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Pensar a República

Não seria despiciendo que o ministro da educação começasse por mandar afixar o Hino completo em todas as escolas, confiando aos professores a modernização da semântica para nomearem quais são as “armas” e os “canhões” de hoje.

Afinal, goradas as esperanças que nas descompressivas férias de verão aquietavam os espíritos dos portugueses ainda em dúvida sobre a revelação da verdadeira situação do país, nem o discurso presidencial de comemoração do 101º aniversário da implantação da República foi o placebo que muitos esperavam para, na pior hipótese, não terem, como convocava o Hino Nacional (inspirado, já em 1890, pela revolta contra o memorando do Ultimato britânico que nos impunha a largada de territórios em África), de “pegar em armas e contra os canhões marchar”.
Metaforizamos, claro… Mas as “armas” e os “canhões” já eram uma metáfora para animar os espíritos quando foi institucionalizada a atual versão da Portuguesa pela Assembleia Constituinte de 19 de junho de 1911, em cuja primeira versão as “armas” eram contra os “bretões”, que assumiam a dianteira das potências imperiais participantes na Conferência de Berlim de 1884-85, empenhadas na exploração dos territórios africanos, nomeadamente a Inglaterra, a França, a Alemanha e a Bélgica, concorrentes diretas de Portugal. Mas as nossas verdadeiras armas só foram realmente empunhadas contra os canhões da Alemanha, na I Grande Guerra, em África e na Europa, como é sabido. Então, os “bretões” – já conseguida a expulsão dos portugueses dos territórios por eles pretendidos – voltaram a ser os “velhos aliados” que, em 1807, tinham guardado as costas da Monarquia portuguesa da invasão napoleónica, cobrindo a retirada de D. João VI e da sua corte para o Brasil…
Foi pena que o discurso presidencial celebrativo do 5 de outubro de 1910 tivesse esquecido que, em 2011, se comemorava o centenário do Hino atual, que só raros portugueses conhecem integralmente. Mas pena, sobretudo, porque na letra do seu criador, o oficial da Marinha Henrique Lopes de Mendonça, está porventura o “cânone” patriótico que hoje animaria os portugueses “res publicanos” perante um novo “memorando” contundente, como é o da troika enviada pela oligarquia económico-financeira que rege os destinos da Europa, condicionando os desígnios nacionais segundo a riqueza dos recursos de cada país. Para aquela oligarquia, a “res publica” não passa de uma figura de retórica, que se evoca geralmente nos estádios e varandas desfraldando bandeiras e pendurando nas paredes cartazes apelativos. Para aquela, a “coisa pública” não tem de ser pensada como um imperativo ético ou moral enformador de um Estado-social (a que também chamam “monstro”), mas como uma liberdadeindividual sem mais limites do que os impostos pelo meio em que se realiza.
Um limite será a capacidade de resistência moral dos que podem colocar obstáculos ao pleno exercício dessa liberdade avassaladora e da sua “arma” mais poderosa: o dinheiro, inoculado nas mentes como uma droga que primeiro começa por atuar como um remédio, a seguir como um hábito e por último como um vício incontrolável. Vemos como isso acontece em toda a parte, entre pessoas e países. E no caso particular que nos interessa agora, vemos como isso aconteceu em Portugal ao longo da sua história: o dinheiro, feito de ouro ou de papel, conseguido em casa ou fora dela, serviu o Estado para resolver necessidades ocasionais, mas depois contaminou os cidadãos com hábitos ilusórios que iam além das reais possibilidades do país.
A I República, inspirada de fora, fez a primeira luz na consciência nacional sobre o país que tínhamos sido: povo de mendigos, ganhões e ignorantes, debatendo o direito à vida no percurso dos caminhos que terminavam no adro da Igreja, no pátio do Palácio ou no convés da Emigração. Quando os primeiros republicanos, erguendo-se contra os manipuladores da riqueza que lhes dava poder e força, gritaram Basta! e entoaram o Hino, o povo, até então remetido à resignação e desesperança, num país pobre e atrasado, exultou, colando à história das glórias do passado as datas de 31 de janeiro de 1891 e de 5 de outubro de 1910, com um discurso de vitória que porém se foi esvaindo à medida que o “remédio” deixou de atuar e o povo “doente” se conformou com uma “triste sorte”. Até que, em 25 de abril de 1974, novos republicanos repetiram o grito dos antigos: Basta! Ainda era um grito contra os centros tutelares das riquezas nacionais, que, em nome da liberdade do mercado, se haviam apoderado da economia e das finanças para condicionar o poder do Estado e, com este ou à margem deste, determinar o tipo de “sorte” reservada à generalidade dos cidadãos, olhados, em Portugal, como sendo de “brandos costumes”. Ouve-se dizer, às vezes, que a História não se repete. Nesse pressuposto, os portugueses só tomarão como um aviso, não como um vaticínio, os recentes e inquietantes prenúncios de reputados polígrafos do nosso País, como Clara Ferreira Alves, Boaventura de Sousa Santos ou António Barreto, de que Portugal não terá futuro, ou terá o futuro de país pobre e subdesenvolvido, ou mesmo poderá desaparecer como Estado soberano. Ou ainda, como admitira há alguns anos José Saramago, tornando-se província de Espanha. Aliás, já lá estava Olivença, desde 1801...
Mas pelo aviso e interiorizando o Hino completo – não seria despiciendo que o ministro da educação começasse por mandar afixá-lo em todas as escolas, confiando aos professores a modernização da semântica para nomearem quais são as “armas” e os “canhões” de hoje.

Leonel Cosme

 


  
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Edição:

Edição N.º 195, série II
Inverno 2011

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