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Comentários de Risco em Momentos de Crise

Entramos em 1998 com três debates importantes pela frente: orientações para a Direcção e Administração das Escolas; orientações sobre matéria disciplinar e, um pouco mais adiante, os critérios de validação dos cursos de formação inicial de docentes. Sobre o primeiro tema publicámos, no número de Novembro, matéria que julgamos útil ao debate. Sobre a questão da disciplina, neste número, José Pacheco intervém com um texto que concorre certamente para a apreciação do documento em questão. Neste editorial abordaremos algumas questões em torno da formação dos professores. Em quase todos os países os Sistemas Educativos viveram mais um ano de descrédito. O curioso é que, vindo este descrédito já de longe, se mantenham em cena os mesmos protagonistas. Esta persistência em manter em cena os artistas formados no final da década de sessenta parece demonstrar, que apesar da degradação do sistema, a classe dominante no poder não quer uma verdadeira alteração da situação educativa vigente. Não faltam artistas novos com talento, o que falta é vontade política de mudar o velho pelo novo e de procurar outras vias para o ensino e a educação de que as sociedades actuais necessitam. Juntamente com um amplo elenco, a prática docente também protagoniza, no cenário educacional, momentos de crise. A gosto ou a contragosto os educadores e professores são actores da peça e nela desempenham papel relevante. Os que não gostam do espectáculo e do papel que nele desempenham e se doem com os apupos da plateia, não podem deixar de se questionar. A temática da formação de professores, a sua atitude face aos currículos e programas com que trabalham, a sua prática educativa, são questões, entre outras, que não podem escapar da ordem do dia das discussões, entre docentes, sobre educação. Nalguns casos no interior, mas mais vezes à margem do sistema, muitos professores e algumas escolas têm, felizmente, ensaiado novas experiências em diversos campos. Algumas destas experiências merecem atenção e acompanhamento. Estão neste caso, por exemplo, a criação de Centros Integrados de Escola (não se confundam com os nossos centros de formação de escola, que geralmente se limitam a vender, por ementa, más acções de formação). Estes centros tornam rotina o repensar da prática dos professores; são parte do regulamento interno das escolas que os criam os quais regulam o tempo que os professores dedicam ao estudo, à investigação e ao planeamento e avaliação das suas actividades. Pouco ou nada têm a ver com a rotina das nossas escolas. Estão para lá das concepções individualistas de trabalho e trocam o grupo/disciplina por concepções de trabalho em equipas multidisciplinares; o trabalho de investigação, estudo, planeamento, avaliação das práticas educativas ganha uma dignidade pelo menos idêntica ao do trabalho em sala de
aula, o que produz consequências na organização dos horários dos professores, na organização das equipas educativas e na reanálise dos curricula e programas. Outra experiência, esta implicando maiores sacrifícios dos professores, é a criação das chamadas escolas de 35 horas, distribuindo a actividade dos professores por prática lectiva em sala de aula, acompanhamento de grupos de alunos, planeamento, formação e investigação. O que nesta experiência mais me atrai é a capacidade dos professores quebrarem, por sua iniciativa, a rigidez e uniformização, dos tempos que cada um dedica ao trabalho em sala de aula. É interessante ver os professores romperem rotinas, constituírem equipas e distribuírem entre si papéis diferenciados mas que no seu entender servem os interesses do ensino e das equipas que formam. Também aqui não conheço nenhuma experiência do género em Portugal e porventura a legislação rígida que temos dificilmente permitirá ousar avançar neste campo. Se existe alguma coisa de parecido, estamos abertos à sua divulgação. Finalmente queria referir uma outra experiência, esta menos arriscada e menos desafiante da lei vigente, e que consiste tão semente na promoção de reuniões de carácter pedagógico, assistidas por especialistas da educação, com o objectivo de dinamizarem esses encontros de modo a objectivarem a definição de projectos educativos. Como esta iniciativa está mais conforme com a lei não vejo razão para que não se divulguem os seus resultados. É com bastante prazer que vou sabendo destas e doutras iniciativas clandestinas. Em Portugal, como noutros países, continua a haver nas escolas professores e professoras com uma excelente capacidade para transgredir a lei, e transgredindo inovar, particularmente em contexto de sala de aula. Isto revela uma apetência para subverter os tristes papéis que são distribuídos aos professores e a vontade de criar outros personagens mais capazes de animar e responder às necessidades e expectativas do público. 0 aborrecido está no facto de a verdadeira inovação estar ainda condenada a uma espécie de semiclandestinidade. A Esperança resulta aqui da convicção de que estas ou outras experiências se validam na rotina das escolas transformando em lei o que antes era proibido. A dificuldade em avançar para novas experiências não está só na rigidez do sistema e dos regulamentos. Os professores estão sob outras ameaças de deformação que em nada concorrem para a inovação de que o sistema carece. Sumariso três que me parecem, entre nós, as mais vulgares: a resposta a várias necessidades de formação de grupos de professores com recurso a formas de formação à distância (mesmo nos casos da formação profissional); orientações no sentido da formação em áreas muito estritas do saber dos professores; orientações centradas na norma, na técnica de ensinar, na dimensão humana ou no contexto social. Salvo melhor opinião, parece-me que se deve contrariar esta tendência para atomizar os conhecimentos necessários à formação dos professores.
Isto implica um olhar crítico, e partilhado pelos docentes, para os currículos de formação inicial dos professores, para os 'cursos' pensados para complemento ou alargamento de habilitações e, naturalmente, para as práticas de formação continuada que andam por aí. Valeria a pena discutirmos como avançar para uma política multidimensional da nossa formação, capaz de nos ajudar a construir a nossa nova identidade profissional. Uma colega brasileira dizia-me que lhe parecia que 'a alegria de ensinar e aprender perdeu o endereço. A gente viveu tempo demais na crise. Se machucou tanto que não há como dar volta ao desencanto. É preciso encontrar outros destinatários, gente nova capaz de apostar no novo magistério e de construir uma nova identidade profissional'. Não estou assim tão pessimista. Não sou dos que pensam que os professores mais velhos só têm vícios e nenhum saber profissional. Pelo contrário, altere- se o contexto de trabalho, permita-se-nos a autonomia e acredito que os professores serão capazes de dar a volta ao texto. Mas parece-me que é pertinente a elaboração de novos currículos e programas dos cursos vocacionados para o ensino, destinados aos futuros professores, e que se altere muita coisa para que a profissão seja escolhida, porque se deseja e se aposta nela, e não como último recurso de emprego. A proliferação de cursos vocacionados para o ensino, sem rei nem roque, tem sido, nos últimos anos, um dos piores serviços prestados ao nosso ensino. Muito do que se passa por aí é, no mínimo, escandaloso. O Ministério parece ter acordado finalmente para este problema e consta que estão prestes a sair linhas orientadoras para a validação dos cursos na área do ensino. Qual a participação dos professores, e das organizações que os representam, na análise desta questão fundamental para a profissão e para o futuro da escola? Mais uma vez - o sistema está em crise mas os protagonistas são sempre os mesmos - a coisa pensa-se e cozinha-se lá em cima e depois simula-se a auscultação da nossa opinião sobre o que já está feito! Não será já tempo de contar com o saber e experiência dos professores quando se quer abordar matéria tão fundamental para o futuro da profissão? Porque se teima em processos centralizadores? Porque razão se não criam formas organizativas que permitam a participação normal dos mais interessados na construção das políticas e das soluções? Os currículos e os programas de formação de professores necessitam, antes de mais, de ganhar interlocução com o tempo histórico em que vivemos e de redefinir o perfil dos educadores e da sua acção. As novas competências dos professores exigem um novo elenco de disciplinas e actividades que concorram para que o professor adquira uma relação instituinte com o saber, de modo a ser capaz de aliar o conhecimento às experiências dos sujeitos que é chamado a educar e assim recriar as possibilidades de transformação das pessoas e da sociedade em que vive. A nova política de formação deve concorrer para que os profissionais do ensino exerçam uma consciência crítica e reflexiva sobre o processo
educacional. É inqualificável que muitos professores e professoras se mostrem incapazes de assumir um discurso crítico sobre os alunos e se limitem a um discurso sobre as aparências imediatas desses comportamentos. Precisamos de educadores e professores capazes de escaparem da mera denúncia e que sejam capazes de anunciar novas possibilidades de educação, desenvolvendo as capacidades de pesquisa, de utilização acertada de novas tecnologias, de autoria do seu saber profissional e de cumplicidade com a sua própria formação permanente. Será necessário ainda entender com clareza que há diversas instâncias que concorrem para a formação e deformação dos profissionais de ensino. Os professores devem ganhar essa capacidade de distinção e fazer ruir tudo o que anda por aí, sob a capa de formação, a deformar profissionalmente os docentes. Não nos parece que se possa responder aos desafios da nova formação dos professores através de projectos e programas, vindos de cima, construídos por pessoas, grupos ou empresas exteriores à escola e que retiram aos professores a autoria da sua prática e saber profissionais. Ao escrever neste jornal, com datas tão apertadas e por assumido dever de ofício, corremos o risco de fazer o que entendemos que hoje se não deve fazer, isto é, responder aos enormes desafios do ensino/aprendizagem com comentários simplistas construídos tantas vezes a partir de leituras simplificadas. Escrever em jornais é um risco. Face à pertinência da questão da formação dos professores, aqui fica, mais uma vez, o risco assumido. Se o que fica escrito provocar uma conversa por certo valeu a pena.

José Paulo Serralheiro


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 64
Ano 7, Janeiro 1998

Autoria:

José Paulo Serralheiro
Professor e Jornalista. Director do Jornal a Página da Educação.
José Paulo Serralheiro
Professor e Jornalista. Director do Jornal a Página da Educação.

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