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Democracia participativa e democracia representativa

O poder na escola e o novo projecto de autonomia e gestão

Do projecto de autonomia das escolas do ensino básico e secundário apresentado pelo Governo para discussão transparece a distinção entre a vertente representativa e a vertente participativa na gestão democrática das escolas, e a intenção de acentuar a vertente participativa. Procura-se assim abrir a escola a todos aqueles que fora dela possam ter uma palavra a dizer sobre o seu funcionamento e finalidades: ou seja, à chamada 'comunidade educativa'.
Louvável intenção, por certo; mas não isenta de riscos. Há sempre, tanto na gestão das sociedades como das escolas, uma enorme dificuldade em compatibilizar democracia participativa com democracia representativa; e a opção irreflectida por aquela em detrimento desta pode ter o efeito - admito que nem sempre desejado - de subverter a democracia, transformando-a numa espécie de totalitarismo orgânico aberto a todos os tribalismos e permeável a todas as formas de corrupção.
Com efeito, todas as tentativas de alargar os mecanismos de participação nas sociedades tem-se confrontado com um problema de princípio que pode ser definido nesta questão: dado que a participação na tomada de decisões é um exercício de poder, como assegurar a legitimidade democrática de 'participantes' que não respondem perante uma base eleitoral específica, e a quem não foram definidos mandatos claros, transparentes, limitados não só no tempo mas também no objecto? A uma assembleia representativa é sempre matematicamente possível, pelo menos em teoria, representar todos mas numa assembleia 'participativa', por mais aberta que esteja à participação de muitos, os muitos serão sempre só alguns; e esses ou se representarão a si mesmos, ou quando muito a interesses localizados, indefinidos, obscuros, ou alheios à instituição que governam. Não se sabendo claramente a que título, ou com que mandato, ou em representação de quem, uma dada pessoa participa num dado órgão de decisão, abrem-se naturalmente duas frentes de conflito: por um lado, quem fica de fora verá sempre nos de dentro um establishment autocrático e sem rosto, de cujas decisões não há recurso possível; e por outro lado, no caso de coexistirem no mesmo órgão representantes mandatados e 'participantes' sem mandato, um conflito pior, porque perverso, entre legitimidade e autoridade.
Qualquer experiência comunitarista que pretenda introduzir mecanismos de democracia participativa nas escolas - como em qualquer instituição da sociedade ou do Estado - há-de ser precedida de uma reflexão cuidadosa sobre as formas de legitimação dos poderes que institui, formas essas que não começam nem acabam no mero exercício do voto. Consequentemente, há-de satisfazer três condições, que tenho por irrenunciáveis: a) que o princípio da representação não seja subvertido ou viciado pelo da participação; b) que seja tida em conta a especificidade da comunidade especifica no contexto da comunidade alargada - ou seja, no caso vertente, da comunidade escolar no contexto da comunidade educativa; e c) que se respeite o princípio da reciprocidade nas relações de participação entre os diversos intervenientes institucionais.
Ora o projecto que nos é apresentado não dá mostras de ter sido precedido desta reflexão nem satisfaz nenhuma destas condições. Nos seus termos actuais, o documento subverte e vicia o princípio da representação democrática. Introduz na Assembleia de Escola, órgão a que são atribuídos poderes decisórios, entidades a quem as decisões tomadas não oneram nem vinculam. Prevê que tenham poder decisório na escola, indiscriminadamente, os professores, os estudantes, os encarregados de educação, os funcionários, as autarquias, as forças económicas circundantes e as instituições culturais.
Dos representantes dos professores e dos alunos, sabe-se perante quem respondem e com que mandato comparecem na assembleia. Têm a defender direitos que se realizam na escola e cujo exercício realiza a escola: o direito de ensinar e de aprender. O seu mandato é claro e natural, e a legitimidade da sua representação é evidente.
Quanto aos encarregados de educação, representam os seus educandos, mas em caso algum deve ser permitido que se representem a si mesmos. Isto significa que só devem ter assento nos órgãos de gestão de cada escola os encarregados de educação dos alunos dessa escola; de outro modo não se saberia se os interesses por eles defendidos seriam educativos ou outros, se a sua responsabilidade seria educativa ou outra, nem se o seu mandato seria educativo ou outro. O projecto do Governo não refere por quem serão escolhidos os encarregados de educação presentes nas assembleias, nem se a escolha será feita a nível nacional, regional, local ou de escola. O que fica em aberto é a possibilidade de os representantes dos pais serem mandatados pelas cúpulas associativas, e não pelos encarregados de educação dos alunos que efectivamente frequentam cada escola. Se isto vier a ser permitido, poderão os encarregados de educação participar na gestão de uma escola e matricular os filhos noutra, subtraindo-se assim às consequências das decisões em cuja tomada participaram. Uma tal desoneração dos eleitos já seria de duvidosa democraticidade numa assembleia representativa; mas numa assembleia que se anuncia participativa é o princípio mesmo da tirania.
Para finalizar o elenco das entidades com participação legítima no governo das escolas, falta referir os funcionários. Respondem perante um corpo eleitoral limitado e definido. A legitimidade da sua participação não oferece dúvidas: a escola é o seu lugar de trabalho e têm nela interesses, nomeadamente laborais, a defender. O mesmo não se passa, porém com a validação a priori do seu mandato: contrariamente aos professores, que para além de interesses laborais, têm a defender interesses profissionais que se consubstanciam com a função específica das escolas, os funcionários não têm funções de ensino, e só acessoriamente têm funções educativas. A sua participação na gestão das escolas tem de ser qualitativamente diferente, e não só quantitativamente, da dos professores, alunos e representantes adultos dos alunos na mesma gestão.
Mas perante quem respondem, por exemplo, os representantes das autarquias? Perante o autarca que os nomeou? E com que mandato foram nomeados? O de fazer cumprir as políticas educativas do poder local? Mas neste caso não seria mais simples, e mais honesto, que ao poder local fossem cometidas competências de política educativa? Ou será o poder 'participativo' que se pretende dar as autarquias nas escolas um mero alibi para que se lhes não dê nunca a mínima parcela de poder hierárquico sobre as escolas?
E que interesses representam os delegados das empresas? Que garantia temos ou podemos ter que esses interesses serão coincidentes - ou sequer compatíveis - com o direito dos alunos a aprender e dos professores a ensinar? Se a empresa representada for uma papelaria, estará naturalmente interessada em vender material escolar; se for um talho, em abastecer a cantina escolar; se for um construtor civil, em reparar os telhados da escola; e tudo nas melhores condições possíveis de preço, e de prazos, e de fiscalização. Deverão estes interesses, mesmo que legítimos, sobrepor-se doravante aos fins específicos da escola? Deveremos permitir que influam nas classificações dos alunos, nas carreiras dos professores? E se um delegado de uma empresa, por razões de concorrência ou outras, obstar a que a escola de cuja assembleia faz parte confira aos seus alunos determinadas competências profissionais - será isso, porventura, que o impedirá de procurar essas mesmas competências noutra escola?
No taxation without representation foi o primeiro princípio político da Revolução Americana. Do inverso não se fez divisa; mas se tomarmos taxation não no sentido de 'imposto', mas no sentido mais geral, que também tem, de 'obrigação', veremos que se fez prática da qual até hoje nenhuma democracia quis prescindir: no representation without taxation. Não pode estar representado na escola, com poderes de decisão, quem não tem interesses específicos na escola nem obrigações específicas para com a escola. Quem tem direito antes de mais a participar nas decisões da escola são os professores e os alunos; e, a título de representação dos seus educandos, os encarregados de educação. A participação dos funcionários deverá ser plena no que respeita os poderes consultivos, mas mitigada no que respeita os poderes deliberativos. Quanto aos outros interesses, a sua representação deverá ser meramente consultiva. De outro modo, os pais, as empresas, as autarquias, as associações culturais, as Igrejas e o próprio Estado configurar-se-ão não como responsáveis pelo processo educativo, mas como seus destinatários; e isto relegará os alunos para a condição coisificada de sua matéria-prima e objecto.

Também não se vê que este documento satisfaça a segunda condição que enunciei: que se reconheça a especificidade da comunidade escolar em relação à comunidade educativa. Esta omissão é tanto mais estranha quanto é certo que existe na sociedade um consenso alargado e pacífico quanto à natureza e limites da primeira o que de modo nenhum é o caso em relação à segunda. Onde houver um professor e um aluno, há uma comunidade escolar, nem que seja debaixo de uma árvore ou numa ilha deserta. Mas onde não houver professor ou aluno, aí nem o mais funcional dos edifícios escolares; nem a mais eficiente das secretarias; nem o mais organizado dos ministérios; nem a mais dedicada das organizações de pais; nem o mais bem equipado dos laboratórios; nem o mais atraente dos pavilhões desportivos; e até nem mesmo a mais rica das bibliotecas poderá fazer surgir uma comunidade escolar onde não a há nem pode haver.
A especificidade da comunidade escolar há-de resultar da especificidade da função da escola no processo educativo. É certo que não só a escola educa: educam também as famílias o Estado, as Igrejas, as empresas, os media, os clubes desportivos, os grupos de afinidade, as redes sociais e informáticas, os gangs - que sei eu? Todos estes contextos, para o bem ou para o mal, transmitem conhecimentos, definem valores, induzem comportamentos, socializam atitudes, integram identidades, exercitam perícias. Neste contexto para que servirá a escola se não tiver uma função clara, definida e específica? Para fazer o que outros fazem melhor? Demasiados alunos acham que a escola é inútil e desinteressante; e a explicação mais corrente para este desinteresse é que a escola não reflecte suficientemente os seus contextos culturais, sociais, familiares e económicos: ou em eduquês, as suas 'vivências'. Ora o que eu afirmo é o contrário: a inutilidade da escola não resulta de reflectir insuficientemente estes contextos, mas sim de reflectir insuficientemente sobre eles. Que fique claro: a função específica da escola é transmitir um património cultural, técnico e científico de uma forma sistemática, articulada, coerente, completa, complexa, exaustiva e contextualizada. Não é educar educando; é educar ensinando.
O documento sobre autonomia e gestão das escolas reflecte a aversão que os responsáveis pela educação têm ao ensino. Nos documentos oficiais e nos textos teóricos sobre política educativa o próprio termo 'ensino' raramente aparece, a menos que acompanhado (policiado?) pela palavra 'aprendizagem'. Não é de admirar, portanto, que este documento não só não reconheça a especificidade da comunidade escolar, como nem sequer se lhe refira uma única vez. Tudo se passa como se a escola fosse um momento fractal da comunidade educativa, e esta da comunidade política, e esta, quiçá, da comunidade humana: cada parte indiferenciável do todo. A escola seria assim um universo, e o universo uma escola. Cabe aos professores, aos alunos e aos pais afirmar, contra os políticos e contra os pedagogos, que a escola não é uma excrescência indiferenciada e caótica da comunidade, mas um órgão específico da sociedade que produz, reproduz e transmite conhecimento organizado.
Finalmente, o documento não satisfaz a condição da reciprocidade. Com que direito vão estar representadas na escola instituições ou pessoas colectivas em que a escola não está representada? Uma escola tem tanto direito a participar na gestão de uma empresa como a empresa tem de participar na gestão da escola. Esta participação nunca poderá ter lugar em órgãos com poder decisório: as empresas, porque são livres de a aceitar, não a aceitariam; as escolas, que não são livres, só o fariam por violentíssima imposição da tutela, e não sem uma longa, surda, destrutiva, determinada e amarga resistência. E mesmo depois de se renderem ao inevitável, tudo fariam para boicotar poderes que não deixariam de sentir como usurpados.
Em órgãos puramente consultivos, pelo contrário, tudo é possível e rico de potencialidades. A primeira vantagem da reciprocidade das representações seria o enorme reforço dos laços de ligação entre a escola e o meio. Estando a escola representada num conjunto de empresas, associações, instituições culturais e desportivas, e estas nela, seria possível que cada interveniente tivesse uma ideia dos problemas específicos dos outros; que todos tivessem uma ideia mais exacta dos problemas e condicionalismos específicos da sua envolvente social e territorial comum, e que se criassem sinergias facilitadoras do trabalho de todos. Em segundo lugar, o princípio da reciprocidade levaria à constituição automática de um mecanismo regulador de responsabilidades: a disponibilidade das empresas, associações ou instituições culturais para se abrirem à escola constituiria critério da sua admissão na escola, e garantia da sua participação responsável.
Este princípio poderia mesmo alargar-se às relações da escola com as autarquias, devendo no entanto articular-se, num futuro cenário de descentralização administrativa que devolvesse competências educativas ao poder local, com a relação hierárquica que se viesse a estabelecer, de modo a não subverter a autoridade dos órgãos autárquicos com jurisdição sobre as escolas. A intervenção da autarquia na escola far-se-ia assim por duas vias: pela autoridade hierárquica e pela participação consultiva recíproca.
Para concluir e concretizar, proponho que a assembleia de escola prevista neste documento seja eliminada, e as suas competências devolvidas a um conselho pedagógico constituído exclusivamente por representantes dos professores - nunca menos de 50% - e dos alunos. Podem incluir-se neste número encarregados de educação de alunos que efectivamente frequentem a escola, eleitos por um universo eleitoral que satisfaça a mesma condição.
Os funcionários, autarcas, empresários etc, bem como os representantes das associações de pais cuja base territorial coincida com a área de implantação da escola, deverão estar representados num órgão ou em órgãos com poderes exclusivamente consultivos, podendo a representação dos professores e alunos neste órgão ou órgãos ser maioritária ou minoritária. As pessoas colectivas participantes neste órgão nomearão os seus representantes com base no já enunciado princípio da reciprocidade a excepção a esta exigência será a associação de pais, à qual em contrapartida se exigirá que os representantes nomeados para a escola tenham filhos a frequentá-la, ou sejam nela professores ou funcionários.
Quanto aos funcionários, devem ser encontrados mecanismos que permitam a sua participação em certas decisões da escola, incluindo algumas de âmbito pedagógico geral; mas deve ser-lhes vedado decidir sobre questões especificamente didácticas. Qualquer sugestão que eu fizesse sobre estes mecanismos obrigar-me-ia a elaborar articulados concretos, o que, sobre ser atrevimento da minha parte, não caberia no âmbito nem no espírito deste artigo.
Sou mais filho de Hobbes que de Rousseau; acho que sem o primeiro o mundo seria hoje um pouco menos democrático, e um pouco menos totalitário sem o segundo. Acho, como os autores do projecto, que a educação é mais importante que o ensino, mas contrariamente a eles estou cada vez mais convicto que é ensinando que a escola educa. Assisto há anos, consternado e impotente, à progressiva canibalização da didáctica pela pedagogia; este projecto é mais um passo nessa direcção. E sou professor há demasiado tempo, investi na minha profissão demasiado esforço, para assistir agora, sem reacção nem protesto, à tomada de poder na minha escola por toda a sorte de interesses obscuros. Não quero lá gente que não represente quem diz representar; não quero lá gangs, nem milícias populares, nem lobbies secretos, partidos políticos, só às claras, e mafias, nem às claras nem disfarçadas.

José Luís Sarmento

Mestre em Estudos Anglo-Americanos professor do ensino secundário

 


  
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Edição:

N.º 65
Ano 7, Fevereiro 1998

Autoria:

José Luís Sarmento
Mestre em Estudos Anglo-Americanos. Professor do Ensino Secundário.
José Luís Sarmento
Mestre em Estudos Anglo-Americanos. Professor do Ensino Secundário.

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