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De uma Professora Descrente

Judite, a professora de Português de Ana, acabara de fazer 52 anos. Efectiva naquela escola há pouco mais de uma década, vira-a praticamente nascer. Nunca assumira quaisquer funções directivas, mas empenhara-se activamente nalguns dos projectos que aí se sonharam e se foram desenvolvendo com mais ou menos percalços. Era, neste contexto, uma das directoras de turma mais consideradas, apesar do cansaço que a assolava, o qual era certamente proporcional à desilusão progressiva que a ia minando como docente e como mulher. Nesse ano leccionava em todas turmas do 11º ano cujos alunos frequentavam Português B. Era a primeira vez que trabalhava com a maioria daqueles jovens, ao contrário dos colegas que eram, na generalidade, seus conhecidos. Exceptuando a Helena, uma jovem professora de Inglês e a Berta, docente de Filosofia, já tinha partilhado com a maioria deles a mesma mesa noutros conselhos de turma. Apesar de manter relações cordiais com todos, não incluía nenhum no seu círculo de amigos mais restrito.
Judite correspondia a um tipo de professor que, apesar de não se caracterizar por uma militância pedagógica activa e assumida, estava longe de ser considerada uma pessoa indiferente aos desafios e às exigências que se lhe foram colocando, ao longo da vida, como professora do que hoje designamos por Ensino Secundário. Tendo começado a leccionar nos anos 70 no que era, então, um dos dois liceus femininos da cidade do Porto, viveu noutros contextos educativos as peripécias das transformações que o 25 de Abril veio provocar no país e, concomitantemente, nas escolas e no sistema educativo português. Embora reconhecesse, e defendesse como um objectivo prioritário, a necessidade da escola contribuir para a promoção cultural e cívica dos portugueses não encontrou na experiência do Unificado, e na implementação dos outros projectos que se lhe seguiram, as respostas que se adequavam à concretização desse objectivo. Por isso, se mostrava desconfiada relativamente aos efeitos do alargamento, para nove anos, da escolaridade obrigatória, era absolutamente céptica relativamente ao êxito do movimento de massificação do Secundário por razões que ela afirmava terem mais a ver com uma constatação objectiva dos factos do que com qualquer tipo de elitismo académico que, segundo as suas próprias palavras, não perfilhava nem tão pouco estimulava. Limitava-se a verificar, por um lado, as condições de vida, o capital cultural e as expectativas de alguns dos seus alunos e a constatar, por outro, a existência de programas do tipo academicista e enciclopédico, o peso das provas globais e dos exames e as condições de trabalho que as escolas disponibilizavam, para concluir que o Ensino Secundário não se distanciava tanto do clima académico e das funções atribuídas aos velhos liceus como alguns queriam fazer crer. Aquilo a que alguns chamavam os cursos tecnológicos também não parecia constituir uma alternativa suficientemente credível, pelo menos a julgar pelo que via e ouvia. Quanto às escolas profissionais não tinha qualquer opinião sobre as mesmas, por desconhecer o que aí se fazia. Que servissem para alguma coisa era o melhor que lhes desejava, já que o que hoje se ensinava e se aprendia nas escolas secundárias parecia-lhe ter cada vez menos sentido. Por todo este conjunto de razões é que a questão da massificação ou da elitização do Ensino Secundário lhe soava como uma falsa questão. A inadequação dos programas e a pouca utilidade académica e social da formação que a escolas desse nível de ensino proporcionavam aos jovens, constituíam, isso sim, na sua opinião, os principais problemas a enfrentar por todos aqueles que tinham alguma coisa ver com o assunto.
Por isso é que tinha ficado tão penalizada com o episódio em que se zangou com a Ana, uma das suas alunas mais interessantes, que, neste ano lectivo, frequentava uma das turmas do 11º ano. Ainda se lembra do rubor na face da pequena quando lhe respondeu, abruptamente, que a achava muita nova para opinar sobre o que se deveria, ou não, aprender naquela disciplina. A miúda apenas se tinha limitado a perguntar porque é que em vez da poesia do Jerónimo Baía não liam e discutiam antes a poesia da Sophia de Mello Breyner. Se o tom levemente arrogante com que a questão havia sido formulada, explica, em parte, a sua atitude, não chegava contudo, e de modo algum, para justificar a sua reacção. Em primeiro lugar porque, independentemente da legitimidade ou da falta de legitimidade de um aluno para questionar os conteúdos programáticos, a questão fazia todo o sentido. Em segundo lugar porque quando uma aluna coloca uma questão desse tipo não deveria merecer uma resposta crispada. Em terceiro lugar porque ela própria havia colocado questões idênticas noutras situações em que se confrontara com o desinteresse de muitos dos seus alunos e os parcos resultados obtidos com todos os outros, aqueles cujas notas nos finais dos períodos lhes permitia serem considerados como estudantes bem sucedidos. Ela própria, reconhece, se era uma leitora ávida e atenta, devia-o mais à educação familiar que tivera do que à sua educação escolar. E, hoje, apesar de todas as mudanças e das transformações ocorridas, pressente que, desse ponto de vista, a escola mudou bastante menos do que seria desejável.
Para que servia, afinal, um Ensino Secundário onde se continuavam a desperdiçar tantas vidas e, quem sabe, quantos talentos ? Neste jogo de meias tintas, onde muitas vezes alguns fingiam que aprendiam enquanto outros faziam de conta que ensinavam, o que lhe restava fazer ?
Para esta pergunta, não tinha nem as respostas optimistas de Helena nem conseguia, tão pouco, manifestar a indiferença de outros colegas face a esta e a outras questões. Tinha consciência, apenas, da desilusão que a apoquentava perante um quotidiano escolar que era, por vezes, excessivamente vazio quer para si, como professora, quer para os seus alunos, fossem estes bem ou mal sucedidos.
De facto, frustrava-a constatar que se continuava a exigir, a esses alunos, análises fónicas, morfossintácticas e semânticas de sonetos barrocos, cujo sentido lhes era, compreensivelmente, tão estranho como os mapas conceptuais que, repletos de termos técnicos arrevesados, vão enxameando os livros na vã tentativa de lhes explicar o inexplicável. Perguntava-se mesmo como é que isso era possível, sabendo que a maioria, senão a totalidade, desses alunos continuavam a associar poesia a versos e versos a rimas. Não conseguia compreender, também, que se continuasse a circunscrever os programas de Português, A ou B, a um programa, mais ou menos explícito, de História da Literatura. Tinha consciência da inutilidade que era exigir à maioria dos alunos que aprendessem a caracterizar uma isocronia ou a reconhecer uma analepse e que compreendessem uma acção trágica através da identificação da hybris, do pathos, da agnórise, do clímax e da catarse, porque sabia que a educação de um leitor interessado e capaz dispensava este género de tarefas absurdas. Acreditava que iniciar e estimular a leitura de obras escritas em língua portuguesa poderia constituir uma finalidade interessante e pertinente do Ensino Secundário, se assim se contribuísse para que os jovens aprendessem a interpelar, por essa via, o mundo onde vivem, aprendendo assim a interpelar-se e a interpelar os outros. Acreditava, igualmente, que em consonância com este investimento era possível e desejável ensinar os alunos a construir, a aperfeiçoar e a reflectir sobre os próprios textos, de forma a poderem alargar os dispositivos que dispõem para comunicar com os outros e intervir, redescobrindo-se, também deste modo, como pessoas no âmbito de um tal processo.
Mais do que responder ao insucesso escolar dos alunos do Secundário, quantas vezes relacionado com as vicissitudes da sua vida extra-escolar e perante as quais, ela, como professora, se sentia completamente impotente, Judite pretendia, apenas, um Ensino Secundário menos academizado e mais útil. Todos beneficiariam com esse esforço e mesmo estudantes, com tão bons resultados escolares, como a Ana, o Vítor ou a Teresa teriam muito a ganhar com essa transformação. Apesar de raramente alinhar em discussões deste tipo, nesse dia, na reunião do conselho de turma convocada para discutir um problema disciplinar considerado grave, atrevera-se a fazê-lo, escandalizando assim a maioria dos seus colegas, alguns dos quais consideravam que uma tal proposta tenderia a proporcionar a diminuição dos níveis de exigência académica, já por si, hoje, pouco ambiciosos. Outros relembraram a necessidade de não se dever desvalorizar a formação cultural dos alunos. Houve ainda quem se lembrasse das necessidades e dos desafios futuros do que era designado, de uma forma restrita, por ensino universitário. Já para não falar do que lhe dissera a Ana Luísa que considerava extremamente despropositada a sua intervenção sobre as finalidades do Secundário, quando eles se encontravam ali para decidir o que fazer com um aluno cuja insolência tinha ultrapassado todos os limites. Só a combativa Helena se mostrou interessada em contrariar aquela espécie de coro de carpideiras em que a conversa se foi transformando. Não era a primeira vez, contudo, que se defrontava com esse tipo de argumentos. Conhecia-os de cor e salteado, teria até algumas respostas prontas e certeiras, mas decidira não ripostar. Teria de repetir que a excelência académica não é incompatível com a tentativa de promover aprendizagens significativas e úteis. Teria de os confrontar e de se confrontar com o sentido das suas vidas profissionais e isso doía-lhe. Por isso é que se calou, saindo, mal pôde, com um sorriso que não encobria nem a descrença nem uma réstia de amargura.

Rui Trindade / Ariana Cosme
Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação
Universidade do Porto

 


  
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Edição:

N.º 89
Ano 9, Março 2000

Autoria:

Ariana Cosme
Fac. de Psicologia e Ciências da Educação, Univ. de Porto
Rui Trindade
Faculde de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade do Porto
Ariana Cosme
Fac. de Psicologia e Ciências da Educação, Univ. de Porto
Rui Trindade
Faculde de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade do Porto

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