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Joaquim Castro em Kashgar

Abdul Imit

Já esteve na Tunísia, em Paris, Java e no Japão. É um dos raros cidadãos chineses que cometeu a proeza de ter já viajado fora do seu país. E não foi através de qualquer conhecimento nas esferas do partido comunista ou por sucesso económico de mérito próprio.
Abdul Imit é músico. E para além disso é uigur - uma das 55 nacionalidades existentes na China. Foi nessa dupla condição - de uigur e músico - que conseguiu ultrapassar fronteiras: enquanto membro, imprescindível, da companhia de músicos e dançarinos da região autónoma do Xinjiang.
Conheci-o há uns anos. Por mero acaso. Apanhara boleia da camioneta que o transportava, juntamente com o resto da trupe. Iam em digressão. Apesar de não podermos comunicar, estabeleceu-se desde logo entre nós um forte elo de amizade.
Durante quinze dias acompanhei-os no seu périplo pelos oásis do turquestão chinês. Na altura, toda a região estava selada a estrangeiros. Mas, passando umas vezes por tajique, outras por russo, outras ainda por membro do grupo, consegui evitar o controlo das autoridades.
Os espectáculos decorriam em velhas salas de teatro, construídas pelos soviéticos nos anos 50. Feitas de adobe. Pintadas com cores garridas, motivos decorativos em gesso. Parte integrante de bonitos edíficios com um charme muito próprio. Hoje, numa tentativa de apagar a história, os bulldozers da 'era Deng Xiaoping' reduziram-nos a um monte de escombros. Em sua substituição ergueram caixotes de vários andares. Vestidos de ladrilhos brancos e vidros foscos que reflectem quem passa.
Abdul Imit, apesar de jovem, era já um virtuoso na arte de bem tocar o tembur - instrumento tradicional uigur de cinco cordas, braço comprido e som metálico. O tembur é dos instrumentos mais determinantes na execução dos mokam - sinfonias que retratam as tragédias e alegrias na história do povo uigur.
'Todos os mokams reunidos perfazem mais de trinta horas de música', dizia Abdul Imit. Falava-me disso e de outros aspectos da cultura do seu povo, sempre que o visitava. Na sua modesta casa, situada no complexo habitacional que rodeia a escola de música. Na China, os artistas - sejam eles músicos, dançarinos, actores ou artistas plásticos - vivem nas imediações dos locais de trabalho ou de estudo.
Abdul Imit preza os valores antigos que vale a pena guardar. Nunca se esquece de apresentar ao visitante o jarro com a àgua morna, para que este lave as mãos antes de beber o chá e comer o pão de rosca ou o melão que lhe são oferecidos, como manda a tradição.
Abdul Imit vive para o tembur e para o filho de cinco anos que transporta no selim da bicicleta sempre que vai ao mercado fazer as compras caseiras.
Nas horas livres, interessam-lhe os livros de história e geografia. Ou os episódios sagrados do Corão. As ruidosas comezainas, bebedeiras dos amigos e colegas de profissão, deixam-no com um sorriso ao canto da boca e nos olhos semi-cerrados, como quem diz: 'Já dei para esse peditório'.
Abdul Imit não tem peneiras. Alheio a vedetismos, dedica-se com corpo e alma ao instrumento que elegeu. Costuma tocar o Bella Ciao, e até no universo musical ibérico faz incursões despretensiosas. Foi com espanto que o ouvi tocar 'Abril em Portugal'. Com todo o sentimento de um fadista. Apesar de não saber que estava a tocar uma canção portuguesa na minha presença.


  
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Edição:

N.º 69
Ano 7, Junho 1998

Autoria:

Joaquim Castro
Fotógrafo e Jornalista
Joaquim Castro
Fotógrafo e Jornalista

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