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A imagem

Um dos temas mais actuais e complexos é o da imagem, porquanto vivemos num regime escópico, num regime que privilegia a visão sobre todos os outros sentidos e modos de conhecimento. No entanto, mesmo quando a criança se reconhece ao espelho pela primeira vez, tem a tendência de ir tocar na imagem para se certificar de que é "a sua", ou seja, de que aquele objecto é o reflexo de si. Inicia-se aí o processo de construção do eu.
A criança, qualquer um de nós, começa por se reconhecer como "outro", como imagem, ou seja, como um reflexo, uma "imitação", algo que é e não é ele próprio. E essa duplicidade (que logo se vai desdobrando em multiplicidades durante toda a vida) é fundamental para compreender o carácter ambíguo do ser humano, do seu olhar. O olhar replica sempre a "experiência primordial" do espelho, da presença do outro como eu, e do eu como outro: essa cesura, esse corte que nos impede de atingirmos o "real", isto é, que nos confirma como seres imersos num jogo de espelhos "ad infinitum", para quem "a verdade em si", a "realidade em si" é apenas um fantasma, uma caixa negra, um embraiador do desejo de espreitar, de ver mais, de aumentar o conhecimento, de prolongar o eu, de o expandir à custa do outro que o reflecte, que com ele joga, que é uma presença especular contínua.
Assim se instala o teatro do mundo, a representação constante a que cada um se vê votado porque está imerso numa realidade que o vê, que ele sente vê-lo, e portanto num palco. Qualquer tentativa de sair desse palco é no sentido de passar a outro, e a outro, e a mais outro, numa constante mudança de cenários, de experiências e de performances. Digamos que o fascínio da morte, como tema e imagem, é o que nela se anuncia (ao mesmo tempo como impensável fim do eu) de um cenário último, que alguns crêem ser um cenário de felicidade, de regresso ao paraíso e de saída da historicidade, do tempo e da sua caducidade.
O eu não consegue nunca senão imaginar o seu fim como fantasma, não consegue vivenciá-lo, porque o eu está desde o início ligado a um ambiente e a uma narrativa que se prende a outras imagens, a outros eus, a outros olhares. E, se esses olhares me constituem, é para a sua sobrevivência como olhares que eu falo, porque eles são os meus "herdeiros" fantasmáticos.
A especularidade instala uma regra no mundo. Tudo é em última análise tautológico, ou seja, tudo quanto se objectiva está ligado a uma experiência de subjectividade, como uma pastilha elástica que se quer descolar e deitar fora, nunca o conseguindo.
A imagem contém em si a vontade de ver, chama o olhar. E nesse sentido instala um voyeurismo, porque eu sei que olhando uma imagem estou a espreitar, estou a emoldurar uma pequena parcela do campo escópico, em que concentro a minha atenção. Ao fixar essa atenção na imagem assim delimitada pela moldura (ver é instalar molduras), eu entro necessariamente num regime fetichista, porque demoro numa parcela do mundo o meu olhar, momentaneamente parado (embasbacado, diria) pelo desejo de conhecer, de compreender, de absorver, de me ver reflectido, enfim, de re-conhecer o que se me apresenta como antes não visto, ou como surpreendente. Todo o conhecimento é um re-conhecimento, é um voltar a um lugar que não está em lado nenhum, que vai de espelho em espelho, de procura em procura. E fixar esse desejo nómada é sempre o princípio da desilusão, do descolamento do sujeito em relação ao objecto com que visava (mas não pode) confundir-se. É também em relação com isto que Lacan referia a ilusão das relações humanas, e em última análise o que ele designava como a impossibilidade da relação sexual, na medida em que o objecto do desejo apela sempre para outro, e outro, numa insatisfação exacerbada pela nossa contemporânea sociedade de signos, quer dizer, de objectivos investidos, por vezes, de forte poder atractivo, mas que evidentemente apelam para o vazio fundamental da imagem, para a sua insatisfação. A vida é um correr atrás de imagens (no sentido mais geral, podem ser por exemplo o que se designa "imagens mentais") numa espécie de sofreguidão sem limites, mesmo no indivíduo dito "normal".
A imagem está profundamente ligada aos progressos da óptica e à sociedade ocidental nomeadamente desde a Renascença e sua obsessão pela perspectiva e pela harmonia (que centra o indivíduo e domestica o seu desejo escópico face a um mundo que ele torna "paisagem", realidade supostamente dominada pelo seu olhar, pelo seu desejo de ver e de confundir o ver e o poder). Um poder ilusório que tantas arquitecturas perseguiram, desde o mito de Babel, que visava alcançar o céu, mas que se viu confundido pela profusão das línguas, quer dizer, pela opacidade da ordem simbólica, pela improbabilidade da comunicação, pela impossibilidade da transparência (daí que a transferência mais não seja do que um jogo devidamente encenado em ambiente ajustado entre os parceiros, analisado e analista). Por que é ilusório o desejo de ver, por que é inatingível o sentido ultimo do mundo, da imagem-mundo? É que este é um enorme espelho onde o observador se reflecte, se implica, há sempre uma mancha, uma sombra, um ponto negro na imagem que a imagem me devolve, por mais pixels que eu lhe acrescente.
Daí que a formidável panóplia de imagens que a ciência construiu e constrói continuamente nos pareça, por vezes, algo de alucinatório; mas alucinatório é também o museu, que nasceu da vontade coleccionista de imitar o mundo, de possuir o mundo através das suas imagens dos seus traços, dos seus signos.
Alucinatória é a sociedade da imagem; insaciável, perscruta. A imagem (a fotografia por exemplo) é desde sempre aliada do poder, da polícia, da política de fixar, de indexar, de classificar, de prender ao papel e ao arquivo, de identificar (seja no BI, na carta de condução ou no cartão de crédito): métodos de chegar rapidamente ao indivíduo que poderia passar incógnito, escapulindo-se sem imagem. Mas então o cinema, posterior à fotografia como sabemos, instala o ilusório, a fantasia, dentro do espectador, ou melhor, transporta o espectador para dentro da fantasia absoluta. Se me é possível pôr de lado, ou só olhar de vez em quando, uma foto que me fascina, um filme não o vejo, ou me prende, se não me "identificar" com ele, se não entrar nele, esquecendo que se trata apenas de um ecrã, de uma parede sem espessura, do produto de uma ilusão retiniana. O prazer que me dá o cinema é que ele me reconcilia momentaneamente (durante a duração da projecção) com o mundo, quer dizer, de espectador (no sentido passivo) eu passo (ilusoriamente, é claro) para o lado de lá do espelho, ou seja, eu fujo (imaginariamente) ao regime escópico que desde sempre me constituiu, me permitiu existir, e ao mesmo tempo me aprisiona, me força (ordem simbólica) a comportar-me como sendo sempre "eu", um suposto "eu".
A modernidade ocidental teria assim inventado e disseminado a proliferação das imagens, na constante pergunta: que é que elas me dizem? Que é que elas querem de mim? E nessa obsessão das imagens, nesse voyeurismo compulsivo (quanto mais não seja na exacerbação do imagem de si narcísica que o sujeito moderno cultiva) há qualquer coisa que instala o mundo e os seres como objectos da minha pura fruição descomprometida. Como se me fosse possível gozar sem a aura, de cuja perda na era da técnica se queixava Benjamin e muitos com ele.
Ou seja, como se fosse possível instalar uma cena, um palco, do prazer puro do sujeito, sem frustração, numa instrumentalização, numa encenação completa do mundo que o rodeia. É esse desejo insano que Sade tão exemplarmente simboliza, ainda na transição de um poder aristocrático (poder absoluto sobre os súbditos, mas sancionado por Deus) para um poder puramente imanente e "natural", des-sacralizado, em que o mundo (e o outro que nesse mundo me fita) podem ser transformados em puros instrumentos da minha satisfação sem limites, do meu desígnio.
A mesma obscenidade, afinal, que esteve em cena no nazismo, mas que é (foi) "apenas" uma exacerbação colectiva de um princípio geral da sociedade imanente: se não há um princípio organizador do mundo senão o da experiência humana, então todas as experiências são possíveis, não há limites éticos ao desejo de conhecer, de purificar, de higienizar, de normalizar, de extirpar de vez os fantasmas individuais ou colectivos.
A imagem erótica, excitante, rodeia-nos e constitui-nos como seres que procuram uma confusão inicial perdida, numa busca que a dessacralização do mundo e a perda da transcendência tornam imperiosa. Muitas vezes, o equívoco da relação entre as pessoas está nisso: elas não querem compartilhar da vida da outra, querem apenas algumas imagens, esse curto-circuito subtil que me permite ver no olhar do outro o desejo de mim, que satisfaz momentaneamente o meu narcisismo. O reflexo. Estamos condenados à constante procura desse reflexo, que só no sono, na embriaguês, na paixão amorosa temporariamente olvidamos. Essa necessidade absoluta da imagem é a que transforma o mundo num quadro pornográfico.
Por isso é que a pornografia - tal como o turismo, que é outro regime escópico, nómada, e de uma maneira geral todo o nosso conhecimento - são hoje negócios em incrível expansão. Nós queremos ver, queremos compreender, queremos saber, queremos gozar, queremos possuir. Voltámos a um jogo simples, que é o jogo que apenas me implica como voyeur, que é um jogo em que a comunidade olha toda para o mesmo lado, para o mesmo espelho (o futebol é um exemplo), como se eu tivesse elidido o reflexo.
Como se eu pudesse esquecer-me de mim.
Por isso a pornografia é a religião dos tempos modernos. Espectáculo, sim, mas espectáculo paradoxal, em que não me envolvo senão passivamente, por muito que gesticule, me excite, ou me enalteça. Estou só, o sentido de comunidade perdeu-se. O meu oratório é o ecrã. Eu olho em frente, consumo imagens, e elas consomem-me na sua avidez.

Vítor Oliveira Jorge


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 176
Ano 17, Março 2008

Autoria:

Vítor Oliveira Jorge
Faculdade de Letras da Universidade do Porto, DCTP- FLUP
Vítor Oliveira Jorge
Faculdade de Letras da Universidade do Porto, DCTP- FLUP

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