inédito, dactilografado, Quelimane.
- FESTI, Lodovico (s. d.) Misibe dha Alomwe. Dizeres comuns dos Lómuès., inédito, dactilografado, não paginado (organização de Júlio Ribeiro).Quelimane: Apostolado pelo Livro e pela Liturgia.
- RIBEIRO, Armando (1989) . 601 provérbios changanas, 2.ª edição. Lisboa: Edição do autor.
- RIBEIRO, Júlio; BRENTARI, Giovanni B.(1971:114-157) . "Fragmentos da literatura oral", in Da vida africana à vida religiosa no duplo aspecto de continuidade e descontinuidade. Quelimane (Moçambique).
- White, Eduardo (1992:28) . Poemas de voar e da engenharia de ser ave. Lisboa: Caminho da Poesia.
- VALER, Vito; FESTI, Lodovico (1995) . Dicionário Etxuwabo-Português. Trento: Edit. Centro Missioni Cappucini.
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