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Unicepe: 50 anos de resistência e de afetos

Vem, serenidade, / não apagues ainda / a lâmpada que forra / os cantos do meu quarto, / o papel com que embrulho meus rios de aventura / em que vai navegando o futuro.

Raul de Carvalho, Serenidade és minha

Foi entre livros, palavras, sons e imagens que a PÁGINA vagueou pelas linhas que marcam os 50 anos da Unicepe – Cooperativa Livreira de Estudantes do Porto. Com os versos de Raul de Carvalho, pela voz de Rui Vaz Pinto, partimos à aventura de regressar ao passado da instituição, onde a ideia inicial era conseguir livros mais baratos e os livros proibidos pelo regime, até ao hoje e ao amanhã, que se quer que se mantenham de identidade, de resistência e de serenidade.
Corria o ano de 1963 quando surgiu a República 24 de Março, fundada na mesma data por um grupo de estudantes da Universidade do Porto, junto à Maternidade Júlio Dinis. Ali nasceu a ideia de criar uma cooperativa que de alguma forma permitisse o acesso a livros mais baratos e a outros que não estavam à venda, proibidos pelo regime. Nasceu então a 19 de novembro do mesmo ano a Unicepe – lugar também de afetos, onde a Cultura desempenhava, então como agora, um papel preponderante.
“Na altura, os livros eram muito caros, pelo que tratou-se de arranjar maneira de ter os livros mais baratos e também de ter livros que não estavam à venda, livros proibidos, considerados importantes. Mas a ideia era também realizar atividades culturais, como encontros com escritores e outros”, conta Rui Vaz Pinto, lembrando que muitas dessas iniciativas eram permitidas, mas que muitas outras foram interrompidas pela polícia. “Quantas vezes eram interrompidas…”
A mesma polícia que entrava na Unicepe com mandados para apreender determinados livros e discos, ou que, por vezes, os levava mesmo sem mandados.
Muitas das obras chegavam através de pessoas que as enviavam de França ou Espanha, emigrantes que traziam os livros camuflados. Mas também havia livros portugueses proibidos e as maneiras de os esconder eram variadas, no frigorífico ou na “adega”, onde estava a máquina de café. Apelava-se à discrição, pelo que havia técnicas para chegar a essas obras. “Por exemplo, se vinham à procura de um livro de Lenine, pediam um livro do Vladimir, se era do Marx, diziam do Karl M. Diziam coisas assim para não atrair”, explica o presidente da direção da Unicepe.
Havia também encontros com músicos, escritores e outras personalidades, e tertúlias, muitas em parceria com a Cooperativa Árvore, o Cineclube do Porto ou o Teatro Experimental do Porto. Funcionava o espírito da cooperação, do trabalho em conjunto, não só na organização de atividades como nas regalias.
“Era um ponto de resistência!”, frisa Vaz Pinto, lembrando que até ao 25 de Abril, “a cooperativa foi crescendo rapidamente, atingindo 3810 associados. A grande maioria estudantes”.
Já com liberdade e sem censura, a Unicepe continuou a crescer, não só em número de associados, como na realização de atividades. Muitos poetas, escritores, músicos e outros artistas já passaram pela cooperativa para tertúlias, encontros com muito diálogo e passagem de testemunho histórico e emocional. José Saramago foi um deles. “Esteve aqui em 1984. Ano e meio depois de ter lançado O Memorial do Convento. A sala estava a abarrotar… Aqui anunciou O ano da Morte de Ricardo Reis. Foi uma noite memorável”.

Rui Vaz Pinto recorda-se também de certas noites internacionais.

“Tivemos aqui um ciclo semanal, que se chamou Primeiro Encontro Porto-Galiza, com o Viale Moutinho a coordenar, onde estiveram vários poetas galegos”. E da presença do poeta galego Manuel Maria, “um dos grandes poetas” – “esteve aqui no inolvidável 44º Jantar de Amizade, em 2002.”

Resistir com o voluntariado

Rui Vaz Pinto ligou-se cedo à Unicepe. Primeiro, através do Cineclube do Porto (no âmbito das referidas regalias entre instituições); depois, já como associado, quando regressou da tropa e estava a terminar o curso de Economia. “Passei a frequentar a cooperativa diariamente. Trabalhava na Rua de Ceuta e vinha comer à cantina da universidade. Tinha duas horas para almoço e uma hora era passada aqui, todos os dias, a ver os livros que chegavam”, conta, lembrando que nessa altura a instituição já apelava à colaboração dos seus membros.
Por isso, também, a convite de um amigo, aceitou fazer parte da única lista concorrente aos órgãos sociais para o ano de 1979. Foi eleita e Vaz Pinto começou por recuperar o atraso da contabilidade, embora seja desde sempre um amante das letras, também por influência do avô poeta.
Depois da queda da ditadura, e à medida que o tempo foi passando, as dificuldades foram aumentando. “A cooperativa vivia essencialmente do livro técnico universitário. Quase toda a Universidade estava aqui ao lado e mais de metade das vendas eram referentes ao livro técnico. Com o 25 de Abril houve uma expansão, uma explosão da Universidade.
As faculdades começam a sair daqui, a ter livrarias especializadas e, portanto, perdeu-se o livro técnico universitário”.
Entre riscos, “utopias” e investimentos, como a compra de carrinhas para levar livros às fábricas, ou a falta de controlo das cobranças e o vender e não receber, a cooperativa passou por momentos difíceis, com prejuízos e dívidas. Foi preciso muito trabalho para a levantar e houve decisões complicadas a tomar. O quadro de pessoal foi diminuindo e o trabalho voluntário aumentando. “Foram períodos de grande dificuldade.
Temos resistido, graças aos associados que vêm aqui dar muito do seu tempo livre.”
As estantes que outrora estavam carregadas de livros técnicos passaram a ser ocupadas por livros de poesia, de arte e outros não especializados, pela ficção, estrangeira, mas principalmente portuguesa. “Apostamos num bom stock, não tanto quanto gostaríamos, porque o espaço também não permite, mas fazemos por ter o que consideramos que é indispensável, como Camões, Gil Vicente, Vieira, Garrett, Camilo, Eçs, Pessoa, Aquilino, Fernando Namora, Miguel Torga, e muitos outros”, explica o presidente da cooperativa, adiantando: “Aparecem aqui, frequentemente, pessoas à procura de um livro que não encontram em lado nenhum. E nós temos, e se deixarmos de ter mandamos vir rapidamente.”
A oferta passa também por revistas, discos e arte. E por muita criatividade e vontade, que põem a funcionar muitas atividades que continuam a juntar pessoas do mundo inteiro e das mais variadas áreas. “Em 1996 começámos a fazer um jantar mensal, chamado Jantar de Amizade Unicepe, às segundas quartas-feiras. Já fizemos 129. Tem sido muito bonito, muito heterogéneo, e já tivemos convidados de muitos países, como o Japão, Chile, Panamá, Estados Unidos da América, Brasil e Espanha”, refere Vaz Pinto, acrescentando que no final há tertúlias sobre diversos temas.
A somar à participação na iniciativa Bairro dos Livros, que junta livrarias e alfarrabistas da Baixa do Porto, nas quartas quartas-feiras do mês, a Unicepe realiza homenagens a escritores; e nas primeiras quartas-feiras há espaço para uma Roda de Choro. “Tem sido uma maravilha! O choro é um tipo de música brasileira, criada no Rio de Janeiro, no século XIX, e ao longo destes quase dois séculos existem muitas dezenas ou centenas de locais onde, num determinado dia, os músicos se juntam de uma maneira informal para tocar. Temos tido aqui grandes executantes”. E tem sido assim, também, que a Unicepe tem atraído mais associados. “As pessoas vêm aqui e ficam encantadas”. Desde 1963, já se inscreveram na cooperativa 7281 associado.

Livro é futuro

Têm sido anos de luta e a situação financeira poderia estar melhor.
“As vendas, no ano passado, caíram 17 por cento. Este ano, para já, estão a manter-se ao mesmo nível, mas já caíram tanto, tanto…” Os custos vão, por isso, continuar esmagados. E depois são as energias que se gastam na sobrevivência. “Como temos estado sempre tão mal, gastamos muitas energias para sobreviver, como quem está a nadar quase a afogar-se. Estamos a gastar as energias a tentar manter a boca fora de água, porque não temos tido apoios de ninguém”, refere Rui Vaz Pinto.
Por isso, é importante chamar mais associados. E o cinquentenário é uma boa oportunidade de recuperar os que estão mais afastados, para fazer frente às dificuldades, causadas também pelo aparecimento do e-book – “agora as pessoas podem ler através da internet e já têm acesso a muitos livros” – e pela crise, não só económica como cultural.
“Nos últimos anos, tem havido um abandono. Talvez agora o livro seja ainda mais maltratado do que sempre foi”, considera Vaz Pinto, acrescentando: “Qualquer investimento nos livros ou na música, por exemplo, é criação de futuro. O livro tem a ver com o futuro e a maioria das pessoas vê o imediato. Um povo que lê é incomparável a outro que não lê.”
Segundo o presidente da Unicepe, “não se fala de livros” em Portugal, que em termos orçamentais pouco tem dado à Cultura. E a Cultura dá fruto, “que é a felicidade das pessoas”.
“Por exemplo, ainda não há o Produto Interno da Felicidade, mas isso já começa a ser levantado nos organismos internacionais. Há coisas que não são mensuráveis, como a alegria… Um dos grandes pensadores e escritores brasileiros, Rubem Alves, tem livros admiráveis sobre esse tema. Como é que se mede a alegria transbordante de ver um quadro de Arcimboldo, ou de ler um texto de Nietzsche, um poema de Pessoa, de Cecília Meireles ou de Manuel Bandeira, ou de ouvir uma canção de Chico Buarque? Como é que isso se mede? Há pessoas que infelizmente nascem e morrem sem nunca terem usufruído dessa sensação indescritível de beleza, da ‘pureza da linha do mar e céu ao pôr do sol’, como diria o Manuel Bandeira…”, concluiu o presidente da cinquentenária Unicepe.

Todos podem ser associados

Eram estudantes os fundadores da Unicepe, mas qualquer pessoa podia – e pode – ser associada.
Nos longos primeiros anos da cooperativa era a classe estudantil que compunha a grande maioria dos associados. “Agora a maioria pertence sobretudo à classe docente. Também temos médicos, advogados, economistas, engenheiros, bancários, donas de casa, eletricistas…
Temos até, pelo menos, uma costureira e um carpinteiro. Mas, de facto, a maioria são professores”.
“Temos estudantes, mas menos do que queríamos”, aponta Rui Vaz Pinto, lembrando que para se ser associado basta ter 14 anos. “Recomendo a quem tenha filhos ou netos ou sobrinhos que, no dia em que eles fazem 14 anos, lhes deem uma prenda e associando-os à Unicepe.”
Para ser associado da cooperativa é necessário adquirir no mínimo seis ações de cinco euros (30 euros), preencher uma proposta – “ter dois proponentes para garantir que a pessoa vem com boas intenções” – e, a partir do ano seguinte, pagar apenas uma quota anual de 7,50 euros.
De imediato, passa a ter regalias, como os 20 por cento, não de desconto, mas de antecipação do retorno. “No momento da venda antecipamos ao associado o retorno. Por exemplo, um livro tem um preço de venda ao público de 100 euros – e nós respeitamos escrupulosamente os preços de venda determinados pelo editor – e vendemos ao associado por 80 euros. Estamos antecipadamente a atribuir os 20 a que ele teria direito no ano seguinte. Mas só fazemos isso a quem tem a quota em dia. Isso é rigoroso!”

Maria João Leite


  
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Edição:

Edição N.º 201, série II
Outono 2013

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