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A propósito da crise: entre o real e seu inverso

A explicação segundo a qual a crise financeira norte-americana - tornada mundial - decorre do colapso do mercado de hipotecas imobiliárias classificadas como subprime é apenas uma meia verdade. Para início de prosa, dever-se-ia recolher uma lição da história económica e social: dado o caráter do seu processo de reprodução, o capitalismo sobrevive articulado por ciclos - curtos e longos.
Como bem pôs em realce Kondratieff em sua clássica formulação, de resto retomada por Ernst Mandel, os ciclos curtos configuram uma perspectiva expansiva se a curva das subidas e descidas aponta para cima, e uma perspectiva recessiva se aponta para baixo.
Ora, sem rodeios, digamos o que efetivamente as coisas são: a eclosão da crise resulta da impossibilidade de sustentação ad infinitum de uma lógica de valorização de ativos, amparada no crédito bancário, tendo como objeto contínuas bolhas (de ações, imóveis, commodities, etc.) e que encontrou no mercado imobiliário estadunidense o seu ápice. Ao fim e ao cabo, trata-se de uma crise do capitalismo contemporâneo, onde a financeirização fictícia dos oligopólios - a galope com as novas tecnologias ? expressa a sua face, por exemplo, na irracionalidade que é a contenda das ações, na busca desenfreada por lucros, sem a mediação da produção. Há algum tempo, não eram poucos os que louvavam este modelo, sob a retórica da não-intervenção do Estado na economia e da elevação do mercado à condição de demiurgo da sociabilidade humana. Resta saber o que, agora, eles têm a dizer, sobretudo os adeptos das ortodoxas "cantilinárias" da intelligentsia do laissez-faire abrigada na Universidade de Chicago.
Ao analisarmos o quadro político-econômico internacional, em retrospectiva, logo percebemos que a peça dinâmica do crescimento mundial tem sido os déficits em transações correntes dos Estados Unidos. Ancorada no elemento-chave que é o dólar, a economia norte-americana pôde crescer nas últimas duas décadas sem restrição externa, colocando-se, via de regra, como locomotiva da expansão mundial. Isto não se conseguiu, claro, sem alguns arranjos institucionais entre nações, que agora se encontram sob ameaça de estiolamento. Desde a inflexão cíclica de 2001, foram intensificadas as movimentações, formatando-se uma engrenagem comercial entre o consumo dos EUA e o crescimento de outros países.
Podem ser aludidos, por exemplo, três elos de tal engrenagem: o referente aos Estados Unidos e a Ásia em desenvolvimento; o das relações intra-asiáticas; e o concernente à ligação entre a Ásia e as regiões produtoras de commodities. Uma amostra da tradução específica disso: pode-se dizer que o dinamismo chinês coloca-se como imprescindível à economia global hoje, mas isso não pode ser tomado como facto se não for considerada a função do déficit externo estadunidense. Assim sendo, dependendo da extensão e da profundidade da desaceleração da economia-líder, o primeiro elo ver-se-á diante de impasses imprevisíveis que logo arrastarão os demais.
É tempo de, analiticamente, regressar à dialéctica da economia política - relativizando os enfoques meramente econométricos - como forma de captar as lógicas actuais dos fenómenos económicos. Evitaremos assim as meias-explicações, como a que limita o entendimento da presente crise ao colapso do mercado de hipotecas imobiliárias norte-americanas. São explicações que terminam por cair nas velhas armadilhas da ideologia: ora apanham partes dos fenômenos como se fosse o todo, ora focam de forma inversa (e, por vezes, perversa) a realidade.
Fundamentalmente, a crise não será compreendida sem se considerar a transferência de capitais do setor produtivo para o financeiro, ou melhor, para o especulativo, num processo fortemente impulsionado pela ausência de regulamentação, visto que, nas últimas décadas, os discursos dominantes desenvolveram uma verdadeira aversão a tudo que sinalizasse intervenção estatal. Entretanto, ironicamente, depois do estrago feito, tal como ocorreu com a crise de 1929, assistimos o Estado ser convocado para "apagar o incêndio" provocado pela suposta mão invisível do mercado, usando para tanto jactos de recursos públicos oriundos dos tributos pagos pelos contribuintes. Por outras palavras: socialização dos prejuízos.
Por fim, a crise chama o dito mundo académico à realidade, visto que, em tempos recentes, alguns analistas sociais, envoltos em determinadas abstrações, passaram a negar a possibilidade de critério-referência de verdade às abordagens. Coisas da torre de marfim. Embebidas com representações invertidas do mundo. Entretanto, agora, a materialidade da crise mostra que é, no mínimo, impróprio continuar com uma postura que se assemelha à de coleccionadores de borboletas: limitada a etiquetar a falência de teorias e a brandir discursos pseudo-eruditos em moda.

Ivonaldo Neres Leite


  
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Edição:

N.º 183
Ano 17, Novembro 2008

Autoria:

Ivonaldo Neres Leite
Univ. do Estado do Rio Grande do Norte, Brasil
Ivonaldo Neres Leite
Univ. do Estado do Rio Grande do Norte, Brasil

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