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Homicídio na Câmara do Porto

Estreia literária

Sandra Neves é um nome a levar em conta na literatura portuguesa depois da publicação de uma primeira obra tão adulta e bem estruturada como «Homicídio na Câmara Municipal» (Gradiva). Segura na construção das personagens, na recriação de atmosferas, no recurso a paisagens e lugares com sinalização toponímica (contrariando a moda do apagamento dessas marcas quando no dealbar dos anos 20 do século passado já Kafka o fazia, em bom), a nova ficcionista revela notável conhecimento da realidade humana com que abastece o seu discurso romanesco.
Sublinhe-se a capacidade de não abdicar da soberania sobre a narração do princípio ao fim, evidenciando um estilo apelativo cujos lampejos encantatórios mantêm o leitor agarrado à leitura sem que tenha de se haver com arritmias impertinentes, alçapões inesperados ou armadilhas letais.
A prosa escorreita obedece, no geral, ao princípio da clareza, havendo como que um regresso à boa escrita que flui naturalmente, como a água que corre, ao encontro de quem preza uma história cativante, plurifacetada, num palco onde nem mesmo a fugaz acentuação declamatória infere a falta de ação.
Aliás, ação é coisa que não falta por aqui, dela dimanando o entusiasmo vital de quem logrou concretizar com sucesso o sonho maior, a aspiração de sempre. Uma escrita sem momentos mornos introduz-nos, com inteiro à vontade, no meandroso quotidiano cujas tensões e angústias são as de quem passa fome, sim, mas de poder.

Duas histórias. Sandra Neves utiliza uma figura de linguagem, o anacronismo (o tempo da ação vai de 2034 a 2037), para baralhar as coisas. Mas baralha pouco.
Acaba por ser gato escondido com o rabo de fora. O que temos é um enredo de figurino conservador, muito década 10 do século XXI, com um partido do “arco do poder” infiltrado de jurássicos e aristocratas eleitos para supostamente cuidarem dos interesses das populações e incrementarem negócios quase sempre centrados na “requalificação” dos espaços urbanos.
Quando é dito, por quem já conhece a obra, que «Homicídio na Câmara Municipal» é um policial híbrido, isso significa um convite à partilha de duas histórias em vez de uma. Uma conta a versão do crime; a outra conta a instrução do processo. À partida, nada de extraordinário: até certa altura, as histórias seguem a par, complementam-se.
Mas qual é o verdadeiro desejo da autora, na ocasião de ter de optar por uma das histórias?
Alargar horizontes. Sandra Neves não perde tempo a desvendar quem é o assassino e aí trai a vontade de não conceder a esse facto importância nuclear. As regras convencionais do policial recebem desde logo um duplo safanão: o nome do assassino é revelado à página 66 (numa massa compacta de 313), transgredindo a regra básica de que o detetive é sempre inocente e que o nome do autor material do crime deve ser mantido secreto até às últimas páginas.

Opacidade e enigma. As intuições da romancista levam-na a conferir ao “processo” um grau de relevância superlativo. Mantendo as personagens (mas não o leitor) no completo desconhecimento da identidade de quem executou o nefando ato, acaba por fazer com que, na prática, a segunda história venha a herdar o potencial de opacidade e enigma precocemente sonegado à precedente.
Ganha então amplitude o papel da jovem procuradora do Ministério Público, Maria das Dores: ela encaminha a investigação no sentido de comprometer o todo-poderoso presidente da Câmara do Porto, João Santiago, virtual candidato a primeiro-ministro, colocando-o sob suspeita de estar envolvido em cambalachos relacionados com o chamado Novo Empreendimento, que modificará a fisionomia da Baixa e a coberto do qual se movem interesses e criaturas pouco recomendáveis.
Paralelamente a estas diligências, sendo a procuradora acolitada nas inquirições pelo assassino de Alexandre Sem-Medo, o inspetor André, eclode uma tórrida paixão entre a secretária do presidente, Leonor Teles, e o grão fino Pedro Vilaça e Aragão, vice-presidente colocado na Câmara por Gonçalo, o líder do partido a que todos pertencem, para “vigiar” o superior hierárquico, visto ser ele, Gonçalo, também putativo candidato ao cargo de primeiro-ministro.

Todos a subir na vida. Como se vê, a trama policial é deslocada para uma zona de sombra, dando lugar ao enredo mais vasto que abarca o amor, a ambição política, cenas de caça entre correligionários, assédio sexual, adultério, moscambilhas cozinhadas num grande escritório de advogados, desencantos vários à medida que a aura de certas personalidades se vai diluindo (João Sant’iago, Gonçalo) ao serem conhecidos os seus rabos-de-palha, uma gravidez incómoda, ajustes de contas a tiro, a impunidade do mandante do crime, o “Chefe” e, num plano superior, o recorte prodigioso das engrenagens da corrupção.
Aparte o resultado do tiroteio no Aeroporto Francisco Sá Carneiro, tudo acaba mais ou menos bem, com quase toda a gente a subir na vida: João vai a PM, o Vilaça a presidente da Câmara, a Maria das Dores a procuradora geral, enquanto o “Chefe” planta tranquilamente café em Angola e Gonçalo salda as contas do dinheiro “adiantado” pelos cofres partidários para lhe resolver os calotes contraídos ao sabor das suas atribulações de mulherengo incorrigível. E com a Leonor Teles a oferecer um bastardo ao amante de Cascais.
Quanto ao futuro PM, nado e criado no concelho do Porto, oriundo de famílias humildes, só lhe contabilizei três palavrões.
Achei pouco.

Júlio Conrado


  
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Edição:

Edição N.º 202, série II
Inverno 2013

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