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"Continuar a ler Paulo Freire ajuda-nos a entender o presente"

A Pedagogia Social na construção de um altermundo

Entrevista com Moacir Gadotti

Moacir Gadotti é Director do Instituto Paulo Freire e professor da Universidade de São Paulo (Brasil). Com ele tivemos a oportunidade de conversar, a propósito do II Congresso Ibero-americano de Pedagogia Social, organizado pela Universidade de Vigo em parceria com a Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro, entre a Galiza (Allariz) e o Norte de Portugal (Chaves), em Setembro de 2007, com o título "Animação Sociocultural e Desenvolvimento Comunitário".
Nesta entrevista, Gadotti, também membro do Comité Executivo Internacional do Fórum Mundial da Educação, subscreve as ideias da democracia como o projecto educativo que John Dewey apresentou como sendo, mais que uma forma de governo, um verdadeiro modo de vida. Para este fim, há-de contribuir uma educação com marcado carácter social, que trabalhe para edificar um mundo digno, onde os direitos e deveres de cidadania sejam uma realidade universal. Um projecto onde a Pedagogia Social está firmemente comprometida, em coerência com a sua orientação para a melhoria da qualidade de vida das pessoas e dos povos.
Parte do que apresentamos aparece já referido no livro «La pedagogía de Paulo Freire y el proceso de democratización en Brasil», que Gadotti publicou em 2006, e onde lembrava que a ideia e o projecto de uma Escola Cidadã nasceu no Brasil nos finais da década de oitenta, a partir do movimento de educação popular, para definir uma prática educativa para e pela cidadania, que pretende contribuir para a criação de condições que facilitem o surgimento duma nova cidadania, como espaço de organização da sociedade para a defesa de todos os seus direitos. Uma definição do próprio Paulo Freire em 1997, quando na entrevista concedida à TV Educativa do Rio de Janeiro caracteriza a Escola Cidadã pela sua capacidade de exercitar a construção de cidadania.
A essa mesma cidadania planetária referir-se-á o professor Gadotti na conversa que transcrevemos. Uma noção que, sob a forma de cidadanias em plural, para a Europa é a questão central de uma educação que, no século XXI, necessita de democratas capazes de elaborar o seu projecto de convivência a partir dos princípios da Declaração Universal dos Direitos Humanos.

O senhor escreveu um livro com o título "Educar para um outro mundo possível", defendendo um altermundismo. Quais as singularidades que caracterizam um cidadão altermundista?

Diante dos efeitos perversos da globalização capitalista que divide hoje o mundo entre globalizadores e globalizados, contra esse tipo de globalização defendemos, em oposição, o paradigma da planetarização, que consiste em conceber a Terra como uma única comunidade, una e diversa. O nosso desafio é construir uma outra lógica - o altermundismo - e "reformar o pensamento", como diz Edgar Morin. Os paradigmas clássicos, arrogantemente antropocêntricos e industrialistas, não têm suficiente abrangência para explicar a realidade de hoje. Por não ter uma visão holística, não conseguiram dar nenhuma resposta para tirar o planeta da rota do extermínio e do rumo da cruel diferença entre ricos e pobres. Mais do que cidadãos deste ou daquele país, precisamos ser cidadãos do mundo, como sustentava o Fórum Global da Rio-92. O cidadão do mundo é aquele que não é estrangeiro em nenhum país. Podemos ser cidadãos do mundo sem perder as nossas raízes. Aliás, podemos ser cidadãos do mundo porque somos cidadãos de algum lugar. Uma coisa não anula a outra.

Considera-se o senhor um "altermundista"?

Como educadores precisamos ser coerentes. Como diz Gandhi, "precisamos de ser a mudança que pregamos", a nossa vida deve ser a nossa mensagem. Diz a letra de uma música do cantor brasileiro Milton Nascimento: "estrangeiro eu não vou ser; cidadão do mundo eu sou". Se as crianças das nossas escolas entendessem em profundidade o significado das palavras desta canção, estariam a iniciar uma verdadeira revolução pedagógica e curricular. Como posso sentir-me estrangeiro em qualquer território deste planeta se pertenço a um único território, a Terra? Não há lugar estrangeiro para terráqueos na Terra. Se sou cidadão do mundo, não podem existir para mim fronteiras. As diferenças culturais, geográficas, raciais e outras, esvaem-se diante do meu sentimento de pertença à humanidade, ao planeta Terra.

Onde se sustenta essa noção de cidadania planetária?

A noção de cidadania planetária sustenta-se na visão unificadora do planeta e de uma sociedade mundial. Ela manifesta-se em diferentes expressões, tais como: "nossa humanidade comum", "unidade na diversidade", "nosso futuro comum", "nossa pátria comum", "pátria grande" etc. Cidadania planetária é uma expressão adoptada para exprimir um conjunto de princípios, valores, atitudes e comportamentos que demonstra uma nova percepção da Terra. Trata-se de um ponto de referência ético indissociável da civilização planetária e da ecologia. A Terra concebida como "Gaia", um super-organismo vivo e em evolução. O que for feito a ela repercutirá em todos os seus filhos.

A ideia de uma cidadania planetária não poderia caminhar para uma visão uniforme do mundo, inconcebível diante da diversidade, característica fundamental do ser humano?

Não. Por isso é que insisto numa humanidade una e diversa, tal como é concebida pelo Fórum Social Mundial que considera a diversidade como um dos seus pilares e como a característica fundamental da humanidade. Por isso não pode haver um único modo de produzir e de reproduzir a nossa existência no planeta. O pensamento único neoliberal sustenta que só existe uma via para a humanidade que é o capitalismo. Ao contrário, sustentamos que não há um só caminho. Diante da diversidade humana haverá uma diversidade de caminhos. Diante da diversidade humana abre-se a possibilidade da diversidade de mundos possíveis. Ao pensamento único neoliberal não podemos opor outro pensamento único.

Dentro dessa visão de mundo, qual é o papel da educação? Como educar para essa cidadania planetária?

Educar para a cidadania planetária é educar para um outro mundo possível, ou melhor, para outros mundos possíveis. Educar para outros mundos possíveis é educar para a emergência do que ainda não é, o ainda-não, a utopia. Assim fazendo, estamos a assumir a história como possibilidade e não como fatalidade, como sustentava Paulo Freire. Por isso, educar para outros mundos possíveis é também educar para a ruptura, para a rebeldia, para a recusa, para dizer "não", para gritar, para sonhar com outros mundos possíveis. Denunciando e anunciando.

Mas será que existirão outras possibilidades para este mundo, diante das condições, muitas vezes adversas, nas quais nós vivemos?

O neoliberalismo concebe a educação como uma mercadoria, reduzindo as nossas identidades às de meros consumidores, desprezando o espaço público e a dimensão humanista da educação. Opondo-se a esse paradigma, a educação para outros mundos possíveis respeita e valoriza a diversidade, convive com a diferença, promovendo a intertransculturalidade que mostra tanto as diferenças culturais quanto o que há de comum entre as culturas, que é o ser humano. O núcleo central da concepção neoliberal da educação é a negação do sonho e da utopia. Por isso, uma educação para outros mundos possíveis é, sobretudo, a educação para o sonho, uma educação para a esperança.

Por que você vem insistindo tanto na questão da mercantilização da educação hoje?

Por que a mercantilização da educação é um dos desafios mais decisivos da história actual, porque ela sobrevaloriza o económico em detrimento do humano. Só uma educação emancipadora poderá inverter essa lógica, através da formação para a consciência crítica e para a desalienação. Educar para outros mundos possíveis é educar para a qualidade humana para "além do capital", como nos disse István Mészáros na abertura da quarta edição do Fórum Mundial de Educação, em Porto Alegre, em Janeiro de 2005. A globalização capitalista roubou às pessoas o tempo para o bem viver e o espaço da vida interior, roubou a capacidade de produzir dignamente as nossas vidas. Cada vez mais gente é reduzida a máquinas de produção e de reprodução do capital.

Nesse contexto, o pensamento de Paulo Freire, dez anos depois da sua morte, continua ainda válido?

Sem dúvida. Alguns certamente gostariam de deixar o pensamento de Paulo Freire para trás, na história das ideias pedagógicas, e outros gostariam de esquecê-lo, por causa das suas opções políticas. Ele não queria agradar a todos. Mas havia uma unanimidade em todos os seus leitores e todos os que o conheceram de perto: o respeito pela pessoa. O meu amigo Paulo, com o qual convivi 23 anos, sempre foi uma pessoa cordial, muito respeitosa. Podia discordar das ideias, mas respeitava as pessoas, mostrando um elevado grau de civilização. E mais: a sua prática do diálogo levava-o a respeitar também o pensamento daqueles e daquelas que não concordavam com ele. Devemos continuar a ler Paulo Freire porque ele ajuda-nos a entender o presente: o seu pensamento e a sua praxis político-pedagógica constituem-se num sólido referencial para todos nós, educadores de hoje e não só para os educadores porque o seu pensamento é interdisciplinar.

A Europa olha para o Brasil como um cenário de contrastes de toda a ordem. O que lá acontece hoje, e o modo como se afrontem esses contrastes, poderia ser considerado um presságio do que se passará com o mundo?

Sem dúvida, o Brasil é um país de contrastes. Somos ainda um país com um grande número de analfabetos e uma distribuição do rendimento das mais perversas. O governo Lula iniciou um grande programa de distribuição do rendimento, o "Bolsa Família", enfrentando grande oposição das oligarquias, mas ele ainda é insuficiente. O que nasceu de novo no Brasil, e que pode servir de motivo de esperança para o mundo, é o processo do Fórum Social Mundial. Ele foi o resultado de mais de 40 anos de luta da educação popular na América Latina, que criou uma nova cultura política e uma forte organização da sociedade civil.

Nos seus livros encontramos que uma alternativa para outra escola possível é o projecto da Escola Cidadã. Qual é a sua opinião sobre o estado deste ideal pedagógico?

O movimento da escola cidadã começou no final da década de 80 e início da década de 90 do século passado. Inicialmente esse movimento estava muito centrado na democratização da gestão e no planeamento participativo. Aos poucos ampliou as suas preocupações para a construção de um novo currículo (interdisciplinar, transdisciplinar, intercultural) e de relações sociais, humanas e intersubjectivas novas, enfrentando os graves problemas gerados pelo aumento da violência e da deterioração da qualidade vivida nas cidades e no campo. Quase duas décadas de inovação e de experimentação com base numa concepção cidadã da educação foram suficientes para gerar um grande movimento, uma perspectiva concreta de futuro para a escola, principalmente para a escola pública. Esse movimento demonstra que a sociedade civil está a reagir à tendência oficial neoliberal de internacionalização da agenda da educação com base nas "receitas" contidas em "recomendações" de organismos internacionais como o Banco Mundial e o FMI. Assim como o Movimento da Escola Nova, iniciado no final do Século XIX, representou, no início do século XX, um grande avanço, o Movimento da Escola Cidadã, iniciado no final do século XX, representa uma grande esperança de renovação para a educação do século XXI.

Segundo Eduardo Galeano "quando tínhamos as respostas, mudaram-nos as perguntas". Então perguntaria, qual é hoje a principal pergunta educativa e social em questão no contexto de construção de um altermundo?

Os zapatistas dizem que é perguntando que achamos o caminho. Saber perguntar é essencial. Por isso, Paulo Freire escreveu a Pedagogia da pergunta. A direita não tem roubado só as nossas perguntas. Tem roubado as nossas respostas, tem roubado as nossas bandeiras, desvirtuando-as. Não se trata, então, de negar as nossas antigas bandeiras porque os conservadores as tem desvirtuado. Ainda lutamos pela autonomia, pela justiça e pela liberdade. Essas bandeiras não envelheceram. Trata-se de mantê-las e reafirmá-las, aprendendo a cada momento, fazendo novas perguntas. E não se trata, por isso, de ter respostas prontas, acabadas, como alguns de nós tinham. Trata-se de construir novas perguntas e apostas em novas respostas, ouvindo mais do que proclamando as nossas verdades. Trata-se de valorizar a escuta antes da disputa; trata-se de politizar sem polemizar. Na velha esquerda sempre reafirmávamos as nossas verdades feitas, mesmo antes de escutar. Polemizamos demais porque temos muitas certezas. Com muitas certezas não vamos hoje muito longe.

Por fim, qual o compromisso da Pedagogia Social para contribuir na construção de um mundo melhor?

Há várias acepções e concepções de "pedagogia social". No Brasil ela é concebida como pedagogia dos direitos, pedagogia da inclusão social, atendendo demandas e necessidades de novos sujeitos sociais: população indígena, os remanescentes quilombolas, a população rural, a mulher, a criança e o adolescente, o idoso, o preso, a população de rua e os portadores de necessidades educativas especiais. A educação formal possui limitações para a inclusão social destes grupos e é preciso explorar as possibilidades que as práticas de educação não-formal oferecem para a construção da identidade, a recuperação da auto-estima, a preparação profissional e o desenvolvimento da consciência política e social. Não podemos sonhar com um outro mundo possível sem incorporar numa vida sustentável esses grandes sectores da sociedade, excluídos de todos os direitos. A pedagogia social caracteriza-se, pois, como um projecto de transformação política e social visando o fim da exclusão e da desigualdade, voltada, portanto, para as classes populares e para um futuro com justiça social.

Entrevista conduzida por: Pablo Montero Souto

SÍNTESE

  • Mais do que cidadãos deste ou daquele país, precisamos ser cidadãos do mundo...
  • O cidadão do mundo é aquele que não é estrangeiro em nenhum país.
  • Como posso sentir-me estrangeiro em qualquer território deste planeta se pertenço a um único território, a Terra?
  • A noção de cidadania planetária sustenta-se na visão unificadora do planeta e de uma sociedade mundial. Ela manifesta-se em diferentes expressões, tais como: "nossa humanidade comum", "unidade na diversidade", "nosso futuro comum", "nossa pátria comum", "pátria grande" etc.
  • Diante da diversidade humana haverá uma diversidade de caminhos.
  • Ao pensamento único neoliberal não podemos opor outro pensamento único.
  • Educar para outros mundos possíveis é também educar para a ruptura, para a rebeldia, para a recusa, para dizer "não", para gritar, para sonhar com outros mundos possíveis.
  • O neoliberalismo concebe a educação como uma mercadoria, reduzindo as nossas identidades às de meros consumidores, desprezando o espaço público e a dimensão humanista da educação.
  • O núcleo central da concepção neoliberal da educação é a negação do sonho e da utopia.
  • Cada vez mais gente é reduzida a máquinas de produção e de reprodução do capital.
  • Assim como o Movimento da Escola Nova, iniciado no final do Século
    XIX, representou, no início do século XX, um grande avanço, o Movimento da Escola Cidadã, iniciado no final do século XX, representa uma grande esperança de renovação para a educação do século XXI.
  • A direita não tem roubado só as nossas perguntas. Tem roubado as nossas respostas, tem roubado as nossas bandeiras, desvirtuando-as.
  • Na velha esquerda sempre reafirmávamos as nossas verdades feitas, mesmo antes de escutar. Polemizamos demais porque temos muitas certezas. Com muitas certezas não vamos hoje muito longe.

  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 176
Ano 17, Março 2008

Autoria:

Moacir Gadotti
Director do Instituto Paulo Freire e professor da Universidade de São Paulo, Brasil
Pablo Souto
Educador social - Universidade de Santiago de Compostela, Galiza
Moacir Gadotti
Director do Instituto Paulo Freire e professor da Universidade de São Paulo, Brasil
Pablo Souto
Educador social - Universidade de Santiago de Compostela, Galiza

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