Página  >  Edições  >  N.º 180  >  Era pra fazer a cópia, eu fiz

Era pra fazer a cópia, eu fiz

A escola de nosso tempo tem sido caracterizada, entre outras coisas, por um lugar estranho e promotor de desencontros, principalmente para aqueles que, estando nela cotidianamente, deveriam sentir-se em casa, e, no entanto, vêm se sentindo deslocados, sem desejo e sem prazer de ali estar.
Neste sentido, tenho tentado "marcar um encontro" com meus alunos, em um lugar em que eles possam se sentir à vontade. Em um lugar em que, confesso, não me sinto mais tão seguro. Sinto-me um outro, um outro que não deveria ser para mim estranho, já que ele faz parte de minha convivência. E que, no entanto, surpreende-me em seus detalhes de criatividade e complexidade, levando-me à perplexidade, a arriscar-me sem bússola, descalço, em busca de encontros com o outro e comigo mesmo.
Foi quando, numa dessas minhas tentativas/buscas, solicitei que os alunos trouxessem para a aula seguinte, uma cópia de sua certidão de nascimento, a fim de iniciarmos um processo de encontro a partir da identidade de cada um, não a identidade no sentido uno e estático, mas como algo mutante, complexo, em constante devir, que tem a ver com o ser de cada um e de seu estar no mundo como um ser vivo, pulsante, sujeito de sua própria história e, portanto, produtor de conhecimentos.
No dia marcado, pedi que cada aluno mostrasse a sua certidão de identidade. Tal foi a minha surpresa quando um dos alunos mostrou-me os dados de seu registo civil, escritos em seu caderno. Surpreendido, lhe perguntei:
- Por que você achou que era para escrever no caderno?
Diante de minha surpresa ele respondeu:
- Era pra fazer a cópia, eu fiz.
Num primeiro momento, a situação me pareceu absurda, já que, de um universo de 33 alunos, só ele entendera daquela forma. Lembro-me, inclusive, que no dia em que apresentei a proposta, um dos alunos ainda me corrigiu:
- Não se diz cópia, professor, e sim, xerox.
Passado o primeiro impulso, compreendi que seria melhor evitar julgar pejorativamente o inusitado da situação e observar o ocorrido de forma mais sensível e detida. Afinal, entre o que o professor diz e aquilo que os alunos entendem, não raro, cria-se um abismo semântico-epistemológico, um entre-lugar, já que os sujeitos articulam seus pensamentos seguindo lógicas e percursos díspares. Daí a escola ser cada vez mais um espaço marcado pelos desencontros.
Ao ler as informações "copiadas" pelo menino, percebi que ele fizera uma seleção de dados com sua própria conveniência, seguindo critérios que ele mesmo estabelecera, numa lógica às avessas, criando em um lugar que não era o seu, lugar esse que lhe negara tal possibilidade.
Assim, diante do inesperado, do que para mim era surpreendente, olhei para aquele menino que também me olhava, e, um sorriso cúmplice, silenciosamente loquaz, fez-se entre nós, como se tivéssemos, só eu e ele, combinado aquela situação, em um tempo/espaço que nos permitiu o encontro, contrariando a lógica da escola.

Vilson Sebastião Ferreira


  
Ficha do Artigo
Imprimir Abrir como PDF

Edição:

N.º 180
Ano 17, Julho 2008

Autoria:

Vilson Sebastião Ferreira
Professor. Mestrando em Educação na Universidade Federal Fluminense. Grupo: Campo do Cotidiano
Vilson Sebastião Ferreira
Professor. Mestrando em Educação na Universidade Federal Fluminense. Grupo: Campo do Cotidiano

Partilhar nas redes sociais:

|


Publicidade


Voltar ao Topo