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O vidro

Numa sala da nossa escola apareceu um vidro, partido. Não é um desses vidros grandes e grossos que certamente custam um dinheirão. Para ser mais rigorosa era um vidrinho de 23x32 cm. Os vidrinhos da nossa escola são assim, com estas medidas e fininhos.
O vidro apareceu partido pela manhã. Rigorosamente não posso afirmar que tenha sido partido durante a noite. Embora o vidro partido seja de uma janela da minha sala, não posso afirmar se ele se partiu ou se foi partido. E esta é, presumo, uma questão importante.
Posso afirmar que no dia 7 de Outubro às oito e trinta da manhã o vidro estava partido porque a Cátia se queixou que vinha vento dali e apontou para a janela. Eu olhei e vi que faltava lá o vidrinho.
Volto a repetir que não posso afirmar, com todo o rigor, e em boa verdade, se o vidro foi partido ou se se partiu.
Do lado de dentro da sala de aula não havia vestígios de cacos de vidro. No intervalo, quando fui lá fora verificar o que se passava debaixo da janela, nem eu nem os miúdos vimos cacos de vidro. E como se o vidro da janela da minha escola tivesse sumido!
Uma hipótese que não posso deixar de por a consideração de Vossas Excelências é que alguém possa ter partido cuidadosamente o vidro, tenha aparado os cacos e sumido com eles criando assim confusão quanto aos procedimentos legais a seguir. Mas isto, tenho consciência, é já uma mera suposição e um atrevimento de que desde já peço desculpas. Saberão Vossas Excelências, melhor que eu, deslindar esta questão.
O que posso informar, com todo o rigor e fidelidade, é que o vidro não estava lá quando a Cátia se queixou do vento. Posso ainda afirmar, porque eu própria experimentei colocando-me frente ao buraco provocado pelo vidro em falta que, mesmo sendo um buraco pequeno, por ali, neste tempo de Outono, entrava um vento frio.
Tenho a franqueza de afirmar, pedindo antecipada desculpa a Vossas Excelências, que estando perante este problema, não sei como agir para remediar a situação. E que não é claro se a situação é tipificada como acidente ou roubo.
Num livro policial que li quando fazia o meu curso havia uma situação clara. O personagem raciocinava considerando que se havia vidros no interior era tentativa de assalto (caso não faltasse nada) ou assalto (caso faltasse alguma coisa). Se os cacos estivessem no exterior era acidente (caso a janela estivesse fechada) ou fuga (caso a janela estivesse aberta). Nenhum destes casos se aplica ao nosso vidro, razão pela qual no sei como proceder junto das autoridades escolares.
Devo acrescentar que antes de me decidir a incomodar Vossas Excelências, tive o cuidado de consultar toda a legislação existente sobre vidros partidos e a forma de comunicar e não encontrei resposta de "acordo com os procedimentos" para esta situação.
Tendo eu de informar em rigor Vossas Excelências, em rigor eu não posso afirmar se o vidro foi partido ou se se partiu. Permaneço assim na dúvida sobre qual o modelo de participação a usar e, pedindo antecipadamente desculpa pelo atrevimento, se, dado o caso insólito, não será necessário esperar por legislação adequada que permita fazer correctamente a participação.
Informo ainda Vossas Excelências que antes de decidir incomoda-los tentei resolver o problema e encontrar resposta para as minhas dúvidas. Em rigor, informo que telefonei a 19 colegas de escolas com telefone no meu distrito pedindo esclarecimento sobre o melhor procedimento a seguir. Informo que as colegas, embora todas com experiência de vidros partidos, não tinham nenhum caso de ausência de cacos no interior e no exterior.
Chamo a atenção de Vossas Excelências para o facto de a minha escola se encontrar em regime de experiência de direcção. Assim, presumo, e peço antecipadamente desculpa se interpreto mal a legislação, que a minha escola tem autonomia administrativa e pedagógica. Sendo assim creio estarem reunidas as condições legais que me permitem, como Directora, dirigir a Vossas Excelências a pergunta: como devo proceder para participar o desaparecimento do vidro na minha escola?
Certa de que Vossas Excelências darão a melhor e mais rápida atenção a esta minha pergunta, respeitosamente,

De Vossas Excelências
A Directora

Nota:
Este ofício, em rigor, não corresponde ao escrito pela colega. Quando me falou do caso eu pedi-lhe autorização para publicação do ofício. A colega negou por considerar que existe legislação que proíbe que os directores e outros responsáveis pelas escolas permitam que a opinião pública conheça o que se passa de concreto no interior e no exterior das nossas escolas. Teve a colega medo de lhe ser instaurado inquérito disciplinar. Considerou ainda a colega que as autoridades escolares lhe cometeram a função de impedir que a opinião pública conheça estas pequenas misérias. Tive de respeitar a decisão da colega.
Da minha parte considero muito importante que a opinião pública conheça este caso do vidro partido. Por isso ponho à vossa consideração o ofício camuflado para defesa da clandestinidade da directora.
Devo acrescentar que em Março a colega ainda não obteve resposta das autoridades escolares para este ofício enviado em Outubro. O buraquinho continua lá na direcção da Cátia. Cuidadosamente a colega tapa a falha com uma cartolina que se desfaz quando chove.
Não digo a cor da cartolina para que as autoridades fiquem baralhadas. Como sabem o que não falta são cartolinas a tapar buraquinhos nas nossas escolas. Cátias agora há muitas.
Sem mais, fica o texto clandestino à vossa consideração. Se souberem qual ou quais os Decretos, Despachos, parágrafos e alíneas, circulares normativos ou outros dispositivos legais que enquadram o caso do vidro partido peço o favor de me informarem.
Clandestinamente farei chegara informação à colega em apreço. Talvez assim lá para o Verão a Cátia não tenha um cartão a tapar o buraquinho da janela da sua escola.

José Paulo Serralheiro


  
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Edição:

Edição N.º 186, série II
Outono 2009

Autoria:

José Paulo Serralheiro
Professor e Jornalista. Director do Jornal a Página da Educação.
José Paulo Serralheiro
Professor e Jornalista. Director do Jornal a Página da Educação.

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