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A profissão da mãe

A Rita tem dez anos e gostava um dia de ser treinadora de golfinhos. A predileção pelos animais e pela natureza é uma das características mais marcantes desta menina de cara redonda, rechonchuda e cabelos castanhos aos caracóis. Mas não estamos aqui para falar da Rita. A Rita é que está aqui para falar da profissão da mãe, Augusta Gomes, cozinheira.
Quando iniciamos a conversa, faz logo menção de salientar a importância de haver pessoas que cozinhem para outras. Explica que quando vai ao hospital, para fazer o tratamento a que está sujeita regularmente, a mãe acompanha-a - 'hoje não foi porque ficou sozinha com a Josefina na cozinha', e, nessas alturas, a ausência é notada: 'os velhos queixam-se que a comida é aguada. A Lucinda põe muita água e não deixa cozer bem'.
A Rita conta que a mãe começou a cozinhar muito nova, aos nove anos. 'A minha avó também cozinhava bem e ensinou-a'. Confessa que gosta da profissão da mãe, mas os cozinhados não são com ela. Sabe preparar bolos e outros pratos menos complicados sem nunca ter pedido à mãe que a ensinasse. 'Vem nas receitas, é só copiar', diz com o ar mais natural do mundo. Apesar disso, sabe um segredo: 'a massa dos bolos nunca requer mais de dez dedos'.
Os ovos também têm um truque. Não gostam de dois ritmos, apreciam a cadência de movimento. As claras igualmente. 'Há pessoas que não conseguem fazer crescer as claras, porque desconhecem que elas não se dão em recipientes inox nem gostam de mãos. Apenas da colher de pau'. A maionese, por outro lado, corre o risco de ficar destalhada porque o ovo deve cair 'direitinho' no recipiente, sem abrir ou estourar. Afinal, afiança a cozinheira, 'os alimentos têm sempre razão...'.
As mãos de Augusta Gomes, que hoje amassam, já chegaram a enfeitar montras. Uma actividade que apreciava bastante, confessa, mas à qual não pôde dar continuidade. Essa influência ainda hoje se revela no gosto em fazer arranjos florais, compôr árvores de natal ou bodas de casamento. 'Tudo o que seja para ficar bonito...'.
Talvez por essa razão aprecie tanto a cozinha decorativa, que considera 'uma arte', e ache que os pratos elaborados e atraentes à vista nunca são demais. Mas no local de trabalho não tem oportunidade para isso. 'Só em casa'. O tempo é pouco. Por vezes chega a cozinhar para mais de cem pessoas, quando a capacidade da cozinha do centro social Nª Sr.ª da Boa Viagem, em Vilar, não excede as cinquenta. Não se importa. 'Quanto mais gente melhor, é sinal que funciona bem. Quando deixam de aparecer é que é mau sinal', conta.
'Os idosos que vêm aqui almoçar não gostam de pratos fora do normal, como pizza, omeletes, salada russa com atum ou salsichas. E nem pensar em enroladinhos de hortaliça com filete de peixe no interior - gratinado no forno com maionese fica muito bom', garante.
Tem a certeza que não saía dali para ir para outro lugar. Não se pode dar a esse 'luxo', pelo menos para já. Garante que prefere ter tempo para acompanhar as filhas, 'pelo menos enquanto forem pequenas. A Rita tem uma irmã com quatro anos. Explica que além de a vida profissional num restaurante ser muito exigente e de não se conciliar com as suas preocupações familiares, existe outra razão para a sua permanência: continuar o sonho do pai, o senhor Gomes, director, até há cerca de um ano, desta instituição.
Augusta não se limita ao trabalho na cozinha. Segundo a Rita, por vezes também lava a louça e serve à mesa. 'Não é só cozinheira', explica nos seus termos. E a lista de tarefas não fica por aqui. Conta a própria que a seu cargo está também a elaboração das ementas - dois pratos diários - e a gestão financeira da parte alimentar. Mas, garante, não se importa de assumir todo o trabalho: 'Desde que faleceu o meu pai, assumi o papel de governanta da casa. Cozinhar, só por si, não me preenchia'.
O dia começa cedo, às 8,30, e prolonga-se quase sempre até ao fim da tarde. 'A hora de saída dela é às cinco, mas nunca sai daqui antes das seis horas. Tem de arrumar a louça e de temperar as coisas para o dia seguinte', diz a Rita.
Quando lhe perguntamos porque razão acha que a mãe decidiu ser cozinheira, não sabe responder ao certo. 'Acho que o meu avô sabia que ela era boa cozinheira e pô-la como chefe de cozinha'. Mas não percebe a razão, porque, segundo ela, 'fica cheia de comida' por servir refeições para fora e de cozinhar para mais de uma centena de comensais. Além disso, torna-se complicado porque não pode estrelar ovos. 'O fogão do refeitório é muito potente'.
Os elogios, diz a mãe, são normalmente ouvidos por quem serve à mesa. É certo que em determinados dias a comida não agrada a todos, mas quase sempre o trabalho das cozinheiras do centro é reconhecido. Mas o trabalho na cozinha é simples de definir: 'ou se gosta muito ou não se gosta nada'.

Ricardo Jorge Costa


  
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Edição:

N.º 71
Ano 7, Setembro 1998

Autoria:

Ricardo Jorge Costa
Jornalista do Jornal A Página da Educação
Ricardo Jorge Costa
Jornalista do Jornal A Página da Educação

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