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Legislar e mandar não custa, o que custa é saber mandar

MAL ESTAR DOCENTE

"Que diriam, todos os meus professores que já partiram, sobre tanto decreto regulamentar que, em vagas sucessivas, vai transformando a nossa Escola e os seus professores, num circo de muito má qualidade, cheio de artistas saturados, humilhados, mal pagos e fartos de trabalharem num trapézio sem rede?"
(carta de uma professora)

Durante o período em que decorreu a edição deste jornal recebemos na redacção inúmeras cartas, exposições e tomadas de posição individuais e colectivas. É naturalmente impossível dar conta aos leitores de todos os textos recebidos. Não nos lembramos de uma resposta tão unânime, e tão vasta, tomada pelos professores portugueses. E parece-nos impossível que a irresponsabilidade do governo vá ao ponto de tentar ignorar as razões de fundo, de competência e de ética profissional, que motivam e justificam estas tomadas de posição por parte dos docentes portugueses. Ao contrario do que já afirmou publicamente a Senhora Ministra da Educação, não se trata de caricaturas, de insultos gratuitos, de subterfúgios para fugir ao trabalho.
É impossível que alguém dotado de racionalidade e bom senso, não entenda que estas posições dos professores se sustentam no conhecimento que têm da escola e do exercício da sua profissão, como o que sustenta as posições do ministério é o seu desconhecimento do quotidiano escolar. Parte da população portuguesa parece ter-se sentido reconfortada pelo facto de os professores terem visto os seus salários e os seus direitos profissionais reduzidos. Mas também parece impossível que esta mesma sociedade continue cega pela propaganda e incapaz de ver o verdadeiro Tsunami que nos últimos três anos se abateu sobre a escola portuguesa. É que as principais vítimas das políticas desastrosas do governo vão ser, já estão a ser, as crianças, os jovens e mesmo os adultos carentes de mais formação. Nos últimos três anos a nossa escola foi capturada por uma profunda rigidez e burocracia. Perante tal evidência, é estranho que o Governo não entenda a urgência de por termo ao frenesim que se apoderou da equipa que governa a educação, mudando de equipa e de política. Os professores sentem um profundo mal estar. Não é um fenómeno recente. As dificuldades sentidas um pouco por todo o mundo em promover a transição da escola de elites para a escola de massas, há dezenas de anos que são difíceis. Há muitos anos que os dirigentes políticos procuram bodes expiatórios para a sua incapacidade em romper com os velhos paradigmas e em criar novos sistemas educativos. Há muitos anos que numa tira de papel afixada ao lado da mesa em que escrevo se pode ler: «É urgente reinventar os sistemas educativos e abrir novos caminhos à profissão docente». O nosso mal estar e a urgência em lhe dar remédio não é de agora. Como não é de agora a rentabilização política que os poderes fazem dos professores. O que agora está a acontecer em Portugal é uma governança da educação baseada numa violência, numa crueza, num fanatismo, numa cegueira, numa frieza sem precedentes que faz cair sobre as escolas, embrulhadas em papel legislativo, as mais injustas acusações aos professores. A Senhora Ministra tem dos professores, da profissão docente, da participação colectiva e da democracia uma visão de um pessimismo e desconfiança doentias. Para a Ministra a autonomia profissional, e a democracia como modo de gerir o trabalho, são necessariamente incompetentes. Não confia nos professores, toma-os por calaceiros. As práticas pedagógicas e as aprendizagens não contabilizáveis, incluindo os processos de socialização, são praticas de que desconfia. A Senhora Ministra parece ser ministra de um campo que odeia e por isso não sabe semear. O clima que criou na educação é doentio. Não é por isso de estranhar que os docentes tenham passado do mal estar à revolta e, ou vencem, ou corremos o risco de ver mergulhada a classe e as escolas, por longos anos, numa frustração acomodada e apatia paralisantes.
A vida ensinou-nos que nem todos os problemas têm necessariamente solução.
Alguns só se resolvem pelo seu desaparecimento. O actual governo colocou as escolas e os professores perante um conjunto de problemas cuja solução, a existir, não leva a educação a bom porto. São problemas tão prejudiciais aos professores, aos seus alunos e à sociedade portuguesa que é um imperativo ético e profissional desembaraçarmo-nos deles o mais depressa possível.
O meio humano distingue-se do reino animal pelo facto de o primeiro formar os seus membros na solidariedade e o segundo formar os seus elementos na competição, ou seja, na luta pela sobrevivência. A situação criada nas escolas, pela legislação publicada, convida os professores a adoptarem comportamentos mais próximos do reino animal do que do humano. O que se espera é que os professores não percam o seu sentido de humanidade, solidarizando-se, não se desunindo, cooperando, não competindo, compreendendo o valor da solidariedade e não caindo na tentação de considerar a luta pela sobrevivência como uma fatalidade. E é nesta solidariedade serena, informada, pensada, firme, mas tranquila, que os professores terão de encontrar a forma de eliminar os problemas que têm, começando pela substituição da actual equipa governativa, continuando na exigência da suspensão da legislação danosa já publicada e promovendo uma verdadeira mudança de política para a escola portuguesa. Essa solidariedade obriga-nos a participar juntos em todos os movimentos e formas de afirmação pública, dizendo a uma só voz o que queremos e o que não queremos. A nossa escola pública tem muitos problemas. Não tem problemas por ser democrática, como pensa a ministra, ou pública, como afirmam alguns neoliberais, mas porque ainda é pouco democrática e pouco pública. A resposta aos problemas que enfrentamos não está nas políticas do actual governo. Não está na transformação do espaço escolar num espaço ainda mais concentracionário do que já é. Portugal não precisa de escolas-prisão capazes de encarcerar as nossas crianças e jovens dez ou mais horas por dia. Precisa de comunidades capazes de organizarem redes de oferta cultural e educativa. Redes de que as escolas sejam elos fortes, mas não únicos. Não precisamos de escolas-prisão dirigidas por um director prisional servido por professores transformados em guardas prisionais. Exigimos comunidades culturalmente vivas onde todos possam participar. Escolas que ensinem. Alunos que aprendam. Uma maior autonomia profissional que nos permita pensar o nosso trabalho e melhorar dia a dia o nosso desempenho profissional. Precisamos de escolas mais autónomas, mais democráticas e, sobretudo escolas públicas que sejam, cada vez mais públicas.

José Paulo Serralheiro


  
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Edição:

N.º 176
Ano 17, Março 2008

Autoria:

José Paulo Serralheiro
Professor e Jornalista. Director do Jornal a Página da Educação.
José Paulo Serralheiro
Professor e Jornalista. Director do Jornal a Página da Educação.

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