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Educação Multicultural - do imperativo social à ausência de políticas

«Mas não nasci eu para assim acreditar, antes para descrer e duvidar,
que essa é a minha desventura.»
(Monteiro Cardoso, Boas Fadas que te Fadem)

No artigo anterior, vimos como a generalidade dos sistemas educativos entrou em processo de reforma permanente (muito ao jeito das idiossincrasias funcionais dos ministro). Querendo adaptar-se às mudanças vertiginosas do mundo, os sistemas educativos alhearam-se dos fenómenos de pobreza, exclusão e desigualdade que afectam zonas desfavorecidas do globo e importantes estratos populacionais das privilegiadas sociedades ocidentais. Os resultados dessas reformas são globalmente insatisfatórios.

Portugal multicultural

A sociedade portuguesa tem vindo a sofrer grandes transformações nos últimos anos, nomeadamente ao nível da sua composição demográfica. A abertura do país, iniciada em 1974 com a democracia e aprofundada com a adesão à comunidade europeia, trouxe até nós populações migrantes dos quatro cantos do mundo, com particular incidência da Europa e África. Só na década de 1986-96, o número de estrangeiros em Portugal aumentou 97%. Essa diversidade étnico-cultural é facilmente constatável nas escolas públicas (ou seja, nas 90% das escolas existentes), como podemos ver no quadro que se segue.

"Lusos" vs "Não Lusos" na escola pública portuguesa, 1995/96

 

Total
Lusos
Não Lusos
Minorias %
1º ciclo457572421602359707,9
2º ciclo232680215262174187,5
2º ciclo ebm16483158056784,1
3º ciclo328195304881233147,1
Secundário254745237580171656,7
Total12896751195130945457,3
Fonte: BD Entreculturas, 1997.

A presença de grupos étnico-culturais é mais acentuada no 1º ciclo (onde quase duplicou em termos percentuais, no período de cinco anos), diminuindo ligeiramente na transição de cada um dos níveis de escolaridade subsequentes.

Medidas multiculturais positivas

Perante estas novas realidades, na década de 90, foram sendo despoletadas, medidas institucionais, ao nível dos órgãos do poder, promotoras da educação multicultural e de apoio a minorias étnico-linguísticas; aqui se enumeram, de forma sumária, apenas as principais:

* Ao nível do poder central:

  • Criou-se o Secretariado Coordenador dos Programas de Educação Multicultural, em Março de 1991. Implementou-se a "base de dados" Entreculturas, com surveys anuais sobre a demografia multicultural nas escolas da rede pública.
  • Incentivou-se a fundação da Associação de Professores para a Educação Intercultural, em Setembro de 1993.
  • Desencadeou-se o Projecto de Educação Intercultural (PREDI), no ano lectivo de 1993-94 (começou com 30 escolas, alargado a 52 escolas públicas dos três ciclos do ensino básico e prolongado por mais dois anos, na sua 2ª fase). Encerrou com um seminário em 4/7/97, no qual esteve presente James Banks. Os relatórios finais de execução (Martins et al.,1998) e de avaliação externa (Alaiz et al., 1998) foram publicados em livro no início de Dezembro último.
  • Promoveu-se a formação de mediadores culturais para apoio à escolarização de crianças da comunidade cigana - Projecto Ir à Escola - da responsabilidade do Departamento de Educação Básica do ME (curso de formação implementado entre 1994-97). Anteriormente, havia sido levada a cabo uma formação pioneira pelo Programa de Promoção Social de Ciganos, da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, entre 1993-95, e agora a ser continuada pela Pastoral dos Ciganos.
  • Criou-se a figura do Alto Comissário para a Imigração e Minorias Étnicas, na dependência da Presidência do Conselho de Ministros, em finais de 1995.
  • Consagrou-se, por iniciativa da Assembleia da República, a diversidade linguística, através do reconhecimento de duas línguas minoritárias, uma de âmbito nacional e outra de âmbito regional, pondo-se assim fim ao tabu do país monolingue:
    (1) Língua Gestual Portuguesa consagrada na Constituição da República, após a revisão de 1997 (alínea h) do artº 74º: incumbe ao Estado «Proteger e valorizar a Língua Gestual Portuguesa, enquanto expressão cultural e instrumento de acesso à educação e da igualdade de oportunidades»). No domínio legislativo, tal só tem paralelo na Finlândia e no Uganda. Posteriormente, um despacho veio definir as condições para a criação e funcionamento de «unidades de apoio à educação de crianças e jovens surdos» em cerca de 40 estabelecimentos públicos do ensino regular do básico e secundário.
    (2) Mirandês, reconhecida em Setembro de 1998, tem agora o direito a receber apoio científico e educativo, com vista à formação de professores de língua e cultura mirandesas.
  • Institucionalizou-se a diversidade religiosa, terminando deste modo o monopólio da religião católica nas escolas: a frequência da disciplina facultativa de Educação Moral e Religiosa, do 1º ao 12º anos das escolas públicas, pode ser ministrada, a partir deste ano, por qualquer confissão religiosa com implantação no país 1.
  • Lançou-se o projecto Pelas Minorias, integrado no programa Cidades Digitais, apoiado num protocolo conjunto, assinado em Outubro de 1998, pelo Ministério da Ciência e Tecnologia e o Alto Comissário para a Imigração e Minorias Étnica, que possibilita o acesso dos jovens de comunidades imigrantes às novas tecnologias da informação, permitindo também a comunicação entre as associações lusófonas, através de um espaço próprio na Internet.

* Ao nível do poder autárquico:

  • Criação de Conselhos Municipais das Comunidades Étnicas e Imigrantes, como órgão de consulta, em câmaras como as de Lisboa, Amadora e Cascais.

* Ao nível do ensino superior:

  • Funcionamento de três cursos de mestrado nas área da educação multicultural: Universidade Aberta - Relações Interculturais (1991); Universidade Católica Portuguesa/ Faculdade de Ciências Humanas - Ciências da Educação, área de especialização em Educação Multicultural (1995); Universidade do Porto/ Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação - Ciências da Educação, área de Educação e Diversidade Cultural (1996).

* Ao nível das escolas do ensino básico e secundário:

  • Lançamento de Projectos/Clubes tendentes à promoção da educação multicultural (muitos deles divulgados, em Lisboa, na "Mostra de Projectos Entreculturas", em Março de 1992, e no seminário "Um Olhar sobre o Outro", em Novembro de 1997).
  • Geminação de diversas escolas portuguesas e africanas.
  • Intercâmbio de estudantes e professores de diferentes países (com incidência nos europeus e africanos).

Um conjunto de acções que denotam algum voluntarismo, empenhamento e desejo de mudar em certos sectores, mas longe de serem consistentes com o que poderíamos chamar de política multicultural estruturante.

Sinais de preocupação multicultural

Apesar de todas estas medidas e acções, a educação multicultural tarda em sair dos nichos académicos e da militância pedagógica. A generalização da experiência acumulada com os vários projectos implementados (ainda que na sua maioria modestos nos meios e nos propósitos, ficando muito aquém das metas enunciadas por Banks (1988 e 1991) não avança, embora o ME, em 1995, tenha manifestado a intenção do seu «gradual alargamento a todo o sistema educativo».
Infelizmente, assitimos a um certo desinvestimento nesta área por parte da actual equipa do ME que não vê na educação multicultural um objectivo estratégico e de inovação do sistema. Nos mais importantes documentos definidores da política educativa - Pacto Educativo para o Futuro (Fevereiro de 1996) e Educação, Mudanças para o Futuro (Março 1998) - a multiculturalidade é reduzida à sua expressão mínima: está lá a expressão «educação intercultural» (a moda assim o recomenda) mas não passa de um figura de retórica, sem conteúdo concreto nas medidas de acção. Na prática, continua-se a agir na lógica de que a educação multicultural é só para alguns… as minorias étnicas, a quem bastam projectos ad-hoc circunscritos a escolas "coloridas", o que contradiz a principal recomendação do Relatório de Execução do PREDI: «A multiculturalidade é uma problemática emergente na sociedade e na escola portuguesa que diz respeito a todas as escolas e a todos os alunos. Limitar a reflexão sobre a intervenção a desenvolver às escolas com maior peso de alunos pobres e/ou étnica e culturalmente diferenciados, seria um erro estratégico grave, já que retiraria a possibilidade de preparar todos os alunos para viverem num mundo plural, onde a mobilidade é uma constante» (Martins et al., 1998:87).
Os sinais preocupantes de intolerância inter-étnica e, mais grave ainda, de heterofobia (Areia, 1998), que nos são relatados quase diariamente pela comunicação social, mostra que se deve caminhar no sentido desta recomendação. Atente-se nos ciganos que continuam a ser alvo de discriminações sistemática (Souta, 1998). Nem as crianças que frequentam as escolas escapam: as populações querendo-as afastar dos seus filhos exigem professores póprios para os ciganos, ensino em sala separada, chegando-se mesmo a falar «numa espécie de ano zero de integração» (como aconteceu no início deste ano escolar com seis miúdos ciganos em Montemor-o-Velho) 2.
A pressão dos pais tem chegado a situações extremas como a de fechar escolas a cadeado, o que «esconde, em maioria estatisticamente comprovada, comportamentos de racismo», como o reconhece o próprio secretário de estado da administração educativa 3.
Casos como estes evidenciam a necessidade urgente de uma educação intercultural «para todos, independentemente da configuración racial ou étnica dunha colectividade, pensada e realizada, eso sí, desde e para unha situación concreta. Pero non contreñida nin reducida a educación para marxinados» (Rego, 1998: 38-39).
Para quando a adopção de uma política multicultural global em detrimento de medidas avulsas, esporádicas, limitadas e de reduzido impacto?

Notas

(1) Decreto-Lei nº 329/98 de 2 de Novembro.
(2) Moris Farhi, escritor turco radicado em Londres e presidente do comité Writers in Prison, em entrevista dada ao jornal o Público de 15/11/98, considera os ciganos e escritores dissidentes como os dois grupos mais perseguidos da actualidade, uns por razões racistas os outros por estarem «na frente da luta contra a tirania e a perseguição».
(3) Intervenção no seminário internacional "O Direito à Educação", 27/11/98.

Referências

  • ALAIZ, Vitor et al. (1998) Projecto de Educação Intercultural: Relatório de Avaliação Externa. Lisboa: ME-Secretariado Coordenador dos Programas de Educação Multicultural/ Colecção Educação Intercultural, nº 9.
  • AREIA, Manuel Laranjeira Rodrigues de (1998) "Portugal e o 'outro' Africano: a Imigração e o Racismo" in Portugal na Transição do Milénio. Fim de Século/ Margens, pp. 409-417.
  • BANKS, James A. (1988) "Approaches to Multicultural Curriculum Reform". Multicultural Leader, vol. 1, nº 2, Spring, pp. 1-4.
  • BANKS, James A. (1991) "Multicultural Literacy and Curriculum Reform". Educational Horizons, Spring, pp. 135-140.
  • MARTINS, Isabel F. et al (1998) Projecto de Educação Intercultural 1993/94-1996/97: Relatório de Execução. Lisboa: E-Secretariado Coordenador dos Programas de Educação Multicultural, nº 8.
  • REGO, Miguel Anxo Santos (1998) "A Educación Intercultural como desafio político e pedagóxico na esfera pública", Pensar Educação, nº 1, Julho, pp. 33-41.
  • SOUTA, Luís (1997) Multiculturalidade & Educação. Porto: Profedições.
  • SOUTA, Luís (1998) "Escola de Excluídos: Reflexões Críticas sobre Multiculturalidades", Pensar Educação, nº 1, Julho, pp. 25-32.

Luís Souta
CIOE/ Escola Superior de Educação / Setúbal


  
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Edição:

N.º 77
Ano 8, Fevereiro 1999

Autoria:

Luís Souta
Instituto Politécnico de Setúbal
Luís Souta
Instituto Politécnico de Setúbal

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