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Como era quando não era o que sou

O crescimento das crianças

Raul Iturra
Um livro Profedições

Diz o apresentador, que lançar um livro, é como ter um bebé.
E até é o que o autor sente. Porque é o produto final duma longa preparação. Começa quando o escritor vai à teoria, durante anos, segue quando o autor observa a realidade, e continua quando vive e sente essa realidade. Porque sem sentir essa realidade, o autor não entende o que se passa nas vidas das pessoas que observa. O autor observa-as no tempo. Primeiro, no tempo individual, a vida dos sujeitos com os quais fala, vê e ouve enquanto não faz perguntas. Como eu gosto dizer, vê, ouve e cala. E passa a estudar o contexto social. Quando desenha as genealogias dos parentes de que os indivíduos vão falando, lembrando, fazendo referencia. E vão saltando para trás da memória do tempo presente, até chegar ao tempo que eles nunca viram. E que o autor vê nos arquivos, nas histórias, nos mitos que depois analisa. Nos desenhos que fazem. E vai combinando esse tempo presente com o tempo passado e o contexto social que eles e os que estiveram nesse sítio antes deles viveram. E os que nunca estiveram nesse sitio e andaram a inserir-se no mesmo, desde longe, nas leis, na autoridade, nas lutas. A mudarem o tempo social local, com o tempo social nacional e internacional: é dizer, do sitio e dos outros grupos que este grupo nunca viu. E o autor, que trabalha com crianças, pede às crianças para desenharem as ruas, as casas, para perguntarem às pessoas pelo tempo dessas casas, para verem nas escrituras e nas histórias que lembram os mais velhos.
O autor pede para desenharem os pais, um parente, outro menino. E pede para escreverem as palavras que usam, palavras diferentes das que estudam na escola. Que designam partes do corpo duma forma normalmente referida com palavrões. E com essas palavra fortes, passa a falar com eles. E eles ouvem a sua própria epistemologia, os seus conceitos, e ganham confiança. E contam as histórias das suas casas.
Eles lembram que nas suas casas é perguntado ao céu, o que fazer. E é perguntado ao céu, quando fazer. E eles próprios vão assim escolhendo, procurando opções usando o nome do santo que é mais interessante para eles. Ou com mais reputação local.
O tempo cósmico que avisa desde cedo, que a vida está governada por uma outra entidade, que não é a sua família que diz, bem como a sua divindade a que faz dizer à família e a eles. A vontade é própria, mas comandada por um pensamento que não se pode governar, porque governa.
O autor aponta, toma notas, escreve longamente o que viu e ouviu nesse dia. Durante muitos dias, meses frios e nevados. Até sentir que entendeu e pode voltar para o seu canto, a arrumar as notas, os planos, as genealogias, os trabalhos de cada indivíduo, a comparar a diferença que há nos trabalhos e no transito de cada um deles. E a lembrar as intimidades que, sem saber, eles estão a revelar quando falam. E quando o escritor tem tudo organizado na sua cabeça, lembra-se do que outros autores discutem e bate-se com eles por meio dos factos. E dia após dia, noite ou luz de dia, coloca as palavras no texto, que virá depois a ser o livro. Com uma teoria nascida do debate entre o visto, ouvido e calado, e o visto, ouvido e calado por outros autores. Enquanto ouve a sua musica calmante, que permite esquecer a dor do corpo que desaparece enquanto nascem as ideias. Durante horas apenas interrompidas pelo dormir e comer que o lar manda fazer, para o autor descansar e continuar a escrever.
É o que me fez lembrar o historiador José Mattoso, quando falou do que o meu livro lhe dizia: que as crianças cresciam em três tempos diferentes, esse individual, esse social, esse cósmico , que o autor, este que escreve estas palavras, usou para analisar o crescimento das crianças quando não eram como eram o que são. E combinou três países unidos pelo tempo social, histórico, e fez falar os indivíduos de cinco século, do XVI ao XXI. E fez da antropologia, história. Para entender a epistemologia das crianças e assim falar do processo educativo nestes três sítios diferentes.
Sítios onde foi recebido, aceite, convidado, nutrido, amado. E o autor os amou e os ama até o ponto de nunca mais os esquecer enquanto viva.


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 77
Ano 8, Fevereiro 1999

Autoria:

Raúl Iturra
Instituto Superior das Ciências do Trabalho e da Empresa, Lisboa
Raúl Iturra
Instituto Superior das Ciências do Trabalho e da Empresa, Lisboa

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