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Miguel Anxo Santos Rego em entrevista a "A Página"

Há ventos favoráveis ao multicultural

Apesar da globalização e da guerra nos Balcãs...

... ainda há lugar e espaço à educação multicultural

Miguel Anxo Santos Rego foi director do Centro da Universidade Nacional de Educación a Distancia (UNED), na Corunha, entre 1990 e 1991, e Subdirector Xeral de Universidades e Investigación da Xunta de Galicia entre 1992 e 1994. Foi igualmente Vice-reitor de Profesorado da Universidade de Santiago de Compostela (USC), ao longo de quatro anos, até meados de 1998. Actualmente, é director do Instituto de Ciencias da Educación da USC e membro do Consello Escolar de Galicia. Dirige várias teses de doutoramento, designadamente na área da Educação Intercultural.
Esteve recentemente em Portugal no II encontro da Associação de Professores para a Educação Intercultural (APEDI), que decorreu na Fundação Calouste Gulbenkian nos dias 22 e 23 de Abril deste ano, tendo proferido uma conferência intitulada "Educação Intercultural e Intervenção Pedagógica na Formação de uma Nova Cidadania". Já em Abril de 1998 tinha sido convidado a participar no seminário "Educação: Saúde, Intercultural, Ambiental", promovido pelo Centro de Formação de Professores de Gaia Oeste.
É o nosso entrevistado nesta edição de partida para férias.

P - Acha que os ventos, da história e das reformas educativas, são, neste momento, favoráveis ao multicultural?

R - Globalmente penso que sim, e por muitas razões. O próprio conceito de globalização, proveniente do mundo da economia, é um conceito que não devemos importar mas sim reinterpretar, os próprios educadores e a sociedade no seu conjunto, sobretudo no âmbito da sociedade civil das comunidades, porque a globalização não tem que ser incompatível com a localização dos problemas.
Com efeito, se associarmos a globalização tendo em atenção os problemas locais, podemos conseguir um termo híbrido, que no caso da educação intercultural seria de "deslocalização", e torná-lo compatível com o interesse pelos temas globais; mas a partir do interesse pelos temas locais.
As pessoas não são entes abstractos, são entes concretos; vivemos emersos em problemas concretos. E o nosso grande desafio é sempre fazer mais de comum acordo para viabilizar soluções concretas para problemas concretos, como por exemplo o tema da convivência a partir da diferença, da diversidade (que não são termos estritamente étnicos, ou interétnicos, mas interpessoais).
A questão das relações interpessoais é uma questão clara que atinge a actualidade da educação intercultural, é um tema estrategicamente importante porque é um marco do progresso, um marco do crescimento, um marco da educação, um marco do entendimento, um marco no sentido da construção de sonhos. Por isso, por muitos inconvenientes e dificuldades que apareçam no quotidiano, temos de pensar que o futuro está adstrito à interculturalidade, devido ao incremento dos intercâmbios, nomeadamente os intercâmbios decorrentes das migrações.

P - Não acha que a globalização comporta a forte tendência para a uniformização, o que quer dizer, o oposto da diversidade?

R - Sim. Esse é o perigo da concepção económica, o perigo da concepção de um ponto de vista mercantil. Por exemplo, se olharmos para a concepção europeia podemos ver que uma coisa são os interesses económicos dos grandes grupos, que congregam uma Europa mais mercantilizada, baseada, digamos, na menor proeminência dos interesses de cada país face às grandes multinacionais, de como escoar melhor os seus produtos, etc.; e, por outro lado, a reversidade desse enfoque num contexto de cidadania, num contexto de formação de cidadãos. Os educadores estão destinados a desempenhar um papel de primeira linha.
Para que as instituições e os políticos permaneçam nos seus lugares com os nossos votos e com o nosso consentimento, digamos assim, têm as políticas e estratégicas de desenvolvimento europeu ir para além dos interesses exclusivamente económicos. Tem de haver uma Europa dos cidadãos, uma Europa dos direitos sociais, uma Europa das possibilidades de desenvolvimento formativo, educativo, cultural, tendo em conta a grande riqueza de valores através dos quais podemos pôr-nos de acordo.
Haveria que superar o sentido economicista e convertê-lo numa preocupação mais comunitária, mais na essência do que era, e continua a ser, o projecto europeu nas mentes, nas vontades mais conscientes de que temos algo importante a longo prazo. O apego, o favorecimento dessa ideia para que os cidadãos vejam também, em termos concretos, e não puramente abstractos, o que é o progresso de uma comunidade, que vai mais além da suas fronteiras e que tem propósitos políticos em sentido amplo: propósitos de constituição de uma nova cidadania. Sem uma nova cidadania não há um projecto ilustrado da União Europeia.
Evidentemente que a globalização não é uma panaceia e deve ser reinterpretada, no seio das estruturas do poder, num incremento do poder da cidadania, do poder da sociedade civil, para que isso se ponha ao serviço da construção de algo comum, compartilhado. Se não for assim, as ideias que enformam a globalização ficarão uma vez mais em função de interesses particulares e não dos intereses comuns da cidadania.

P - Para quem trabalha na área da educação multicultural, como nós, é dramático ver o que se passa nos Balcãs. Não só pela guerra em si mas porque ela abala a essência dos nossos propósitos de fomento da convivência interétnica. Parece que na ex-Jugoslávia, país entretanto «degolado pela faca da história» nas palavras do escritor Álvaro Guerra, já ninguém consegue viver com alguém que seja culturalmente diferente!

R - A situação nos Balcãs é uma situação de quebra cultural que terá de ser melhor explicada do que foi até aqui. Estou convencido que, como noutras alturas, não se pode explicá-la por referência a elementos de racionalidade, se não - e isto às vezes tem de ser dito no âmbito da consideração humana - por influência de fantasmas e de componentes irracionais no comportamento das pessoas. (...)
Mas, longe de tirarmos uma lição negativa do multi/interculturalismo nos Balcãs, o que devemos fazer é o contrário: fazer uma leitura construtiva, justamente como um marco de prevenção do que em alguns lugares, em alguns contextos, é imprescindível fortalecer. Não só para que não ocorra - porque provavelmente o contexto específico dos Balcãs não se colocaria noutros lugares -, mas para fazer desse problema uma oportunidade de convivência, de desenvolvimento no futuro. Porque nessa oportunidade de convivência não só está a paz; a paz é um conceito vazio de sentido se não for acompanhado por um sentido de justiça, um sentido de responsabilidade, um sentido de participação nos problemas da comunidade, um sentido de afirmação e também de identidades.

P - Parece ser a guerra a despoletar fenómenos de intolerância que, em tempos de paz, não existem. A guerra é de facto um despoletador (artificial) de ódios sangrentos, não é?

R - A guerra dos Balcãs foi o despertar de ódios ancestrais que estiveram como que enterrados no subconsciente e de repente afloraram e puseram-se ao serviço das mais maquiavélicas intenções, que não respondem a objectivos positivos, que não sejam, digamos, os da afirmação irracional de uma identidade acima de outra.
Mas o que é interessante, e provavelmente inscrita dentro de uma determinada dialéctica histórica, é analisar quais são os pontos de inflexão na história (por que se produzem e porque têm as consequências que estamos verificar actualmente). E, sobretudo, interessa analisar quais são os mecanismos de prevenção que devem, sem paliativos, pôr-se em cima da mesa das instâncias de convivência internacional, num momento determinado, para que consigam ter uma função de prevenção, de estudo, de intervenção (se assim for necessário), para que estes espectáculos tão lamentáveis, onde a realidade supera a ficção, se possam evitar.
Há um termo, a "balcanização", muito estabelecido na nossa linguagem quotidiana. O não pôr em funcionamento marcos ou estruturas de prevenção é um dos grandes problemas da certa ineficácia que, na Europa, ainda caracteriza o funcionamento das instituições que temos e que tentamos melhorar.

P- Parece que este novo conflito europeu nos impele a associar a vertente da educação pela paz com a vertente da educação intercultural...

R - A educação para a paz é algo intrínseco, na minha concepção, à educação intercultural. Porque a educação intercultural tem que abarcar também a formação educativa para a paz. Em Espanha, por exemplo, a reforma educativa não integrou a educação intercultural senão de forma indirecta: é pela "transversalidade" que se tratam temas como a educação para a paz, o consumo responsável, para a diversidade. Para mais, a educação para a paz e a educação intercultural são as duas caras da mesma moeda.
O que se passa é que quando se fala de educação para a paz (e o próprio Instituto de Investigação sobre a Paz marca determinadas linhas estratégicas, a nível de trabalhos, de projectos, etc.) está-se sobretudo mais vocacionado para a análise da dialética guerra-paz, e não de uma dialética interna à própria convivência em países que não estão tão delimitadas pela urgência de resolver casos flagrantes ou dramas evidentes, como estes da ex-Jugoslávia.

P - Acha então que a educação para a paz tem uma componente mais política do que a educação multicultural?

R - Evidentemente. A educação para a paz tem uma componente mais política e assim está a ser interpretada. E é por isso que, por vezes, determinadas ideias ou projectos dentro da educação para a paz soam como uma espécie de música celestial. E tem uma certa lógica que soe dessa maneira a determinados cidadãos ou a determinadas instâncias, porque a dimensão estratégica da educação para a paz tem que ver com a educação multi/intercultural das escolas. Senão houver uma mudança, um impulso para a mudança conceptual, metodológica e estratégica das escolas, enquanto espaços privilegiados de construção da cidadania, fica-se por um conceito vazio de conteúdo. O conteúdo há que dá-lo nos marcos espácio-temporais aceites e há que dá-lo também através da formação dos professores, sensibilizando ao mesmo tempo outros sectores sociais.

P - Na Galiza há uma tradição ligada a estes movimentos pela paz bem mais marcante que em Portugal, apesar dos encontros conjuntos, mais ou menos regulares, entre galegos e portugueses em torno desta temática. Esse tipo de movimento tem impacto nas escolas?

R - Em primeiro lugar penso que a aproximação entre a Galiza e Portugal, no plano educativo, está, felizmente, a ser objecto de reforço, passo a passo; porque convém não esquecer que houve demasiado distanciamento no passado, que está, agora, a ser alvo de um processo de recuperação, e que está relacionado com outro tipo de identidade, outras coordenadas, outro marco sócio-geográfico, territorial, cultural, acima de tudo, e neste mesmo sentido, infelizmente, não conheço muito relativamente à situação em Portugal. Mas sei que há movimentos nesta direcção da educação para a paz e da educação multi/intercultural, que tem de ir além das acções pontuais, para integrar esta temática no âmbito de um currículo, que é, certamente, fundamental.
Estes movimentos estão a crescer, assim como as acções gerais e outras mais particulares de movimentos muito sensibilizados para o tema da educação para a paz. Há movimentos de educadores para a paz que têm tido bastante presença, uma presença interessante e crítica, em referência, por exemplo, aos problemas sociais, culturais, educativos, da cidadania em distintos âmbitos. Mas há também que dizer com realismo que não são movimentos aceites maioritariamente e absolutamente presentes na cena educativa.

P - Esse movimento para a paz, em Espanha, tem alguma relação com o facto do terrorismo ser ainda uma realidade na sociedade espanhola?

R- Não creio que seja um movimento central na dinâmica dos movimentos em favor da paz. O terrorismo atinge fundamentalmente uma parte do território, como é o caso do País Basco. Neste momento estamos a viver um momento de trégua do movimento terrorista ETA, que todos esperamos que se converta em paz duradoura. E é aqui que o movimento para a paz procura sensibilizar, a todos, sem excepção, para a urgente necessidade de construção de uma vontade de convivência, de autêntico encontro entre os distintos cidadãos, as distintas instituições e as diferentes partes do território que formam o estado espanhol.
Creio que a sensibilidade para a paz supera essa triste referência que as acções terroristas têm manifestado no território espanhol. Mas é algo que se prende mais com uma questão de convivência e com a dimensão estratégica da convivência no crescimento individual e colectivo das pessoas, sobretudo do ponto de vista do que pode ser a educação como lugar mais idóneo para desenvolver e para cumprir.

P- A Espanha é um país com quatro línguas co-oficiais e diversas nacionalidades, onde a questão da coexistência dessa diversidade linguístico-cultural com a manutenção de uma coesão nacional se coloca com acuidade. Assim, parece haver aí um conteúdo mais visível para a educação multicultural. Como defender a unidade sendo adepto da diversidade, é um dos temas centrais da agenda multicultural em Espanha?

R - Penso que é um elemento importante, porque forma parte da implantação, crescimento e fortalecimento da democracia em Espanha que, evidentemente, tem como grande eixo o consenso básico delimitado na transição da ditadura para a democracia e actualizado em cada momento em relação ao que é uma estrutura, não só territorial mas também cultural, delimitada também por diferenças. O estado espanhol tem a língua do estado, que é o castelhano, mas o estado não se pode interpretar senão a partir das suas diferenças culturais, que tem nas outras línguas o elemento de referência principal. Deve-se ter em conta que em Espanha não se fala unicamente o castelhano, fala-se também galego, basco, catalão; Existem riquezas, no sentido histórico, que devemos cuidar e pôr ao serviço de um maior entendimento e de uma maior coordenação de esforços na melhor convivência definitiva dentro do próprio país no seu conjunto.

Mas não creio que seja esta a única questão na necessidade de reforçar a educação multi/intercultural em Espanha. Ao olharmos, por exemplo, para o caso português, temos uma história de emigração, uma história de comunidades que podem, inclusivamenente, ser importantes na sensibilização para esta temática, a história de comunidades que vivem fora do território, que têm filhos ou netos fora do território, onde a questão da identidade assume, por momentos, uma inusitada força, tanto na Europa como na América.
Esta questão migratória é um assunto que conforma um marco de possibilidades extremamente rico porque o paradoxo da história converte-nos, por um lado, em países com parte da história ligada à emigração - no caso da Galiza é o fenómeno social mais importante da contemporaneidade, sem dúvida alguma -, e, ao mesmo tempo, estamos a converter-nos em países de acolhimento, em países de imigração.

P - Nesse aspecto temos, nos últimos anos, caminhos muito semelhantes, ainda que as populações que nos procurem sejam originárias de regiões diferentes daquelas que procuram a Espanha. Vocês têm uma corrente magrebina muito forte; têm igualmente uma percentagem importante de portugueses em Espanha (7% dos estrangeiros são portugueses, não é?). O número de espanhóis em Portugal tem vindo a decrescer, sendo claramente ultrapassado pelos emigrantes dos PALOP.

R - Neste sentido é uma óptima oportunidade para recordar que parte da emigração galega, no passado, veio justamente para Portugal. E hoje, em Lisboa, é patente essa forte presença, por exemplo, pelo próprio centro galego (um centro com uma arquitectura extraordinária). Efectivamente, esta tendência é mais patente no que respeita aos portugueses em Espanha, com diversos locais de fixação, um dos quais é a Galiza, por relações de vizinhança e de intercâmbio laboral, que, evidentemente, tem de dar lugar a mais projectos educativos e culturais "comparados" longe de actividades pontuais ou das adaptações curriculares, como as que por exemplo se estão a realizar tanto na Galiza como noutras partes de Espanha. Estou a pensar, por exemplo, na comunidade portuguesa no País Basco.
Dito isto, o importante não é ir buscar as razões e contextualizá-las para uma educação intercultural, pensando numa educação para a cidadania, numa educação para os desfavorecidos, etc..., porque, entretanto, mudamos a visão que temos das coisas ao nosso redor. Tanto numa perspectiva local como global, como dizíamos antes. E nisso sim, nós, os educadores, devemos reclamar uma educação salpicada dos elementos culturais, interculturais, de estratégias de desenvolvimento intercultural para todos os cidadãos, para toda a cidadania.
Porque uma questão que me interessa sempre deixar claro é que estes elementos de referência curricular, de referência estratégica, da metodologia do professor e do ensino/aprendizagem, são questões estratégicas no desenvolvimento da própria cidadania do futuro, da nova cidadania; inclusivamente das associações e os relacionamentos entre educação intercultural e a "sociedade em rede", de que falou o sociólogo espanhol Manuel Castells, com toda a razão, já que nunca como antes na história, podemos comunicar-nos mutuamente dentro de novas coordenadas espácio-temporais.

P - Como é que em Espanha essas preocupações são acolhidas a nível do sistema educativo?

R - Esse é provavelmente o elemento mais débil do sistema educativo espanhol. É preciso desenvolver mais e melhor o tema da educação para os valores, tais como o valor da paz, da amizade, da solidariedade, da empatia, da cooperação num marco de democracia em sentido amplo.
Para alcançar isto é preciso uma mudança de atitudes. Contudo, penso que a mudança não vai ser compensada desde o topo, desde as instâncias do poder político. Penso que a mudança (e a própria percepção da necessidade de mudança), está vinculada ao fortalecimento da sociedade civil. Pela maior consciência de associações livremente estabelecidas, da participação das mulheres e dos homens nestes complexos relacionais que conformam hoje a sociedade civil a múltiplos níveis, mudando a percepção dos problemas, na medida em que o que sucede aparentemente longe de nós afecta-nos também. O que sucede na América Central, o que acontece na Jugoslávia ou que sucede em África está a afectar-nos.
Afecta-nos na medida em que, primeiro, somos pessoas pensantes e com capacidade de analisar o que se passa no mundo. De uma maneira mais directa afecta-nos na medida em que "recolocam" as diferentes estruturas de funcionamento político e económico.
Os refugiados, por exemplo, são uma referência que devemos ter bem presente, como forma de dignificar autenticamente a vida de pessoas que estão a perder tudo e que precisam de uma recolocação, de uma reeducação, não só material mas também cultural, onde se manifestam outras necessidades como as de cuidar a identidade e o próprio sentido de pertença de milhares de refugiados que estão a ser deslocados dos seus locais de origem e que afectam os sistemas educativos dos países de acolhimento.
Portanto, isso mostra-nos que algo tão essencial, e ao mesmo tempo tão dramaticamente actual como o que se está a passar na ex-Jugoslávia e no Kosovo, é um tema onde a comunidade internacional, e sobretudo as associações civis de intervenção, têm um papel preponderante, porque são as que de alguma forma estão a tentar pôr em marcha estratégias urgentes, inclusivamente com uma componente de intervenção psico-social, psicológica, educativa; porque às vezes esquecemo-nos que por trás de todos estes dramas estão pessoas concretas.

P- Tem defendido duas linhas para o desenvolvimento da área da educação multicultural. Uma é a sua associação às questões da cidadania, nomeadamente a articulação com a construção da cidadania europeia, e outra é, em termos mais escolares, o desenvolvimento das estratégias de trabalho cooperativo. Importa-se de desenvolver estes dois eixos?

R - Sim. Eu sou muito pouco partidário de uma visão romântica da educação intercultural, que é o principal problema não só no seu conceito como na sua expansão, e na medida em como é percebida, não só pelo cidadão mas pelos próprios alunos e pelos próprios professores/as, que, felizmente, têm hoje nos seus currículos, na própria formação do professorado, a oportunidade de estruturar componentes que também devem estar presentes - começam a estar mas não ainda com a força necessária - nos programas de formação de educadores e na formação de profissionais de educação. De facto, eu considero que a verdadeira educação não pode separar a educação intercultural daquilo que é o objectivo ou a finalidade da educação.
Portanto, na minha opinião, a educação intercultural não pode ter uma leitura romântica mas sim uma leitura estratégica. Eu digo-o assim, claramente, com todas as palavras.
Uma leitura estratégica em torno de duas dinâmicas fundamentais. Uma é a de fazer da educação intercultural um posto avançado do que deve ser um compromisso maior dos educadores, uma espécie de contrato moral do professorado. Como disse um pedagogo espanhol, há que "centrar e estruturar um contrato moral do professorado". Ter um contrato moral relativamente a um novo papel do professor e a um repensamento da escola. Com uma nova maneira de ver a escola, mais perto dos problemas dos cidadãos, mais em contacto com os problemas locais, mais em ligação com as preocupações sentidas na vida quotidiana. Eu sou um firme partidário da descentralização.

P - Mesmo a nível curricular?

R - Mesmo a nível curricular. Sem entrar agora nos problemas, pode haver um currículo comum, um currículo totalmente diferenciado, mas penso o seguinte: - evidentemente em virtude do que é o planeamento político da educação - quem melhor para resolver os problemas do que os próprios protagonistas dos problemas? Como podemos continuar a pensar que é melhor situar os problemas longe dos seus marcos de referência naturais, onde tudo se diluirá, onde tudo permanecerá diluído, e não promover a resolução e reanálise dos problemas a partir das próprias comunidades locais?
Por exemplo: um dos problemas que devíamos resolver no futuro na Europa é a implicação das comunidades locais, a maior implicação e responsabilização das comunidades locais nos assuntos educativos. Sem que se esqueça a responsabilidade do poder público, da administração central, na necessária garantia da igualdade no acesso aos bens educativos.

P- E quanto ao trabalho cooperativo?

R- A aprendizagem cooperativa enquadra-se numa mudança necessária - mudança sempre no sentido micro dimensionado, não numa mudança como um apelo a tudo e a nada ao mesmo tempo. A aprendizagem cooperativa, que não é nenhuma panaceia, é uma forma de pensar a maneira de trabalhar os conteúdos, a maneira de trabalhar o mundo dos valores, a maneira de dimensionar uma educação sócio-moral no mundo da escola primária e da escola secundária. Tornar, evidentemente, mais coerente a prática da educação com o que se enuncia nos objectivos curriculares.

P - Gostava de o questionar ainda sobre um conteúdo muito preciso da educação multicultural que tem a ver com a articulação entre os nossos dois países. Portugal e a Espanha têm uma geografia que os aproxima, uma história passada que os afasta, e uma história recente mais próxima e convergente. No quadro da globalização e da construção da União Europeia, assistimos a uma forte concorrência pela conquista de mercados, que pode levar a conflitos graves, como acontecimentos recentes o ilustram, onde se vê o vizinho-espanhol como o nosso inimigo, neste caso económico. Como vê o papel da educação multicultural também como propedêutico deste tipo de conflitos?

R - Há um papel propedêutico em relação ao que antes dizíamos. Ainda que se pense que a nossa história é uma história de desencontros, uma história de concorrência, de convergência, não só no presente, mas penso que deve sê-lo de convergência e de esforço partilhado face ao futuro.
Não sei se haverá duas velocidades na União Europeia, no conceito europeu, mas, sendo realistas, irá certamente haver o afloramento de conflitos, o afloramento de distintas maneiras de proceder em momentos chave para resolver problemas chave.
Não sou um especialista em economia nem em comércio externo, mas penso que para Espanha e Portugal, e especialmente para nós galegos, esta união de esforços e esta capacidade de entendermo-nos tem de ser fortalecida a partir da própria sociedade civil, não deixando todos os actos de comunicação para os governos, para as estruturas políticas, partidárias, fomentando sobretudo um maior contacto entre os cidadãos de ambos os países. Participando, sobretudo, e confluindo, não só do ponto de vista educativo, em encontros, em projectos europeus ou provenientes da livre associação de pessoas, mas também em projectos sócio-económicos e projectos de desenvolvimento local, por exemplo.
Para mim há uma questão muito importante que se relaciona com o entendimento entre as pessoas e os povos: a do fortalecimento de encontros de pessoas e da comunicação entre as associações civis de ambos os países. Porque se fortalecermos a comunicação no sentido descendente, através das associações, através da livre concorrência das pessoas, estaremos também a condicionar positivamente a necessidade de entendimento no seio das próprias estruturas económicas e políticas.
A cultura tem uma muito maior relação com a economia do que pensamos. Um entendimento ou uma aproximação cultural é uma das bases fundamentais para dinamizar adequadamente as estruturas de funcionamento económico. De qualquer maneira, não podemos esquecer que há um mundo de consumo, um mundo com desinências e referências culturais de primeira magnitude.

P - Acha que há mais espaço para a cooperação do que para a concorrência?

R - Eu creio que sim, que há mais espaços para a cooperação. Penso sinceramente que esses espaços não têm de condicionar, ou que estejam a condicionar, neste sentido, os marcos de desenvolvimento estratégico português com o desenvolvimento estratégico espanhol ou galego, dado que temos uma confluência clara no sector dos serviços, como o turismo, no âmbito das novas tecnologias, e temos igualmente uma confluência clara em tudo o que se relaciona com o desenvolvimento local (com marcos de desenvolvimento estratégico a nível local), que estão relacionados com melhores serviços dentro das cidades e vilas, com melhores serviços de comunicação, em todos estes aspectos. Penso, inclusivamente, que no âmbito da agricultura não nos combatemos. A evidência é clara no sentido em que a agricultura espanhola e a agricultura portuguesa são bastante compatíveis.
Para todos os efeitos, não podemos esquecer que, além de tudo isto, os espanhóis e os portugueses têm uma vantagem na vida. Mesmo que tenhamos pouca inteligência social e histórica, sabemos que temos de pô-la ao serviço da nossa contribuição cultural relativamente ao projecto europeu e a qualquer outro projecto de envergadura. Em definitivo, há que ir até ao grande desafio da confluência cultural, pois participamos em estruturas comuns, tais como as de desenvolvimento Ibero-americano e somos a porta de entrada e de comunicação entre a Europa e um mundo tão querido e tão necessitado de ajuda como é a América Latina.
Finalmente, gostaria de chamar a atenção para o facto de que temos uma língua praticamente comum e que este é (ou deveria ser) um elemento de união e de convergência para um desenvolvimento comum e simbiótico dos nossos países.

Entrevista conduzida por Luís Souta,
da Escola Superior de Educação de Setúbal


  
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Edição:

N.º 82
Ano 8, Julho 1999

Autoria:

Miguel Á. Santos Rego
Director do Instituto de Ciencias da Educación da Universidade de Santiago de Compostela e membro do Consello Escolar de Galicia
Miguel Á. Santos Rego
Director do Instituto de Ciencias da Educación da Universidade de Santiago de Compostela e membro do Consello Escolar de Galicia

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