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Escola de textos ou de paratextos?

Dá-se um salto ali a Madrid, em lowcoast, entra-se no Centro Nacional Rainha Sofia e fica-se integralmente a oscilar – entre os pés que se afundam no chão para tentarem segurar-se e a cabeça que esvoaça e voluteia para além das nuvens – só por se olhar para a Guernica de Picasso. E o que é que se vê? Pessoas, animais, edifícios, um braço sozinho ainda com um candeeiro aceso na mão, um cavalo que espelha os horrores da morte e da dor nos seus pêlos eriçados, uns braços que bradam aos céus a sua passividade, destruição. A emoção avassala-nos como se cada momento tivesse sido colado, aposto ou sobreposto a três dimensões, para irromper por nós dentro e se entranhar de forma intemporal, fora de qualquer espaço.
E só quando formos capazes de resgatar a respiração e de recobrar o móbil que eventualmente ali nos terá levado é que começaremos a pensar no resto: a cidade de Guernica; o intenso bombardeio da Luftwaffe; Hitler aliado de Francisco Franco. Tudo aquilo para que a obra remete. E, mais tarde, nas técnicas do quadro, ou mural: o preto e o branco, a narração objectiva da sobreposição dos pedaços de corpos irreais acinzentados que retratam a realidade mais profunda, o amarelado-morte, a Pietá, o surrealista Minotauro, a ténue representação da estátua da Liberdade acinzentada, de candeeiro na mão. E por aí fora. Não fora, inicialmente, aquele arrepio visceral e ter-nos-ia parecido que valia a pena uma outra abordagem da obra?
O estudante de 11.º ano dirigiu-se ao professor que conhecia de vista e perguntou:

– Bocê é professor de Português, num é?

Que sim.

Bocê é que me podia explicar isto do Frei Luís de Sousa, que não percebo nada. Já me disseram que bocê é muito bom a explicar.

Parece que é lixado, dá testes muito difíceis, mas como não é meu setôr, explicava-me e prontos. Quando é que posso ir ter consigo à sua sala?

Que fosse. Meio pasmado, o professor nem hesitou. Um negócio assim tão rápido…

E lá começaram. Primeiro contar a história: Madalena e depois Telmo, o que faziam, o que diziam, porque comunicavam. Como era Maria, Manuel, que medos pairavam naquela casa. E o aluno retorquia: porquê o fogo?, ai D.João de Portugal não era rei?, era conde de Vimioso?, mas o meu professor explicou o sebastianismo e eu pensava que ele era rei..., Almada não é em Lisboa? e por que é que não tinha peste? Ah! Agora é que eu estou a perceber isto! Vou escrever tudo direitinho!
O moço conhecia as análises críticas sobre a “Guernica”, mas nunca a tinha visto, nem sequer em figurinha. Nunca tinha vivido a emoção, não tinha sido arrastado por essa torrente que nos leva atrás de uma obra. Nunca tinha lido «Frei Luís de Sousa», mas conhecia as fichas dos manuais, os diagramas, até alguns extratextos da História de Portugal. Extratextos, paratextos – tudo andava por ali. Mas faltava-lhe o texto, afinal. Muitos dos nossos professores (não só os de Língua Portuguesa) continuam a não proporcionar aos seus estudantes o elemento fulcral: é preciso passar pelo laboratório e fazer a experiência de Ciências Naturais; é preciso praticar a modalidade de desporto; é preciso apreciar as obras plásticas, ouvir as peças musicais, ouvir falantes das várias línguas, contactar com o património histórico, social, cultural; observar a Matemática nos azulejos de inspiração árabe...
E depois – ou a par e passo, devagarinho – registar a experiência e analisar, reflectir, concluir, aprender bem as regras do jogo, conhecer as escolas de Arte, aprender a notação musical, as várias gramáticas, os estilos arquitectónicos, enfim, utilizar os vários métodos que nos permitem engrandecer o conhecimento que, afinal, não existe sem as emoções. Muitos professores de Português continuam a acreditar (e a cumprir os programas que assim o pressupõem) que os alunos de hoje vão ler em casa um clássico do romantismo como «Frei Luís de Sousa». Não lêem. Não têm. E a Escola tem que garantir que interpretam o máximo, tem que os entusiasmar, que lhes contar a historinha toda, e até ler com eles, pelo menos as partes mais importantes.
Se ficamos por uma Escola só de paratextos, nada faz sentido. É preciso abraçar o âmago das coisas. Não há crosta sem miolo. E tudo serve de alimento. O texto é a vida. A vida que a Escola tem que ser. Mesmo quando o paratexto se transforma em texto, já muito caminho tem que estar percorrido. E o extratexto...
Muito mais.

José Rafael Tormenta


  
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Edição:

Edição N.º 188, série II
Primavera 2010

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