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Histórias do 35

O 35 é um desses autocarros que serpenteiam no carrossel das ruas do Porto. Leva-nos à estação de Campanhã. É o consolo dos reformados nos passeios sobre a espuma dos dias ensolarados que os leva até à Marechal Gomes da Costa. Alimenta o corropio dos estudantes da Faculdade de Ciências entre os Leões e o Campo Alegre. É o 35 que transforma o percurso entre os Clérigos e a Sé numa espécie de montanha russa que algumas travagens bruscas ajudam a colorir. Nele já passeei com a Tatiana ainda bebé, já ri, sofri e penei ao ponto de me atrever a pensar que Deus foi demasiado injusto com todos aqueles que têm de andar nesse autocarro, não por prescrever que, enquanto descendentes de Adão, teríamos de ganhar o pão com o suor do nosso rosto, mas por exigir que para o fazer tivéssemos de apanhar o 35 das horas de ponta.

A minha intimidade com o 35 começou quando viajava diariamente para a escola primária situada no Bairro do Aleixo, onde trabalhei dois anos lectivos consecutivos. Conheci gente com quem nunca falei, aprendi a sentir a tensão dos meus companheiros de viagem nos dias húmidos da cidade, deixei de apresentar o passe aos motoristas com quem todos os dias me cruzava e impacientei-me com os semáforos que, para meu azar, sempre lhe engasgavam a marcha nos dias em que ia atrasado.

Quando deixei o Aleixo, a nossa relação esmoreceu e passamos a ver-nos esporadicamente entre a troca de buzinadelas na Rua D. Manuel II e a travessia das passadeiras na Praça da Liberdade. O 35 foi-se tornando num autocarro cada vez mais igual a todos os outros autocarros da cidade. Mesmo nas raras vezes em que nos encontrávamos, acontecia aquilo que é usual acontecer nos poucos jantares de convívio com os antigos colegas de curso em que participei: adoramos rever pessoas com quem partilhamos um dia cumplicidades adolescentes, mas a magia do reencontro dura quase sempre a meia hora que nos leva a concluir que nos tornamos nuns desconhecidos simpáticos que já pouco têm a dizer uns aos outros. Quando muito, refugiamo-nos nas recordações e pode ser que consigamos obter algum prazer nisso.

Num destes anteontens que, de vez em quando, vivemos, foi isso que julgava ir acontecer quando voltei a viajar no 35. Sentei-me, como há alguns anos atrás, num dos lugares da cozinha. Era um 35 mais modernaço, mais espaçoso e mais plástico. Nem tenho bem a certeza se continuava a ser laranja. Aburguesou-se, tal como eu, que o troquei, apesar da minha retórica pró-ecológica, por um carro de gasolina sem chumbo. Neste misto de curiosidade e inquietação, própria dos reencontros entre gente outrora íntima que deixou entretanto de se ver, comecei a sentir que estava perante algo vagamente familiar. A dado momento, fui-me apercebendo de uma conversa mais vigorosa cujo tema era, nem mais nem menos, que o referendo sobre a regionalização. A quantas discussões como aquela já tinha eu assistido noutros 35? As famosas discussões nos autocarros do Porto que começando por ser a dois, e que podendo acabar a dois, não deixam ninguém indiferente.

Naquele dia e àquela hora discutia-se, portanto, o referendo sobre a regionalização no tom apaixonado e forte que os tripeiros empregam sem rebuço de afirmar o que lhes vai pelo pensamento e na alma. Fui por isso ouvindo, por vezes sorrindo, concordando e discordando com os argumentos que se iam contrapondo e fluiam nos meandros das estratégias argumentativas de cada um dos oradores. O autocarro tinha vindo suspenso daquela conversa pública entre uma jovem pela casa dos vinte e cinco anos e um homem de meia-idade que naquele momento vimos levantar-se bruscamente para proclamar um sonoro e inevitável vão trabalhar, frase que em qualquer 35 que se preze, significa que o debate chegou ao fim. Foi pois com um vão trabalhar anti-regionalista que o homem carregou na campainha para sair. Antes tinham-se escutado algumas das ideias que o Marcelo e o Portas foram popularizando, interrompidas aqui e ali pelo discurso mais tímido da mulher que ia chamando a atenção, o melhor que podia e o seu parceiro deixava, para a impossibilidade dos problemas do país serem todos resolvidos em Lisboa. Mais mamões? Contrapunha arrogante o homem. Não é verdade, respondia-lhe a senhora, os governos civis vão ser extintos, as Comissões de Coordenação Regional têm pessoal em número suficiente para assegurar as Juntas e as Assembleias Regionais. Quais Comissões qual carapuça!... Comichões tenho eu se os impostos tiverem que subir. Os morcões nem querem dizer onde vão ficar as capitais das regiões... qualquer dia anda tudo à porrada. E ponto final. A bandeira é só uma, já não chegou o que fizeram ao que era nosso em África, a culpa é do Pinto da Costa e o que é preciso é que alguém mande e saiba mandar em Lisboa para a coisa andar sem problemas. Tudo frases ditas em catadupa no melhor dos sotaques tripeiro. O senhor não passa de um reaccionário. Eu? E o bolacha Maria também é reaccionário? Porque é que ele não quer a regionalização? Sabe porquê menina? Ele sabe melhor que ninguém que nós não temos muita gente com capacidade para governar. Quem vai governar Trás-os-Montes? Algum parolo, não? Portugal não está à venda. Ó senhor, se isso fosse assim como é que explica que as Câmaras tenham feito tanta coisa de bom ? Isso é outra coisa. A merda das Câmaras são coisa pequena e mesmo assim - pausa enfática - porra! Diga-me então porque é que países mais desenvolvidos que o nosso têm regiões e o nosso não pode ter? Ó senhora não venha cá com as modernices dos outros, os portugueses não são os franceses. Ainda temos muito para aprender, isso da regionalização, vai ver, é só lá para os seus netos. Vão trabalhar.

O autocarro deixou o homem na paragem, imponente e satisfeito. Arrancou e no breve silêncio que se seguiu, ouviu-se alguém, quase sussurrando, dizer:

- E se tivesse havido um referendo para se decidir se se fazia, ou não, o 25 de Abril?

Sem saber ainda, nesse momento, quem ganhou ou quem perdeu o referendo sobre a regionalização, senti um aperto no estômago ao pensar na possibilidade de um tal referendo. Como seria a campanha do não? Que pretextos é que iriam inventar para recusar um sim à democracia? O analfabetismo dos portugueses? A conspiração comunista? A nossa incapacidade para discernir e escolher quem nos governaria? África e a preservação do império? Quais seriam os pretextos a usar? Desta vez foi o mapa, os novos caciques políticos, a criação de conflitos artificiais entre os portugueses, a despesa pública, a falta de informação e o medo do caos político em que o país mergulharia.

A travagem do autocarro, junto à paragem onde deveria sair, interrompeu o curso dos meus pensamentos. Levantei-me, alguém já tinha tocado, percorri a distância até à porta e saí. O 35 já se tinha afastado quando decidi escrever este testemunho. Talvez porque, descontando o argumento do mapa, todos os outros argumentos de que eu me recordara poderiam ter sido usados, tal como o foram agora, no caso de um apelo ao não num referendo onde a pergunta fosse simplesmente esta: "Concorda que se derrube o governo chefiado por Marcelo Caetano para instaurar um regime político democrático em Portugal ?"

Rui Trindade
Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação
Universidade do Porto


  
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Edição:

N.º 75
Ano 7, Dezembro 1998

Autoria:

Rui Trindade
Faculde de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade do Porto
Rui Trindade
Faculde de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade do Porto

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