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Questões Comentadas Sobre a Revisão Curricular do Ensino Secundário

(Este texto serviu de base a uma reflexão realizada na Assembleia da Escola Secundária da Maia de que faço parte.)

O documento divulgado pelo Ministério da Educação (ME) deve ser objecto de vários níveis de análise por parte das comunidades educativas. As questões que pretendo agora formular têm fundamentalmente a ver com a identidade do ensino secundário e sua adequação aos alunos concretos com quem trabalhamos. Pode-se, e deve-se, também questionar as opções curriculares concretas em cada um dos cursos. Deixo-as, no entanto, para outra ocasião e outros espaços de reflexão.

1. A presente proposta reforça a identidade do ensino secundário acentuando o seu carácter terminal?

Esse é um dos propósitos claramente enunciados na proposta, mas, a meu ver, não lhe dá resposta satisfatória. Acentua a distinção entre cursos gerais e cursos tecnológicos, sendo os primeiros claramente orientados para o prosseguimento de cursos superiores e os segundos para a integração no mundo do trabalho. O ensino secundário organiza-se, assim, em duas grandes vias subordinadas a finalidades diferentes.
Estes dois percursos serão forçosamente avaliados pelos alunos e pelas famílias e é de admitir que, de forma ainda mais acentuada do que já actualmente acontece, escolham aquele, que de acordo com os valores socialmente dominantes, aparentemente garante um maior reconhecimento social, ou seja o dos cursos gerais.
Sempre que há duas vias, muito dificilmente elas serão igualmente atractivas, especialmente se uma delas conduz mais rapidamente ao ensino superior. Ao admitir a possibilidade da criação de um ano pós-12º para facilitar a permeabilidade entre os vários cursos e ao distinguir a Matemática, a Física e Química e a Geometria Descritiva dos cursos tecnológicos das dos cursos gerais, a proposta indicia que os dois percursos não se equivalem. Pode-se presumir que os alunos dos cursos tecnológicos teriam que frequentar mais um ano para se poderem candidatar a cursos superiores.
Ao identificar o geral com acesso ao ensino superior e o tecnológico com ingresso do mundo do trabalho continua-se a desvalorizar socialmente o saber tecnológico. Mantendo-se esta terminologia, é legítimo desconfiar do propósito, também enunciado no documento, de ligar a teoria à prática em todas as disciplinas. A presunção de que os cursos gerais serão predominantemente teóricos e os tecnológicos práticos parece legítima, quando o desejável era que todos tivessem um caracter acentuadamente experimental e integrassem a teoria e a prática. Podemos perguntar se o saber fazer, se o agir directamente sobre as realidades, não é essencial para muitas formações superiores. Este saber fazer já não pode confundir-se, na sociedade tecnológica e que vivemos, com perícia manual.
Mas podia ser de outra maneira? Não reconhecemos todos que os alunos têm aptidões distintas, o que implica percursos e mesmo aspirações diversas? Não têm é que estar já tão hierarquizadas à partida. Aos 14 anos, um jovem deve ainda poder experimentar, poder corrigir eventuais fragilidades da formação escolar anterior sem ter que escolher logo um rumo que o oriente preferencialmente para o ensino superior ou mundo do trabalho.
Assim, o Ensino Secundário vai continuar refém do ensino superior, sem poder desenvolver percursos escolares que vão ao encontro das necessidades de formação dos seus alunos, independentemente dos caminhos que venham a seguir posteriormente. Seria, a meu ver de admitir, o encaminhamento para percursos de formação pós-secundário já no seu decurso e em função da avaliação que ele próprio, os professores, os serviços de psicologia, as famílias vão fazendo desse percurso. A definição quanto a caminhos de futuro teria, então, como fundamento a experiência dos alunos num nível de escolaridade mais exigente e com uma capacidade de formular projectos pessoais que aos 14 anos e a sair da escolaridade básica ainda não podem ter.
Por tudo o que se disse, não me parece que esta proposta reforce a identidade do ensino secundário.

2. Adequa-se esta proposta aos alunos concretos com quem trabalhamos?

Decidir entre 7 cursos gerais e 13 tecnológicos com várias especificações implica um conjunto de escolhas para os alunos de 9º ano que, mesmo se devidamente acompanhados por serviços de psicologia nem sempre existentes, não é tarefa fácil.
Muitos deles trazem lacunas de formação da escolaridade básica que no início do ensino secundário, confrontados com opções concretas, deveriam poder colmatar.
Por isso parece-me que remeter a permeabilidade de percursos para um ano pós 12º é muito tardio. A divisão do ensino secundário em várias áreas mais delimitadas é positiva. No entanto julgo que ela só devia ocorrer mais tarde, no final do 10º ano. Este estaria organizado em áreas mais genéricas ? semelhantes à do actual 10º ano sem a divisão entre gerais e tecnológicos - que constituiriam uma primeira escolha e valorizaria as componentes transversais de domínio da língua portuguesa escrita e falada, sistematização de informação, desenvolvimento de trabalho autónomo, contacto com contextos de trabalho e áreas de actividade e formação diversificadas, remediação em disciplinas da área em que o aluno revelasse mais dificuldades. No fim de um primeiro ano do ensino secundário assim organizado, os alunos poderiam, devidamente apoiados, fazer opções muito mais conscientes.
A escolaridade básica tal como está actualmente organizada, não constitui pré-requisito suficiente para a frequência bem sucedida do ensino secundário público. Por isso, a existência de um período de sedimentação de saberes, de confronto com novos desafios e de contacto com diferentes actividades profissionais dentro de uma mesma área do saber já escolhida, seria uma ocasião para promover a igualdade oportunidades, no momento de ingresso no ensino secundário e de possibilitar escolhas que tivessem em consideração experiências concretas e não apenas impressões pouco fundamentadas sobre os conteúdos ou exigências dos diferentes percursos de formação.
Nos dois anos subsequentes os cursos poderiam então assumir uma maior especialização, na linha do que a proposta define para o 10º ano.
Deixo em aberto a questão de saber se a preparação para o ingresso no ensino superior deve ser garantida pela frequência de cursos específicos ou por formação acrescida em disciplinas básicas para os cursos superiores pretendidos. Aí, poderia ter sentido haver dois níveis nessas disciplinas, mas dentro de um único tipo de cursos secundários, de carácter profissionalizante. A tarefa de selecção para os cursos do ensino superior passaria, nesse caso, a ser da responsabilidade das instituições que os ministram.

Ficam necessariamente por abordar muitas questões. Umas estão omissas na proposta, como as que se prendem com a avaliação, outras, como a concepção dos programas e sua articulação vertical e, sobretudo, horizontal, embora referidas não estão ainda suficientemente especificadas.
Julgo que só vale a pena passarmos a esse nível de análise depois de equacionarmos as duas questões que abordo e que, a meu ver, são essenciais para a definição da identidade de um ensino secundário terminal.

Paulo Melo
Escola Secundária da Maia


  
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Edição:

N.º 88
Ano 8, Fevereiro 2000

Autoria:

Paulo Melo
Escola Secundária da Maia
Paulo Melo
Escola Secundária da Maia

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